September 28, 2022

Nao é a polarização, é a violencia

 

 

A vice-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner. Foto: JUAN MABROMATA/AFP

 

 José Sócrates

 A tentativa de assassinato de
Cristina Kirchner e a agressão
ao irmão do presidente chile-
no, Gabriel Boric, representam a pas-
sagem ao ato depois de vários anos de
retórica pública agressiva, intolerante,
quase belicista. Lentamente, o ódio po-
lítico transformou o adversário em ini-
migo e o inimigo em inimigo radical – o
inimigo é a causa do meu ódio, ele obri-
ga-me a odiar e por isso o odeio. A sua
existência ofende-me, provoca-me, de-
safia-me. Passo a passo, a política con-
verteu-se numa espécie de guerra de ex-
termínio que ameaça o convívio entre
compatriotas e impede qualquer con-
versa ou diálogo sobre o que se está a
passar. Quando é que tudo isso come-
çou? Bom, a resposta parece-me evi-
dente – com a ascensão da extrema-di-
reita, um pouco por todo o mundo.
Por favor, nada de confusões, o proble-
ma democrático não é a polarização, mas
a violência. A primeira faz parte do jogo
democrático, a segunda tenta destruí-lo.

 
Desculpem usar uma palavra tão forte,
mas sempre me pareceu um pouco idiota
a queixa da polarização num regime pre-
sidencial disputado em dois turnos. To-
dos os sistemas presidenciais tendem pa-
ra o duplo polo, tal como o sistema norte-
-americano, de onde toda a América Lati-
na herdou a cultura política presidencial
(por oposição à tradição parlamentar).
Na verdade, não é isso que lamentam os
aflitos da polarização. As queixas preten-
dem apenas disfarçar a amarga frustra-
ção da direita democrática de não ter um
candidato competitivo. Percebo-os mui-
to bem, mas, se me permitem argumen-
tar, o problema é sério demais para se re-
solver esperneando. A primeira verdade
que a direita democrática tem de enfren-
tar é que o seu problema não é o proble-
ma do sistema, não é problema do regi-
me – é apenas o seu problema. E o seu
problema é estar refém da extrema-di-
reita e, nessa situação, dificilmente ga-
nhará eleições no Brasil porque perderá
o eleitor moderado, o eleitor que não faz
prévias escolhas ideológicas e que apre-
cia tudo o que é equilibrado, comedido,
sem rupturas. Esse é, verdadeiramente,
o problema da direita democrática – co-
mo se ver livre de Bolsonaro. No entre-
tanto, beberá o cálice até o fim.

 
Mas o mal, podemos dizer assim, é ge-
ral. Os sinais de violência no Chile e na
Argentina são os mesmos que vemos na
Europa. Na Itália, estamos à beira de vi-
ver algo nunca visto depois da Segun-
da Guerra Mundial. A extrema-direita
italiana, provavelmente, vai ser o parti-
do mais votado nas próximas eleições e
o primeiro-ministro (neste caso, a pri-
meira-ministra) sairá das fileiras do par-
tido que reclama a herança política de
Mussolini. Um pouco por toda a Europa
as dificuldades da guerra e da economia
deixam espaço livre à retórica extremis-
ta. Aqui em Portugal, o líder da extrema-
-direita, evocando um episódio históri-
co, sugeriu que talvez se devesse atirar
o primeiro-ministro pela janela. E ria-
-se, ria-se muito com a piada. Nos Esta-
dos Unidos a derrota de Trump não der-
rotou de vez a extrema-direita. Recente-
mente, tivemos de assistir ao espetácu-
lo inédito de um presidente norte-ameri-
cano a fazer um discurso, inédito e sole-
ne, com o único propósito de lembrar ao
Partido Republicano que o seu compor-
tamento político ameaça a democracia
norte-americana. A América, que sem-
pre se viu a si própria como república
exemplar, como “cidade no topo da co-
lina” iluminando o resto do mundo, en-
frenta um sério problema existencial.

 
Os dois incidentes, o do Chile e o da
Argentina são, portanto, para levar
muito a sério. Em particular no Brasil,
aí tão perto. As eleições brasileiras se-
rão seguidas com muito interesse em
todo o mundo, não apenas pela impor-
tância do país, mas pelo que significam
de avanço ou recuo da extrema-direita.

 
O que se passou nestes últimos quatro
anos foi mau demais. A política dispen-
sou o adversário e criou o inimigo. A go-
vernação foi substituída pelo combate e
pela agressão a tudo o que é diferente, o
negro, o pobre, o comunista, o homos-
sexual. A política da chamada “família
tradicional” autorizou a desconsidera-
ção da mulher. Os militares, em aproxi-
mações sucessivas, abandonaram a am-
bição de representação da nação em tro-
ca de umas quantas sinecuras no gover-
no. O que mais ouvimos nestes anos fo-
ram berros, berros contínuos que impe-
diram a política de dizer algo de humano,
algo capaz de acalmar a besta interior. A
escolha nas urnas também se fará entre
tolerância democrática e violência polí-
tica. Há coisas que só os povos podem de-
fender – e uma delas é a democracia.

CARTA CAPITAL 

 


September 27, 2022

A saída é um revogaço

 

O desmatamento da Amazônia bate novos recordes - Imagem: Bruno Kelly/Amazônia Real

Por Maurício Thuswohl
ENTREVISTA O ambientalista Rogério
Rocco defende a derrubada de todos
os decretos ambientais de Bolsonaro
 4 2 C A R T A C A P I T A L . C O M . B R
Seu País
Militante destacado na re-
tomada do movimento
estudantil nos anos
1980, o advogado Rogério
Rocco foi um dos pionei-
ros ao inserir o debate ambiental na pau-
ta da UNE. Entre 1999 e 2001, integrou o
conselho deliberativo do Fundo Nacional
do Meio Ambiente, do qual foi coordena-
dor-geral em 2005. Nos últimos anos, tor-
nou-se voz ativa contra o processo de des-
monte dos órgãos de fiscalização e inimi-
go declarado da política de terra arrasa-
da. Na entrevista a Mauricio Thuswohl,
Rocco defende a revogação dos decretos
ambientais do governo Bolsonaro, pri-
meiro passo para deter o desmatamento
recorde na Amazônia. “Dar um basta a es-
se comportamento criminoso é um exce-
lente começo”, afirma.
 
CartaCapital: O restabelecimento
da participação da sociedade civil no
conselho deliberativo do Fundo Nacio-
nal do Meio Ambiente foi determinado
pelo STF, mas nada foi feito. É possível
retomar os trabalhos do fundo nos mol-
des em que aconteciam anteriormente?
 
Rogério Rocco: A grande virtude do
fundo sempre foi ter se estruturado
com uma gestão integrada entre gover-
no e sociedade. As linhas temáticas pa-
ra financiamento e as ações e processos
de deliberação eram muito transparen-
tes e contavam com um controle social
efetivo. O FNMA criou uma expertise
na gestão de recursos ambientais copia-
da por fundos em todo o Brasil e tam-
bém com repercussão internacional. O
FNMA não é mais propriamente um fun-
do, é um programa do Ministério do Meio
Ambiente. Trabalha com recursos orça-
mentários sujeitos a mudanças anuais, e
seu diferencial é a arrecadação própria
oriunda de 20% de todas as multas am-
bientais aplicadas na esfera federal.
 
CC: Qual o impacto do esvaziamento
promovido por Bolsonaro?
 
RR: A mudança promovida pelo atual go-
verno, de retirada da representação da so-
ciedade civil, não é mera-
mente uma troca de ca-
deiras. Ela de fato des-
monta e destrói a estrutu-
ra que consagrou o FNMA
como referência nacional
e internacional. Elimina a
razão de ser do fundo, que
passa a ser um programa
para a execução de proje-
tos da estrutura do minis-
tério, sem participação e
controle social, portanto
sem legitimação.
 
CC: Estudo divulgado
pelo Inesc sobre o des-
monte dos fundos ambientais consta-
ta: o FNMA “não existe mais”.
 
RR: De fato, não existe mais. A constru-
ção na qual os recursos de seus progra-
mas eram submetidos a um processo de
aprovação legitimado pela participação
e controle social e com intervenção dire-
ta da sociedade na análise, fiscalização
e aprovação final dos gastos constituía
a sua essência. A partir do momento em
que se desconstruiu aquilo que era a sua
essência, ele passou a ser mais um con-
junto de letrinhas, sujeito à previsão de
recursos orçamentários.
 
CC: As atuais fontes de receita não
precisam ser ampliadas para garantir
um funcionamento adequado?
 
RR: O que está em questão não é aumen-
tar os recursos do fundo, pois ele pode
ter dotações orçamentárias destinadas
na Lei Orçamentária Anual e na garan-
tia dos recursos das multas. No atual go-
verno, houve uma queda muito grande
na aplicação e na arrecadação de multas.
Isso vai se espelhar nos próximos anos,
pois há inúmeros processos em curso que
deixarão de produzir resultados em ra-
zão dos mecanismos de desmonte.
 
CC: É possível reverter o desmon-
te e o aparelhamento promovidos pelo
atual governo?
 
RR: O governo Bolsona-
ro tem desmontado os ór-
gãos ambientais federais,
eliminado suas compe-
tências, perseguido ser-
vidores de carreira, no-
meado apadrinhados in-
competentes para a dire-
ção desses órgãos, revo-
gado e modificado nor-
mas ambientais e colo-
cado as estruturas que
antes combatiam os cri-
mes ambientais para de-
fender e amparar crimi-
nosos como garimpeiros,
madeireiros, grileiros e milícias flores-
tais. Dar um basta a esse comportamen-
to criminoso é um excelente começo. Não
vai ser simples, mas é perfeitamente pos-
sível e viável reverter grande parte desses
retrocessos. Alguns deles foram reverti-
dos por decisões do STF.
 
CC: Quais as medidas urgentes pa-
ra reverter o desmatamento crescente?
 
RR: Nos primeiros dias de um próximo
governo, a partir de janeiro, é preciso
reinstaurar estruturas e iniciativas, en-
tre elas o Programa de Controle e Com-
bate ao Desmatamento da Amazônia, an-
tes coordenado pela Casa Civil e que che-
gou a reunir 14 ministérios. Além disso, é
necessário revogar medidas adotadas pa-
ra facilitar a vida dos desmatadores, ga-
rimpeiros e outros criminosos que avan-
çaram sobre a Amazônia. Precisamos de
um grande “revogaço” desses decretos,
portarias e instruções normativas dolo-
samente alteradas pela gestão criminosa
de Ricardo Salles e Jair Bolsonaro. Além
disso, é fundamental nomear para os ór-
gãos ambientais gente competente, servi-
dores qualificados e comprometidos em
cumprir a lei e limpar as instituições des-
sa horda de incompetentes e delinquentes
que ocuparam esses espaços. Só assim se
poderá retomar a governança da Amazô-
nia e um processo permanente de diálo-
go e acordo para desenvolver a região sem
desrespeitar seus potenciais ambientais.
 
CC: O que acha da ideia de um Siste-
ma Único para o Meio Ambiente e Clima,
como um SUS?
 
RR: É questão a ser pensada. Precisamos
avançar na cooperação federativa para a
execução da Política Nacional de Meio
Ambiente. Precisamos integrar melhor os
entes federados para uma execução mais
harmônica entre os órgãos e mais equili-
brada entre os distintos biomas. Precisa-
mos abrir essas agendas. Toda ideia que
surge com esse espírito é bem-vinda e deve
ser avaliada por aqueles que querem cons-
truir uma política ambiental democrática,
participativa e mais efetiva.
 
CC: Por que é importante revitalizar
o FNMA em um eventual novo governo?
 
RR: Ao longo de sua história, depois de
ter adquirido expertise e legitimidade, o
FNMA passou a executar recursos de ou-
tros ministérios e órgãos da administra-
ção pública federal que assumiram obri-
gações relacionadas a medidas mitigado-
ras ou compensatórias relacionadas à po-
lítica ambiental. Em um momento no qual
a política ambiental era respeitada nas es-
truturas governamentais, o fundo tornou-
-se uma referência no governo que utiliza-
va seus procedimentos para a descentra-
lização e execução de recursos e obriga-
ções orçamentárias ambientais. O fundo
tem expertise, quadro técnico permanen-
te e uma história de evolução nos sistemas
de oferta de recursos e de aprovação e con-
trole de sua execução. Essa expertise pode
ser acionada assim que um governo com-
prometido com a participação e o contro-
le social assumir.
CARTA CAPITAL


 
 

 

 

Pharoah Sanders, Whose Saxophone Was a Force of Nature, Dies at 81

 The saxophonist Pharoah Sanders in performance in Brooklyn in 2015.]



by JON PARELES 

 

Pharoah Sanders, a saxophonist and composer celebrated for music that was at once spiritual and visceral, purposeful and ecstatic, died on Saturday in Los Angeles. He was 81.

His death was announced in a statement by Luaka Bop, the company for which he had made his most recent album, “Promises.” The statement did not specify the cause.

The sound Mr. Sanders drew from his tenor saxophone was a force of nature: burly, throbbing and encompassing, steeped in deep blues and drawing on extended techniques to create shrieking harmonics and imposing multiphonics. He could sound fierce or anguished; he could also sound kindly and welcoming.

He first gained wide recognition as a member of John Coltrane’s groups from 1965 to 1967. He then went on to a fertile, prolific career, with dozens of albums and decades of performances.

Im. Sanders played free jazz, jazz standards, upbeat Caribbean-tinged tunes and African- and Indian-rooted incantations such as “The Creator Has a Master Plan,” which opened his 1969 album, “Karma,” a pinnacle of devotional free jazz. He recorded widely as both a leader and a collaborator, working with Alice Coltrane, McCoy Tyner, Randy Weston, Joey DeFrancesco and many others.

Looking back on Mr. Sanders’s career in a 1978 review, Robert Palmer of The New York Times wrote, “His control of multiphonics on the tenor set standards that younger saxophonists are still trying to live up to, and his sound — huge, booming, but capable of great delicacy and restraint — was instantly recognizable.”

Mr. Sanders told The New Yorker in 2020: “I’m always trying to make something that might sound bad sound beautiful in some way. I’m a person who just starts playing anything I want to play, and make it turn out to be maybe some beautiful music.”

Pharoah Sanders was born Farrell Sanders in Little Rock, Ark, on Oct. 13, 1940. His mother was a cook in a school cafeteria; his father worked for the city.

He first played music in church, starting on drums and moving on to clarinet and then saxophone. (Although tenor saxophone was his main instrument, he also performed and recorded frequently on soprano.) He played blues, jazz and R&B at clubs around Little Rock; during the era of segregation, he recalled in 2016, he sometimes had to perform behind a curtain.

In 1959 he moved to Oakland, Calif., where he performed at local clubs. His fellow saxophonist John Handy suggested he move to New York City, where the free-jazz movement was taking shape, and in 1962, he did.

At times in his early New York years he was homeless and lived by selling his blood. But he also found gigs in Greenwich Village, and he worked with some of the leading exponents of free jazz, including Ornette Coleman, Don Cherry and Sun Ra.

It was Sun Ra who persuaded him to change his first name to Pharoah, and for a short time Mr. Sanders was a member of the Sun Ra Arkestra.

Mr. Sanders made his first album as a leader, “Pharoah,” for ESP-Disk in 1964. John Coltrane invited him to sit in with his group, and in 1965 Mr. Sanders became a member, exploring elemental, tumultuous free jazz on seminal albums like “Ascension,” “Om” and “Meditations.”


After Coltrane’s death in 1967, Mr. Sanders went on to record with his widow, the pianist and harpist Alice Coltrane, on albums including “Ptah, the El Daoud” and “Journey in Satchidananda,” both released in 1970.

Mr. Sanders had already begun recording as a leader on the Impulse! label, which had also been Coltrane’s home. The titles of his albums — “Tauhid” in 1967, “Karma” in 1969 — made clear his interest in Islamic and Buddhist thought.

His music was expansive and open-ended, concentrating on immersive group interaction rather than solos, and incorporating African percussion and flutes. In the liner notes to “Karma,” the poet, playwright and activist Amiri Baraka wrote, “Pharoah has become one long song.” The 32-minute “The Creator Has a Master Plan” moves between pastoral ease — with a rolling two-chord vamp and a reassuring message sung by Leon Thomas — and squalling, frenetic outbursts, but portions of it found FM radio airplay beyond jazz stations.

During the 1970s and ’80s, Mr. Sanders’s music moved from album-length excursions like the kinetic 1971 “Black Unity” toward shorter compositions, reconnections with jazz standards and new renditions of Coltrane compositions. (He shared a Grammy Award for his work with the pianist McCoy Tyner on the 1987 album “Blues for Coltrane.”) His recordings grew less turbulent and more contemplative. On the 1977 album “Love Will Find a Way,” he tried pop-jazz and R&B, sharing ballads with the singer Phyllis Hyman. He returned to more mainstream jazz with his albums for Theresa Records in the 1980s.

But his explorations were not over. In live performances, he might still bear down on one song for an entire set and make his instrument blare and cry out. During the 1990s and early 2000s he made albums with the innovative producer Bill Laswell. He reunited with the blistering electric guitarist Sonny Sharrock — who had been a Sanders sideman — on the 1991 album “Ask the Ages,” and he collaborated with the Moroccan Gnawa musician Maleem Mahmoud Ghania on “The Trance of Seven Colors” in 1994.


Mr. Sanders at the 1996 North Sea Jazz Festival in The Hague, Netherlands.
Credit...Frans Schellekens/Redferns

Information on Mr. Sanders's survivors was not immediately available.

Mr. Sanders had difficult relationships with record labels, and he spent nearly two decades without recording as a leader. Yet he continued to perform, and his occasional recorded appearances — including his wraithlike presence on “Promises,” his 2021 collaboration with the London Symphony Orchestra and Sam Shepherd, the electronic musician known as Floating Points — were widely applauded.

Reviewing “Promises” for The Times, Giovanni Russonello noted that Mr. Sanders’s “glistening and peaceful sound” was “deployed mindfully throughout the album,” adding, “He shows little of the throttling power that used to come bursting so naturally from his horn, but every note seems carefully selected — not only to state his own case, but to funnel the soundscape around him into a precise, single-note line.”


Mr. Sanders and Sam Shepherd, the electronic musician and composer known as Floating Points, during the recording of the album “Promises” in Los Angeles in 2019.
Credit...Eric Welles-Nyström

In 2016 Mr. Sanders was named a Jazz Master, the highest honor for a jazz musician in the United States, by the National Endowment for the Arts.

In a video made in recognition of his award, the saxophonist Kamasi Washington said, “It’s like taking fried chicken and gravy to space and having a picnic on the moon, listening to Pharoah.” The saxophonist Lakecia Benjamin said, “It’s like he’s playing pure light at you. It’s way beyond the language. It’s way beyond the emotion.”

 

 

September 26, 2022

Contra o golpe do medo

 

 

P O R B OAV E N T U R A D E S O U S A S A N TO S *

Os olhos da inquietação do
mundo têm hoje muito pa-
ra onde olhar. O processo
eleitoral em curso no Bra-
sil é, certamente, um dos
alvos de atenção. Os processos eleitorais,
mesmo quando muito intensos, como
aconteceu recentemente na Colômbia
(eleição do primeiro presidente de esquer-
da na história do país e da primeira vice-
-presidente negra na história da América
Latina) e no Chile (rejeição do projeto da
nova Constituição que substituiria a
atual, herdeira da ditadura de Pinochet),
não costumam atingir o nível de drama
existencial que os brasileiros vivem atu-
almente. Esse drama resulta da ameaça
que paira sobre a sobrevivência da pró-
pria democracia, ameaça que decorre das
declarações e mobilizações públicas do
presidente Jair Bolsonaro e seus seguido-
res, pondo em causa a transparência do
escrutínio eleitoral, fazendo a apologia de
um possível golpe de Estado, com apelos
às Forças Armadas para intervir e sus-
pender ou encerrar as instituições, nome-
adamente o Supremo Tribunal Federal,
um dos principais garantes da normali-
dade no atual contexto.

 
Tudo isso, combinado com um ambien-
te digital de redes sociais altamente poluí-
do pelas notícias falsas, pelo discurso do
ódio e por prosélitos religiosos do apoca-
lipse e da redenção pela tríade Deus, Pátria
e Família, tem levado à criação de um am-
biente de intimidação que, de algum mo-
do, paralisa a manifestação pública da di-
versidade das opções políticas e obriga os
titulares de cargos superiores do Estado a
medidas de segurança incomuns. As cele-
brações do 7 de Setembro, dia da Indepen-
dência do Brasil, foram politicamente ins-
trumentalizadas a um extremo que nem
em tempos da ditadura se tinha atingido.
Haverá risco de um golpe de Estado no
Brasil? Serão pacificamente reconhecidos
os resultados eleitorais, se forem contrá-
rios aos interesses bolsonaristas? A quem
servem a retórica do golpe anunciado e o
ambiente de intimidação instalado?

 
Atrevo-me a identificar vários fatores
que me levam a pensar que o perigo do
colapso da democracia brasileira, embo-

ra real, não é iminente. A retórica do gol-
pe é muito mais eficaz em instalar o medo
do que em condicionar opções finais. Por
isso, o medo do golpe funciona sobretudo
enquanto golpe do medo. Os fatores que
me levam a essa suposição são os seguin-
tes. Primeiro, as elites brasileiras, que tra-
dicionalmente se servem da democracia
quando esta lhes convém, estão dividi-
das. A parte mais influente delas (o setor
financeiro), se não morre de amores por
Lula tampouco aprecia a boçalidade gro-
tesca (mas carismática) de Bolsonaro. A
Bolsa de Valores deu sinais no passado de
que a perturbação institucional não entra
atualmente no modelo de negócios


Segundo, talvez pela primeira vez na
história do continente, os Estados Uni-
dos não parecem estar interessados em
fomentar a instabilidade democrática ou
em influenciar o processo eleitoral. A ra-
zão principal é como sempre de política
interna. A administração Joe Biden sabe
das ligações entre Donald Trump e Jair
Bolsonaro e sabe que a extrema-direita
global, em grande medida mobilizada a
partir dos EUA, vê em Bolsonaro a última
esperança de controlar o governo de um
grande país e de, com isso, manter acesa
a chama de resgatar Trump em 2024. Pa-
ra Biden, deixar cair Bolsonaro é reduzir
as possibilidades de Trump o confrontar
em 2024. Claro, os interesses geoestra-
tégicos e econômicos dos EUA dominam
como sempre as opções políticas do big
brother, mas neste caso a influência que
tais interesses venham a exercer sobre o
governo do Brasil terá de ocorrer depois
das eleições, não antes.

 
Terceiro, as Forças Armadas estão
divididas e os sinais que recebem da sua
maior referência estratégica (as altas pa-
tentes militares norte-americanas) não
parecem estimular aventuras golpistas. É
certo que as Forças Armadas brasileiras
estão hoje envolvidas na máquina da ad-
ministração pública a um nível sem pre-
cedentes (mesmo contando o tempo da
ditadura). Calcula-se que cerca de 6 mil
militares exercem funções civis no setor
público. Têm, pois, um interesse na conti-
nuidade da governação bolsonarista. Sa-
bem, no entanto, que têm hoje suficiente
poder de influência no Brasil para impor
algumas condições de continuidade ao
novo presidente se ele não for Bolsonaro.
E isso é mais econômico e eficaz que uma
turbulência institucional imprevisível.

 
Quarto, a extrema-direita brasileira
é, talvez, mais ambígua sobre o proces-
so eleitoral do que se supõe. É costume
distinguir entre Bolsonaro e bolsona-
rismo para significar que a base social
do presidente continuará politicamen-
te ativa mesmo que Bolsonaro saia de ce-
na. Julgo ser necessário introduzir ou-
tro componente, a família Bolsonaro. O
presidente tem três filhos com manda-
tos políticos: Flavio, senador, Eduardo,
deputado federal, e Carlos, vereador no
Rio de Janeiro. Qualquer destes políti-
cos pode, no futuro, ser candidato à Pre-
sidência da República. A probabilidade
de tal acontecer é maior se a normalida-
de eleitoral se mantiver. Portanto, o po-
tencial desestabilizador da família Bol-
sonaro pode estar condicionado por es-
se cálculo. Reconheço que posso estar a
atribuir demasiada racionalidade às de-
cisões dessa família, mas a verdade é que
mesmo Dom Corleone tinha o sonho de
o seu filho predileto (representado pelo
divino Al Pacino) vir a ser eleito gover-
nador do estado de Nova York, ou mes-
mo presidente dos EUA.

CARTA CAPITAL