July 31, 2017

Prostituição Política


Aldir Blanc

No momento em que escrevo, só 5% dos brasileiros aprovam o presifraude Temer.

Que democracia é essa na qual temos que aturar um criminoso se ninguém o quer?

Continua conspirando e subornando porque corrompe parlamentáveis prostituídos que o sustentarão desde que ele abra o cofre e as pernas para emendas (leia-se roubalheira).

Enquanto isso, Meirelles mantém seu blablá tecnocrata do eixo Boston-Chicago. O “crescimento” anunciado está pertinho de zero e o desemprego beira os 15 milhões.

A quadrilha Temer exibe todo tipo de miragem. Vi um gráfico subindo quase verticalmente na telinha, mas o número não conseguia encobrir a cascata: aumento de 0,09% em um treco otimista...

O desgoverno fracassou em tudo. Deve propor nos próximos dias um plano de suicídio coletivo para o funcionalismo.

Os ministros da Educação, Saúde, Trabalho, Agricultura e outros são o que Vó Noemia chamava de “cavalos vestidos”.

Conforme o terrível documento encaminhado por meu amigo Marcelo Chalreo, guerreiro na área de direitos humanos da OAB-RJ, trocam-se as vidas de índios, quilombolas, populações ribeirinhas e outros bestializados pelo entreguismo ao agronegócio, às formas mais perigosas de mineração, à devastação ambiental.

O nome disso é genocídio.

Bilhões são gastos nesses prostíbulos de corrupção para manter o presifarsa no cargo-descarga, mas não há verbas para fiscalizar trabalho escravo e infantil, para passaportes, para evitar a venda do que é nosso como aeroportos, estradas, material de telefonia... A lista é interminável. Pedro Parente Deles deve tê-la completa. Temeroso é blindado por simulacros como o tribunal eleitoreiro, a comichão de prostituição e justi$$a, o supremo circo federal, com seus parlapatões.

O “assessor especial” Yunes vendeu para o presidrácula um andar inteiro em prédio de luxo, uma casa “doada” para Marcela Temer, e duas salas de escritório para o operoso Michelzinhho! Tudo avaliado abaixo do preço real, mamata de 20 milhões na época e que está valorizada a píncaros geddelianos.

A 12ª Vara Civil/Agrária de MG suspendeu a ação de 155 bilhões contra a Samarco. Nenhum preso. A lama já asfixia o santuário de Abrolhos.

Procurem ver a distância entre a região de Mariana e o arquipélago, e vocês terão a dimensão do crime.

No exterior, o presibesta nos humilha: “Vamos continuar trabalhando para aumentar o desemprego”.

Temer e Maia brigam por “socialistas” que também são ruralistas! Pertencem ao PSB.

E eu pensando que só os socialistas pernambucanos roubavam sob o comando da gangue encabeçada pelo ex-governador que caiu pra subir.

Umberto Eco escreveu que, na modernidade líquida onde todos querem aparecer, vai rolar um concurso planetário para eleger o menor pênis da Terra. Voto no pelego Marun, com a pontinha quase invisível da virilidade perdida no agromatagal paquidérmico.

O desgoverno temeroso será conhecido pela frase que o assassino flamenguista postou da cadeia:

— Nóis é história!

O GLOBO, JULHO DE 2017 

July 27, 2017

Não poder contar com o alento da cultura é querer levar o brasileiro ao esgotamento absoluto


Washington Fajardo

A situação da cultura no país hoje é desesperadora. Curiosamente, após tantos e importantes avanços. Após os bons anos do período Gilberto Gil e Juca Ferreira I, a administração Dilma reduziu não apenas orçamento mas o papel estratégico do Ministério da Cultura. Na teoria da Nova Matriz Econômica, virou item supérfluo. Tentou corrigir o rumo com Juca Ferreira II, mas já era tarde: as crises econômica e política já produziam danos extensos e irrecuperáveis. O governo Temer não tem nem tempo nem lastro para refletir e agir sobre o setor. Em um ambiente de crise sistêmica interminável, não poder contar com o alento que a cultura produz na alma é querer de fato levar o brasileiro ao esgotamento absoluto.

No Rio, a insolvência do governo do estado dissolve também programações, museus existentes e novos, como o MIS, moribundo em gestação. O funcionamento do belo projeto das bibliotecas-parque tem sido constantemente ameaçado. O modelo de gestão por OS não resistiu ao primeiro vento. Há evidente necessidade de auxílio federal ao Rio, oxalá uma intervenção. Mas que venham também recursos para a cultura.

O inverso deveria valer. Quanto maior a crise, maior o orçamento para a área cultural. Quanto maior o desemprego, mais recursos para o setor.

Não se trata de leviandade com recursos públicos ou irresponsabilidade na definição das prioridades, mas clareza de que a cultura é setor importante da economia, gerando empregos e inclusão e alimentando o espírito. O niilismo forçado que estamos experimentando no Brasil e no Rio seria apaziguado pela nossa riqueza criativa.

A cultura é um setor que alia trabalho intelectual ao trabalho braçal, integrando diferentes tipos de qualificações profissionais. Permite desenvolver conteúdos nacionais, alimentando-se e inspirando territórios socialmente diversos, educando, desenvolvendo respeito, encontros, oferecendo um pouco de paz para os momentos mais duros. Tais conteúdos poderiam ser estratégicos para a política externa, promovendo o país, alavancando turismo e interesse comercial por nossas criações.

Cultura está presente na TV, no cinema, nos circos, no rádio, nas festas, nos bailes, nos museus, nos teatros. Está no patrimônio cultural recuperado, em eventos no espaço público. É riqueza que pode ser acessada gratuitamente.
Educação e saúde têm a proporcionalidade de seus orçamentos protegidos constitucionalmente. Cultura também educa, sendo uma das mais belas formas para ampliar o conhecimento sobre si mesmo, sobre o próprio corpo, sobre o corpo do outro e conservação da saúde.

Será que reagiríamos coletivamente da mesma maneira, hoje, se nossos espaços culturais estivessem em pleno funcionamento?

Melhorar o orçamento do setor teria impacto imediato na economia e no bem-estar social. Mas buscar novos modos de sustentabilidade para as finanças da área cultural é estratégico. Os responsáveis pelas políticas públicas não têm o direito de serem letárgicos em função de Estado tão crítica.

No Porto Maravilha foi a primeira vez que uma Operação Urbana Consorciada destinou 3% da receita da venda de títulos imobiliários para a recuperação do patrimônio cultural. Endowment é uma palavra em inglês para “fundo patrimonial perpétuo”, é um modo de garantir que iniciativas essenciais, e não autossustentáveis, possam se viabilizar pela renda das operações financeiras realizadas com o capital aplicado. Esse é um modelo que mantém universidades e instituições culturais pelo mundo.

A França, na crise de 2008, modernizou legislações para não prejudicar seus espaço culturais. Regras mais estáveis para endowments atraíram muitos doadores. O Museu do Louvre foi um dos maiores beneficiados.

No Brasil, fundos patrimoniais perpétuos já operaram na área educacional, como na Politécnica da USP e na escola de Direito da FGV. É necessário ampliar o entendimento sobre tal solução. O BNDES tem liderado esse debate. Se mais doadores fizerem o que fez João Moreira Salles ao destinar recursos em caráter irrevogável para o fomento da ciência, teríamos mais paz social.

Os governos poderiam também desenvolver soluções complementares ao alocar imóveis ociosos em uma carteira patrimonial cujas receitas de locação iriam para a cultura. Assim, por exemplo, o aluguel do edifício A Noite, para fim habitacional, ajudaria nas contas do Museu da República. Entretanto vendem suas propriedades, não garantindo nem moradia nem possível auxílio para o setor cultural. Suprassumo da burrice.

A crise atual poderia ser atenuada se o funcionamento dos espaços de cultura se mantivessem altivos, abetos e acolhedores. Gerando empregos e inspirando desempregados. Ampliando cidadania

O GLOBO, JUNHO 2017

Contra o Rio selvagem


Marcus Faustini

Não surpreende que o Rio esteja passando por um aumento da violência. O esvaziamento de políticas sociais e o abandono de um pensamento estratégico na política de segurança devem estar no centro de qualquer entendimento que encare a questão com seriedade. Negar-se essa perspectiva é se entregar a uma das piores marcas de nossa História: a ideia de Rio selvagem.

Depois de dois anos desempregado, um pai sumiu de casa, deixando esposa e três filhos. A família foi pra fronteira da fome, a quantidade de novas exigências no Bolsa Família impediu o acesso. A solidariedade dos vizinhos os manteve vivos. Seu filho do meio largou a escola, o mais novo vivia em casa; não demorou, o mais velho entrou para o tráfico. Pôs dinheiro em casa, ocupou o lugar do pai. Tudo aconteceu rápido. Logo foi recrutado para uma boca de fumo nova, próxima à escola da região. Buscando maior rentabilidade em tempos de crise, as bocas precisam ficar em pontos mais visíveis. Ser recrutado para participar de seu primeiro assalto não foi surpresa. As conversas com quem dividia a atividade já indicavam que esse dia estava próximo. O tráfico precisava de mais dinheiro — para manter a rede de pessoas que possui e para toda a trama de vínculos e subornos necessários para o negócio existir. Além da necessidade de armas mais potentes para inibir invasão de outros grupos. No assalto, matou e morreu na tentativa de roubar um caminhão.

As manchetes no dia seguinte não perdoaram: Rio de Janeiro selvagem! Os cliques na notícia encorajaram mais uma série de reportagens na mesma linha. Logo a repercussão ganha o embate das redes sociais. Um sociólogo, respeitado no assunto, tentou explicar os acontecimentos a partir da perspectiva de que não é possível encarar mais esse problema apenas pela lógica da repressão. Mas é tarde: a ideia de uma política de segurança que não tenha o confronto como centralidade está desacreditada. Um fanático escreve num post: já tiveram a chance de vocês com as UPPs, agora é do nosso jeito. Bandido tem que ser exterminado do convívio da sociedade! Likes infinitos por dias na postagem foram a senha para políticos que buscam se manter nas esferas de poder surfarem na onda e assumirem a mesma postura.

Essa história acima não é nova, é um perverso clichê que insiste em ser real. Estamos de volta ao Rio selvagem, quem vive e pensa a cidade conhece de perto. Já se fala que estamos de volta aos anos 1990, e desta vez com chances de ser pior pela descrença criada com o fracasso da política de segurança. Outros dizem que o problema é da classe política, e outros se guardam no tranquilo lugar de afirmar que nada cessará sem o fim do sistema capitalista. Desta forma, vai se consolidando o espaço que fortalece a ideia de Rio selvagem como única saída. E o que ele é?

O Rio selvagem é a nossa resposta ao fenômeno da violência apenas com guerra aos seus efeitos, é deixarmos de pensar as desigualdades. O Rio selvagem é voltar a acreditar que, para o subúrbio, as periferias e as favelas, a única opção é a presença da polícia e fechar os olhos para a precarização dos outros serviços públicos que fazem direitos estarem presentes. O aumento da violência num momento de crise é uma das provas de que a dimensão social tem peso grande em sua existência. Além disso, mostra que, desacompanhada de outras políticas, a ocupação policial em regiões populares, mantendo a lógica de confrontos, é ceifadora de vidas de todos os lados e mantém tudo como está.

A chegada de uma ajuda federal em curto prazo para a contenção em áreas centrais e nobres tende a ser apenas mais uma ação que reforçará o Rio selvagem — aquele onde existem regiões que são ilhas da fantasia enquanto outras são sacrificadas. Sem a dimensão social, sem pensar a cidade e sem transparência da política de segurança, teremos o mesmo efeito que já conhecemos em outros momentos. Para não se entregar a essa lógica, é preciso pensar a cidade também a partir de suas regiões, e não se entregar ao discurso que pede reação sem inteligência.

Não faltam instrumentos para isso. Dados do Instituto de Segurança Pública e de aplicativos como o Fogo Cruzado mostram o acompanhamento regional com relatórios diários. Falta cruzamento com dados da educação e das políticas sociais, como afirma Silvia Ramos. Grande parte dos 480.000 empregos que o Estado do Rio de Janeiro perdeu nos últimos 27 meses está concentrada na cidade, como aponta Mauro Osório. Essas duas falas acima são exemplos das dimensões sociais que alimentam a violência. A participação do governo federal na saída do Rio é decisiva, mas ela não pode ser traduzida apenas com a presença da polícia. Sem encarar essas dimensões, nos entregaremos ao Rio selvagem. É duro defender algo mais complexo num momento de medo, mas precisamos ter a coragem de ser contra o Rio selvagem.

O GLOBO, JULHO 2017 

July 26, 2017

Reforma oficializa fraude, diz procurador-geral do Trabalho


LAÍS ALEGRETTI TALITA FERNANDES
DE BRASÍLIA
FOLHA DE SÃO PAULO

A reforma trabalhista sancionada pelo presidente Michel Temer nesta quinta (13) beneficia os maus empregadores e institucionaliza fraudes praticadas hoje, na avaliação do procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury.

Ele critica a falta de debate sobre a reforma trabalhista no Congresso Nacional e diz que o Brasil "ainda tem uma cultura escravocrata".

Para ele, a redução de processos trabalhistas deve se dar pela melhoria na fiscalização. Se isso ocorrer, segundo Fleury, "talvez nem precisasse da Justiça do Trabalho".




Folha - Por que o MPT pediu ao presidente Michel Temer o veto total à proposta?
Ronaldo Fleury - A tramitação sem a devida discussão mostra que há um deficit democrático no debate. Além disso, todas as propostas ali estão redigidas para beneficiar o mau empregador, sempre deixando margem para uma precarização das relações de trabalho.

Defensores da reforma dizem que haverá redução no volume de ações trabalhistas.
Hoje, se você entra com ação contra a empresa pedindo três horas extras por dia e ganha uma, quem paga os custos processuais é a empresa. Com a reforma, nesse caso, você tem que pagar dois terços das custas.
Das ações trabalhistas, 50% pedem verbas rescisórias. É a empresa que manda embora e não paga porque vale a pena não pagar, economicamente.
Uma empresa que deve R$ 50 mil por verba rescisória espera a pessoa entrar na Justiça e negocia o parcelamento do valor.

Qual é a melhor forma de reduzir a judicialização?
Nossa fiscalização do trabalho é falha. Temos um deficit de um terço de auditores. Se houvesse mais fiscalização, deixariam de descumprir a lei, e aí talvez nem precisasse da Justiça do trabalho.
Na Escócia, por exemplo, o número de ações é muito pequeno. Mas o que acontece se o empregador não pagar o salário? Ele vai preso.

Algum bom exemplo mais próximo à realidade do Brasil?
O Chile. Não pela legislação, mas por uma questão mais cultural. E tem uma fiscalização muito forte. Há uma cultura empresarial não tão exploradora. O Brasil ainda tem uma cultura escravocrata. Fomos um dos últimos países a abolir a escravidão e até hoje a escravidão é uma realidade. Mesmo nos grandes centros, nas grandes empresas, a mentalidade é escravocrata.

Qual é a principal mudança do contrato intermitente?
Você só vai ganhar o tempo que você efetivamente trabalhar. O tempo que você tiver à disposição do trabalhador, sem trabalhar, você não ganha. Se você chegar ao jornal ao meio-dia e só tiver uma pauta às 17h e as 18h você entregar a reportagem, você vai ganhar só de 17h às 18h, mesmo tendo ficado das 12h às 17h à disposição da empresa.

Defensores da reforma dizem que o contrato intermitente ajusta a lei a práticas que já existem.
É o que essa reforma está fazendo: tudo que era feito como fraude está sendo institucionalizado. Poderia ser contratado a um tempo parcial. Em vez de contratar por 44 horas, eu vou contratar a pessoa por 5 horas por semana. Isso é possível desde o fim dos anos 1990.

No Congresso, um dos pontos de discussão foi a limitação, relacionada ao valor do salário da pessoa, para fixar a indenização.
Não existe essa tarifação em nenhuma outra área do direito. Se um trabalhador queima um dedo no McDonald's, o valor da indenização tem que ser diferente da carrocinha de cachorro-quente. Às vezes, R$ 1.000 para o dono da carrocinha terá um efeito pedagógico muito grande.

O governo faz a reforma sob a perspectiva de modernização. O senhor acha que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) foi modernizada?
Não. O que está se criando são estruturas legais, fórmulas de trabalho que existiam 200 anos atrás, como a própria jornada intermitente.


O senhor acha que a lei atual precisa ser modernizada?
Acho. Tem coisas que têm que ser modernizadas, como o próprio sistema sindical. A gente precisa fazer uma reforma sindical. Não é só tirar o financiamento do sindicato. O que está sendo feito hoje é o seguinte: agora empresas e sindicatos vão negociar, só que eu tiro o financiamento dos sindicatos.

O senhor é contra retirar o imposto sindical obrigatório?
Dessa forma, sou. É desigualar a relação. Sou contra o imposto sindical, mas eu sou a favor que se tire dentro de uma reforma sindical que, por exemplo, acabe com a unicidade sindical.

O governo fala que a reforma vai servir para gerar emprego. O senhor concorda?
Não gerou em lugar nenhum do mundo onde foi feita, no próprio Brasil, nos anos 1990, foi feita. Não aumentou nenhum emprego. A empregabilidade aumentou nos anos 2000 porque a economia cresceu, houve aumento da demanda chegamos quase ao pleno emprego.

Em vários países foi feita a flexibilização para gerar emprego: Espanha, México. Em todos houve apenas a troca de empregos por alternativos: intermitente, pejotização, terceirização.

O presidente Michel Temer sancionou o projeto de lei que modifica as leis trabalhistas sem nenhum veto. O que o MPT pretende fazer?




Vamos estudar com o procurador-geral da República. Nossa intenção é entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade.

July 23, 2017

STF: uma corte de doidos















CARTA CAPITAL, JULHO DE 2017 

July 20, 2017

A pinguela da pinguela


Arnaldo Bloch


Acordo. Mais uma manhã de crise. No estado. Na cidade. No país. Para onde eu olho, vejo crise. Todos foram roubados e estão com os bolsos vazios matutando por aí. Violência urbana é pouco. Violência institucional é o bicho. Roubaram os impostos de toda a gente. Roubaram nas obras. Roubaram as sobras. Roubaram as passagens de ônibus. Roubaram da cultura, das escolas, dos hospitais. E ergueram um inferno à luz do dia.

Os piores, como diz outro ditado, não são os que ladram. São os que, calados, mordem e enfiam as patas nas goelas para roubar até a comida que já se engoliu. E, junto, roubam a coragem, o espírito, a arte e o ímpeto, agora débil, de construção da cidadania. Quem imaginaria que, já vão três décadas da redemocratização, depois de tudo pelo que se lutou, cairíamos, como uns patos depenados, neste fosso?

Fosse ele só econômico, seria justo olhar para a frente e imaginar que reformas, ideias, vontade política, visão, pactos entre poderes e sociedade (ainda existe isso?), lá adiante, seriam capazes de, sob novo leme, nos levar a um porto mais seguro. Mas é só parar para pensar um segundo: o leme, em que mãos? Chegamos a um ponto em que o retrocesso que nos carregou a tantas léguas da terra firme levou, junto, um continente de conquistas que pareciam asseguradas e, de repente, escoam na arrebentação.

Tudo que se balizou nas fundações de nossa nova democracia cada vez mais velha e menos plena está atolado no limbo da catástrofe ética/moral, e seus fios já não se conectam com uma massa crítica suficientemente forte para produzir, como deveria ser, um debate que integre a sociedade como um todo. E alimente, com sua riqueza e sua energia, uma real transformação.

Sob nova direção, as tripulações das naus executiva e legislativa permanecerão as mesmas e, dos passageiros, acorrentados em porões conjunturais, poucos terão alguma voz. A galé está à mercê dos algozes de sempre.

Ou alguém acredita que, se o presidente cair, seu substituto imediato (cansei de escrever nomes) irá se revelar um grande líder unificador e, quem sabe, alçar ao convés um ministério de notáveis para, num lance de bravo capitão, desfazer a lambança e levantar velas de grandeza altaneira?

Quem crê que uma nova aliança político-partidária, imbuída de renovados sentimentos cívicos (talvez com a ajuda de uma anistia geral e irrestrita), sustentará a travessia, abraçando as melhores plataformas e unindo-se a alguns iluminados (aos quais terá restado certa decência) que, como zumbis, erram pelos ralos das rampas e das esplanadas?

Mesmo assim, por falta de opção e por uma questão de sobrevivência, a maioria tenta se segurar à noção de que, se e quando o presidente cair, e o quanto antes isso ocorrer, estaremos em prontas condições de rearrumar a casa. É uma espera perplexa, exausta, envenenada pela sensação de que é inútil, neste momento, se manifestar como se deve: nas ruas.

Para que, se a inflação está baixa? Deixe estar, que “os outros” resolvem. Aí está a força-tarefa a zelar por nós. O procurador-geral está com a faca na boca e o queijo fatiadinho. É só ir servindo que a turma faz o resto. Ninguém perde por esperar: hoje, amanhã, semana que vem, ou até o Natal, todos os presos ainda renitentes delatarão, políticos, empresários, alguns magistrados, talvez até o próprio presidente, e o ex-presidente, e todos os presidentes, os senadores, os coronéis, os encarcerados, delatarão, e todos os mortos ressuscitarão numa espécie de apocalipse travestido em paraíso.

Com o que ficaremos quando acordarmos desse sonho abissal? O que se fará, até 2018, e depois de 2018, para curar a doença que corroeu o corpo da democracia antes de ela atingir a maturidade? Como dissipar esta nuvem, esta massa de ar empedrado que cismou de estacionar na encruzilhada com um jeito de coisa ruim que nunca mais vai sair? Qualquer olhar mais atento, um ligeiro desvio para o que está dentro da casa pode esfacelar, em segundos, os mais sinceros e otimistas vislumbres de esperança.
O que se pode esperar da geração que está no poder, e das novas que estão chegando? Como manter os olhos abertos e vigilantes e tentar separar joio de trigo quando tudo parece entrelaçado numa mesma teia povoada por criaturas soturnas? Como esperar que a pinguela da pinguela se mantenha de pé se, em quase todo espectro, vicejam ainda o sangue e a lama da grande espoliação?


Há quem tente povoar o deserto com um novo sonho: o de que virá algum grande gestor (ou gestora), líder que, através da negação da política (mas, certamente, não da ideologia), empunhando a varinha mágica da eficiência e a vassoura da objetividade, dará um fim a esta velharia.

Um mundo novo, em que cultura é desperdício, carnaval é o mal, indígenas são vagabundos, Amazônia dá um baita estacionamento, armas para todo mundo etc. Afinal, o parlamento vem avançando nessas matérias, e o Brasil... Ah, é uma tendência! Trump. Macri. Macron? Crise de representatividade. Reciclagem. Sei lá, mil coisas. É melhor deixar vir, e não descuidar do estoque de alho.

O GLOBO, julho 2017 


July 19, 2017

Espanto. Pioram os relatos diariamente.




Fred Coelho


1. Cada notícia parece que vai mudar tudo, e nada muda. Ou melhor, lá dentro, onde o peito aperta, as coisas mudam o tempo inteiro. Isso quer dizer que ainda há algo aí, alguma coisa que ainda se machuca e fica ferida com os fatos repetidos. Ficamos o tempo inteiro esperando um equilíbrio que sempre será enviesado. Não há mediana possível em meio aos polos de um país machucado. Existem raivas que apagam fatos necessários, existem fatos que apagam raivas necessárias. A justiça, sentimento legítimo em uma sociedade desigual, pode reduzir tudo a um caldo vingativo. Cada acusação é respondida com outra acusação. E, ainda assim, dói.

2. De fato, estamos com os nervos à flor da pele há tempos. Para alguns, o corte é 2013. Para outros, como vimos na repercussão do indiciamento do ex-presidente Lula, desde 2002. Para muitos, desde a tarde que conduziu o atual presidente a um governo ilegítimo — basta vermos os números de popularidade do senhor que antes era a solução salvadora dos que inflaram patos amarelos pelas ruas e agora virou problema. Quer dizer, os patos pagos pela Fiesp já comemoraram a reforma trabalhista. E o Refis. E a rolagem de dívidas. E a mudança na presidência do BNDES. Pensando bem, os patos da Fiesp não andam tão decepcionados quanto os demais cidadãos.

3. Em sua famosa crônica sobre Brasília, um dos mais belos textos já escritos por estas praias, Clarice Lispector diz que “os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado”. É o espanto ainda o sentimento que nos move nesses tempos em que vivemos, há anos, o dia a dia de Brasília? É espanto ainda a palavra quando sabemos que um governo atua pesado para se manter em um cargo obtido com os mesmos expedientes que agora usam para tentar derrubá-lo? Espanta-nos ainda vermos a sangria pública de um Ministério da Cultura, abandonado em seu já mínimo orçamento, deixado na rua, sem ninguém em seu comando, sem honrar compromissos, fechando suas frentes de ação até seu fim por inanição? Espanta ver esse governo simplesmente não dar nenhuma palavra pública sobre este fato? Espanto inexplicado é pouco. Ou muito, frente à nossa anestesia. Clarice sabia. Brasília é “o perfil imóvel de uma coisa”. E essa coisa suga a força vital daquilo que nem sabemos mais o que é.

4. Mas sempre há uma vontade de superar o espanto. Porque ainda nos espantamos com a forma como a política é feita no Brasil. Não podemos abandonar a política pelo fato de nos decepcionarmos com políticos. Em política, a dose de pragmatismo, às vezes, deve ser forte, de todos os lados. Todos os crimes se acumulam em redes que cada caldo ideológico usa para atacar o outro. A boa luta política, goste ou não, é isso: ouvir, pensar, medir, agir. O que não se pode é desistir dela. Achar que o nome menos “comprometido” com a política é uma saída. Não é. Ainda é preciso se espantar como Clarice. Ainda é preciso mover o que cisma em ser imóvel.

5. Os relatos sobre o dia a dia da máquina pública pioram diariamente. Os relatos sobre a segurança pública pioram diariamente. Os relatos sobre a mistura entre religião e administração pública pioram diariamente. Os relatos sobre o investimento público em cultura pioram diariamente. Os relatos sobre a truculência social de agentes públicos pioram diariamente. Os relatos sobre os retrocessos financeiros pioram diariamente. Os relatos sobre o número de moradores de rua pioram diariamente. Os relatos sobre o número de pessoas sem casa pioram diariamente. Os relatos sobre a quantidade de armas em circulação na cidade pioram diariamente. Os relatos sobre os relatos pioram diariamente.

6. O que nos decepciona nas pessoas? É algo dentro de nós? Ou dentro do outro? A decepção vem porque não se cumpriu o esperado? A decepção é um espanto? O que me decepciona pode ser individual ou é coletivo? Ao nos decepcionar com alguém, ainda podemos mudar, ainda podemos achar que dá para seguir? Nós nos decepcionamos porque não cumpriram o que esperávamos. Na decepção há uma capa de beleza e crença na vida. A tristeza decorre do fato de que algo se rompeu. Ou de que não se entende bem o que esperar do outro, da vida, do mundo. O antídoto? Espere tudo. A decepção será apenas com você mesmo. Pode doer menos, e nos faz entender as coisas para além da superfície histérica dos eventos. Pese na balança o que o outro fez e o que você faria. Ou o que o outro fez por outros e o que você fez pelos outros. Se decepcionar pode ser uma forma de manter para sempre o espanto de Clarice. Ir além, porém, é mover o imóvel.

7. Somos um país cujo atual projeto é a frustração. Sem interesse pela cultura, sem destaque para a vida pulsante dos que criam mundos e mentes, sem reconhecimento dos nossos limites e das conversas profundas e necessárias que devemos ter para seguirmos acreditando na democracia. A frustração é o espanto com nós mesmos. Imóveis.

O GLOBO, junho 2017



July 18, 2017

pela cochlea:: Mama Cass Elliot - Dream a little dream of me



Sweet dreams till sunbeams find you
Sweet dreams that leave all worries far behind you
But in your dreams whatever they be
Dream a little dream of me

July 17, 2017

Temer, o triunfo da manobra



Zuenir Ventura, O Globo

Pior do que a vitória em si, foi a sua comemoração, se fosse o caso de separar as duas coisas.
Temer poderia ter permanecido discreto, recebendo com humildade o resultado, mas, não, preferiu afrontar a opinião pública elogiando o triunfo de uma manobra que garantiu a rejeição do relatório que o acusava na Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara.

Ao conseguir a substituição de 13 titulares da comissão pelos que votaram a seu favor, ele obteve o escore de 40 a 25. Celebrar essa operação troca-troca como “vitória da democracia e do Direito”, classificando-a como “coragem cívica dos aliados”, é optar definitivamente pela chamada “razão cínica”, aquele comportamento que mistura no mesmo pacote mentira, hipocrisia e, sobretudo, cinismo.

Escrúpulos éticos à parte, pode ter sido um feito politicamente esperto. Mas para quê, se não vai permitir que ele, chefe da Nação, possa ir a um teatro, a um jogo de futebol ou a um restaurante, sem ouvir aquele grito que o perseguiu até na Noruega, o “Fora Temer”?

Ele já demonstrou preocupação com a posteridade, falando com otimismo das supostas realizações e legado de seu governo.

Lembrei aqui outro dia que o melhor seria inspirar-se no exemplo de Itamar Franco, também ex-vice, que implantou o mais bem-sucedido plano econômico da Nova República. O “presidente do Real” saiu com tanta popularidade do governo (40% de aprovação) que ajudou a eleger um ex-ministro, Fernando Henrique Cardoso.

Já Michel Temer é um dos presidentes brasileiros mais rejeitados da História. Investigado por organização criminosa e obstrução à Justiça, está a caminho de um melancólico fim de governo, em que corre o risco de ser recordado não pelo que gostaria, mas por ter sido o primeiro presidente brasileiro a ser denunciado ao Supremo Tribunal Federal por corrupção passiva no exercício de mandato.


Reforma trabalhista é colcha de retalhos sem objetivo estratégico


por
o globo

Esta nota não trata das implicações jurídicas e sociais da reforma, amplamente documentadas por instituições acadêmicas e jurídicas, mas daquelas de natureza econômica.

É inegável a necessidade do que genericamente chamamos de reforma trabalhista. O país perdeu uma grande oportunidade de fazê-la durante a fase de expansão recente, em condições políticas e econômicas mais favoráveis.

A reforma aprovada foi produto da recessão e de uma sociedade sem a mínima coesão social. De um projeto com meia dúzia de artigos, o Congresso aprovou uma lei com mais de cem artigos, que modifica significativamente a CLT. O conjunto de medidas constitui uma colcha de retalhos que amplia a fragmentação e a falta de organicidade interna do sistema de regulação e regulamentação do mercado de trabalho brasileiro.

A literatura econômica, quando trata das implicações da reforma trabalhista, foca, em geral, quatro objetivos: produtividade, competitividade, geração de empregos e custo do trabalho.

A colcha de retalhos produzida pelo Congresso reconhece explicitamente como objetivo relevante a redução do custo do trabalho, com a flexibilização do contrato de trabalho e sua respectiva remuneração. Ela desconhece suas implicações quanto à geração de empregos, pois se sustentou exclusivamente em manifestações discursivas, não tendo sido subsidiada por um estudo próprio sobre o tema.

Ela é omissa nos temas trabalhistas fundamentais para a criação de uma dinâmica sustentada de aumento da produtividade, bem como da competitividade. Tais como a qualificação do trabalho e os mecanismos de fomento à incorporação tecnológica e a uma melhor organização do trabalho.

Do ponto de vista conjuntural, a lei deverá permitir reduzir os custos do trabalho, com provável aumento da desigualdade. Desprovida dos mecanismos que contribuam para a qualidade da dinâmica produtiva do país, ela mantém aberta a ampla possibilidade, nos próximos anos, do empresariado voltar a fazer demandas de mudanças na legislação trabalhista visando a mais reduções do custo de trabalho.

Portanto, resta a seguinte pergunta: porque somos incapazes de discutir uma reforma que preserve direitos sociais e contemple os temas da produtividade e da competitividade da economia brasileira? Entendo que, desta forma, poderíamos equacionar um crescimento de longo prazo com geração de empregos e redução da desigualdade, lastreado em uma sociedade com maior coesão social.

*Claudio Dedecca é professor titular de economia social e do trabalho da Unicamp



July 13, 2017

Nas trincheiras das escolas


Acuados por confrontos e ameaças do tráfico, docentes abandonam as salas de aula



Longe da violência. O professor Marco Aurélio, que hoje leciona no Leblon: “Em Santa Cruz, vi dois cadáveres dentro da escola e fui ameaçado de morte por um aluno"
Foto: Guilherme Pinto / Agência O Globo
Longe da violência. O professor Marco Aurélio, que hoje leciona no Leblon: “Em Santa Cruz, vi dois cadáveres dentro da escola e fui ameaçado de morte por um aluno" - Guilherme Pinto /

por
O GLOBO 


"A senhora tem que chamá-lo de Seu Macaquinho". Esse foi o conselho que a diretora de um Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI), em Senador Camará, recebeu de um líder comunitário minutos antes de ser apresentada ao chefe do tráfico local. Mônica Cristina Cezar da Silva, de 42 anos, reclamava das constantes invasões e depredações dentro do colégio por não aceitar pagar uma "taxa de segurança" de R$ 300 mensais a bandidos.

O traficante, que foi até o EDI acompanhado de seguranças armados, disse que "teria que matar alguém para isso acabar" e exigiu que a diretora lhe desse a chave da escola. Era o fim de uma carreira de 18 anos na rede municipal de ensino.

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'
Mônica encerrou a conversa e entregou o cargo no mesmo dia. Isso foi há dois anos. Foi colocada em licença médica com transtorno de ansiedade e depressão, segundo o diagnóstico psiquiátrico. A Secretaria municipal de Educação diz não ter dados sobre o êxodo de professores das salas de aula - seja por licença médica, pedidos de transferência escolar e exonerações.

São profissionais que estão desistindo de trabalhar em meio à violência cotidiana nas favelas da cidade. O departamento de recursos humanos da secretaria estima que 10% dos 935 pedidos de exonerações feitos entre janeiro e abril deste ano tenham sido decorrentes do aumento da violência, mas não há um número oficial.

- Fui diretora do EDI por três anos. Falavam para mim: "A senhora tem que fechar com a gente". Nunca fiz acordo com bandido, aí passaram a invadir o espaço. Quebravam tudo, televisões, aparelhos de ar-condicionado, computadores, pichavam as paredes com sangue, quebravam ovos, jogavam comida no chão. Já esfaquearam a minha cadeira e deixaram o facão em cima dela. Fui cinco vezes à 34ª DP (Bangu) registrar queixa. Eu dizia que precisava de ajuda, que tinha 240 bebês sob minha responsabilidade. Até que o traficante apareceu e descobri que estava completamente insano. Não deu mais para ficar - contou Mônica, que está de licença desde então.

Assim que César Benjamin assumiu a Secretaria municipal de Educação, Esporte e Lazer, no início do ano, foram convocados 825 professores, classificados em concursos, para compor o quadro da rede, com atuais 43 mil docentes. Sem isso, 23 mil crianças começariam o ano sem serem atendidas.

A princípio, esse número de professores seria suficiente. Porém, com novos pedidos de exonerações, aposentadorias e licenças médicas, a prefeitura teve que chamar mais 688 concursados. O número de profissionais de educação de licença médica é quase dez vezes essa quantidade - são mais de seis mil, cerca de 13% do total, segundo a secretaria, que não informou quantos estão de licença psiquiátrica.

Uma das justificativas da secretaria para o grande número de pedidos de exonerações é que muitos professores querem migrar do período de trabalho de 16 horas ou 22 horas e meia semanais para 40 horas semanais, o que é questionado pela coordenadora geral do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe), Suzana Gutierrez.

- Se o professor pode acumular matrículas por que ele iria se desfazer de uma para ficar com a outra somente? Para nós, o debate da violência precisa descer ao chão da escola. A prefeitura não age com transparência, não se sabe o número de profissionais que estão adoecendo por causa da exposição à violência - afirma Suzana. - São inúmeros relatos de professores que vêm desistindo de trabalhar, que estão pedindo exoneração, e de uma grande quantidade com problemas psiquiátricos e psicológicos.

Segundo a Secretaria municipal de Educação, em relação aos pedidos de licenças médicas, houve um aumento de 197%: foram 1.343 pedidos em 2014-2015 e 3.998 em 2015-2016. A pasta informou que a rede de ensino ainda necessita de 96 professores de ensino infantil, 413 de ensino fundamental para os anos iniciais e outros 179 de ensino fundamental para os anos finais.

Doutor em educação e assessor especial para a área de educação da Unesco no Brasil entre 1998 e 2009, Célio da Cunha diz que o problema da violência no entorno e dentro de escolas é crônico e vem sendo acompanhado pela entidade há pelo menos 20 anos. Ele fala das consequências negativas para os professores, que acabam sofrendo da Síndrome de Burnout, um tipo de estresse persistente relacionado a situações no ambiente de trabalho:

- Antes a principal preocupação da Unesco era o bullying. Agora, é a violência que afeta o aprendizado, a formação de adolescentes e crianças. Para os professores, a situação de tensão permanente pode levar à Síndrome de Burnout. São os baixos salários que os levam a precisar dar aulas em duas, três escolas e, no Rio, a ter 30, 40 alunos em sala num ambiente de total insegurança. A capacidade didática cai muito
.
Há grupos em redes sociais criados por profissionais que vivenciam o problema, para que cada um conte seu drama. O da professora Nívea Segreto, de 46 anos, mostra a gravidade da situação. Ela contou ao GLOBO que perdeu um bebê com cinco meses de gestação por causa do estresse crônico. Pediu exoneração e deixou a cidade com o marido para morar no interior do estado.

- Tenho 30 anos de magistério, sete na Secretaria municipal de Educação. Foram os piores sete anos da minha vida. Abandonei a cidade, pois adoeci em função da violência dentro e fora das escolas. Trabalhava no Morro dos Macacos, antes da chegada da UPP. Também trabalhei na Mangueira. Os conflitos eram constantes. Até munição encontrei sobre a mesa da minha sala. Perdi um aluno assassinado pelo tráfico. Eu estava grávida nesta época e acabei perdendo o bebê. Os meus médicos, incluindo o psiquiatra, garantem que o estresse foi a causa. Abandonei o Rio. Ainda vivo como ex-combatente de uma guerra que não acabou, tenho medo de tudo, sou extremamente sensível ao barulho, tenho pesadelos - relatou Nívea.

Nívea Segreto, que perdeu o bebê por estresse - Arquivo pessoal


Outro professor, que continua trabalhando na rede municipal e, por isso, pediu anonimato, dava aulas também no Morro dos Macacos, onde roubaram seu notebook. Ele chamou o responsável pelo aluno, que tinha levado o aparelho. Não imaginava que o pai do estudante era o chefe do tráfico no morro.

- Eu disse a ele que esperava a devolução do computador, que não continuaria trabalhando na escola se o notebook não aparecesse. O aparelho nunca foi devolvido, e eu pedi transferência para outra escola - contou.

O professor de artes cênicas Marco Aurélio Aquino da Silva, de 51 anos, chegou a escrever uma carta para o secretário César Benjamin relatando seu drama: dar aula numa escola em Santa Cruz, numa região extremamente violenta. Quando conseguiu a transferência, foi como sair do inferno e ir para o purgatório, pois ele passou a lecionar no Morro do Telégrafo, na Mangueira.

- No dia em que fui me apresentar na escola, fui parado por um grupo. Falei que era professor, que ia para a escola. Disseram que tudo bem, mas mandaram eu ligar o pisca-alerta do carro. Cheguei à escola desesperado. Pedi transferência novamente e hoje estou numa unidade no Leblon, onde pela primeira vez posso exercer meu trabalho com tranquilidade - disse. - Em Santa Cruz, perdi, num confronto com a polícia, um aluno que vi crescer. Vi dois cadáveres dentro da escola. Fui ameaçado de morte por um aluno que repreendi. Fiquei um ano e meio de licença médica.

Para compreender os motivos das movimentações dos professores na rede, o secretário César Benjamin determinou que o Departamento de Recursos Especiais comece a fazer um estudo sobre cada pedido de transferência e licença.



July 12, 2017

Cais do Valongo é o útero do país


por
O GLOBO

Quase ninguém parece ter entendido ainda a exata dimensão da importância do Cais do Valongo, agora finalmente declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Desde descoberto, não é exagero dizer que o Cais do Valongo passa a ser o lugar mais importante do Brasil.

Quantos teóricos quiseram e querem entender, até hoje, por que nosso país “não dá certo”? Quantos artigos, quantas palavras gastas para tentar entender a violência de nosso cotidiano, a corrupção em nossa cultura?

Todas as respostas estão no Cais do Valongo. Na frase do antropólogo Milton Guran: “O maior porto escravagista da história da humanidade.” Um milhão de pessoas, trazidas da África para cá, entre 1811 e 1843. Proporcionalmente, comparando com os índices demográficos daquela época e hoje, um número atualizado de 12 milhões. Os que já chegavam mortos eram enterrados de qualquer jeito ali mesmo; um enterro sanitário no chamado “Cemitério dos Pretos Novos”.

O maior porto escravagista da história da humanidade fica no Brasil. Isso explica desde o superfaturamento em obras aos assassinatos de posseiros no Pará. Desde a chacina do Carandiru ao apoio da classe média ao regime militar e a recente popularidade do conservadorismo. O maior porto escravagista da história da humanidade fica no Brasil.

A tragédia humanitária do Cais do Valongo também explica, num piscar, outro “insolúvel mistério” que tem exigido ginástica de nossos intelectuais. O de sermos “o país da impunidade”. Em Berlim, turistas fazem fotos ao lado do Memorial do Holocausto. A imensa maioria dos nazistas foi identificada e punida. E o povo alemão morre de vergonha de seu passado.

E os responsáveis pelo holocausto brasileiro? Onde estão? No Jockey Club, aplaudindo o cavalo vencedor no Grande Prêmio Brasil? Superfaturando obras no metrô? Lucrando com religiões que cobram dízimo? (A Igreja Católica, espécie de Igreja Evangélica do século XIX, foi condescendente com toda a escravidão no Brasil.) Orgulhando o país, por sua fortuna, espírito empreendedor e determinação em acabar com cracolândias a qualquer custo, nem que seja em enterros sanitários?

E as vítimas (e seus descendentes) do holocausto brasileiro? Onde estão? Lutando por cotas em universidades? Batalhando vaga de titular na seleção de futebol? Vendendo bala no trânsito? Fazendo bico de avião do tráfico? Tendo seus cinco minutos de fama durante a transmissão do desfile das escolas de samba? Apodrecendo em cadeias superlotadas? Nas madrugadas pelo Brasil, fumando crack em lugares como o próprio Cais do Valongo, como já flagrado pelas câmeras de TV?

Sendo aleijadas por balas perdidas dentro do útero da própria mãe?

Onde estão os “pretos novos”?

O Cais do Valongo é a resposta. Para tudo. Até para a também indecifrável apatia de nosso povo. E, por isso, deveria imediatamente transformar-se no epicentro do país. Congresso Nacional, Palácio do Planalto, tudo deveria mudar-se para o entorno do cais. O Valongo deveria se transformar um lugar de reflexão, até porque, por ser também nosso mais fiel espelho, nos reflete. O Valongo deveria transformar-se na nossa Mesquita de Al-Aqsa, no nosso Muro das Lamentações, no nosso Stonehenge. Nossa Acrópole. Nossa Persépolis. Nosso Memorial da Paz de Hiroshima. Nosso Ground Zero.

O Cais do Valongo é a resposta para tudo porque é onde nosso país foi gestado. É onde nosso umbigo está conectado. O Cais do Valongo é o útero do Brasil. Um útero de pedra, sangue e rotina.




July 10, 2017

Pode ser presidente quem não se elege nem prefeito?


clóvis Rossi

Folha, julho 2017

Não é uma aberração eleger presidente da República um cidadão que não conseguiria nem sequer chegar ao segundo turno, se tivesse havido, na eleição para prefeito de sua cidade?

Sim, essa República aberrante atende pelo nome de Brasil e o candidato à Prefeitura do Rio, em 2012, que não conseguiu nem 3% dos votos chama-se, sim, Rodrigo Felinto Ibarra Epitácio Maia.
Como lembrou a newsletter "Poder 360", Maia foi apenas o terceiro colocado em 2012, com 95.328 votos ou 2,94%, um décimo do que obteve o segundo colocado (Marcelo Freixo, do pequeno PSOL). Ganhou, no primeiro turno, Eduardo Paes, do PMDB.

Um candidato tão pouco apreciado pode, é claro, evoluir na carreira e tornar-se querido, até um campeão de votos. Não é o caso de Rodrigo Maia: na eleição seguinte que disputou (2014, para a Câmara de Deputados), não passou de 53.167 votos ou 0,69% dos votos válidos para deputado federal pelo Rio de Janeiro.

Ficou no 29º lugar dos 45 deputados que cabem ao Estado.

É razoável que um político tão anêmico eleitoralmente assuma a Presidência de um país de 144 milhões de eleitores?

Os conformados podem até dizer que Maia só assumirá interinamente e, assim mesmo, na hipótese de que Michel Temer seja afastado pelo Congresso, no processo por corrupção passiva a que responde.

Se se der essa hipótese, Maia aguardaria no cargo até que o Supremo Tribunal Federal decida se Temer é culpado ou inocente. Parece óbvio, no entanto, que presidente afastado não volta. É contra a natureza do processo.

Dando-se o afastamento definitivo, haverá uma eleição indireta e esse anão eleitoral virará presidente da República, se estiverem corretas as avaliações que apontam Rodrigo Maia como o favorito do esquema de poder que hoje sustenta Temer (sustenta mal mas sustenta).

Não ter votos não é o único problema do eventual futuro presidente. Ele também não tem biografia que o habilite para comandar o governo (o que, diga-se, é também o caso de Temer).

Não se conhece uma única frase (já nem digo um texto completo) em que o presidente da Câmara analise os problemas da pátria amada.

Pertence a um partido, o Democratas, que não consegue nem sequer apresentar candidato à Presidência da República desde 1989, há 28 anos, portanto. A propósito: nessa eleição, o candidato do partido, então chamado PFL, foi Aureliano Chaves e não alcançou nem 1% dos votos.

A bancada do DEM na Câmara Federal é de apenas 29 deputados, dos 513, o que dá pouco mais de 5%.

Tudo somado, é arqui-evidente que Rodrigo Maia não tem a menor representatividade –e, no entanto, a mídia está tratando de sua eventual ascensão à Presidência como se fosse normal.

Dá para entender: não importa quem seja o futuro presidente, se Temer cair (ou mesmo se ficar). A agenda do atual governo, definida pela coalizão "de facto" entre os agentes de mercados e os partidos da base da atual gestão, é mandatória.

Só quem se comprometer com ela terá chance de ser eleito. Que seja uma figura irrelevante como Maia não faz diferença.

Ele não precisa ter votos, não precisa ter programa, não precisa pensar o país. Não é exatamente o que se possa chamar de democracia.

O cheiro de pizza se espalha pelo ar




Pode ser apenas um novo balão de ensaio, mas ontem o cheiro de pizza invadiu o ar dos lugares em que a crise é acompanhada e debatida. A articulação em torno do nome de Rodrigo Maia (DEM-RJ), com o beneplácito do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), para ocupar a Presidência até o final de 2018 ganhou o necessário espaço midiático de modo a ser testada. O experimento redondo carrega dois sabores.

O primeiro destina-se a agradar o capital. Nesse sentido, a manchete do "Valor" (7/7) era mais do que expressiva: "Temer perde apoio e Maia já se articula com mercado". O texto dava conta que o presidente da Câmara teria intensificado "contatos no mercado financeiro". Não consta da notícia a reação dos contatados, mas continha o recado preciso: o deputado procuraria mostrar nos encontros que está "preparado para assumir a função, com a manutenção de equipe econômica e das reformas".

É do conhecimento geral que Maia tem pouca base e experiência para assumir o principal posto político do país. Então, é necessário assegurar que as duas principais metas do mercado estariam garantidas em suas mãos. De um lado, a manutenção da política econômica. De outro, a aprovação de duas mudanças contra os assalariados: a reforma antitrabalhista e a da Previdência.

Aqui entra a outra metade do acordão em cozimento. Para aprovar as "deformas", com diz um amigo ligado aos sindicatos, e blindar a economia, é preciso garantir uma grande base congressual. E o que desejam os parlamentares, entre eles o próprio Maia, um investigado?
Que a Lava Jato pare. Desde esse ponto de vista, não poderia ser mais conveniente a informação, também em todos os jornais, de que a Polícia Federal encerrou as atividades do grupo dedicado à operação em Curitiba. Convém lembrar, igualmente, que diversos processos foram tirados do juiz Sergio Moro nas últimas semanas.

Em outras palavras, pela primeira vez há sinais de arrefecimento do núcleo paranaense que lidera as investigações desde 2014, o que deve soar como música aos ouvidos dos congressistas. No entanto, a ofensiva contra Michel Temer precisaria seguir, para legitimar o último e decisivo ato da Mãos Limpas brasileira: condenar Lula a tempo dele perder a condição de candidato em 2018.

Para resolver o problema de excluir o lulismo da urna eletrônica, muitos interesses talvez se reúnam em torno de mais uma aventura presidencial. A primeira foi a do próprio Michel Temer, sabidamente parte de um grupo que seria alvo privilegiado da Lava Jato. Agora o forno foi ligado outra vez, mas só o tempo dirá se essa massa vai dar liga.
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July 8, 2017

‘Amelia foi muito negligente ao planejar seu voo’


Fundador do Grupo Internacional para a Recuperação de Aeronaves Históricas busca vestígios da lendária Amelia Earhart e de seu avião

por

July 6, 2017

Com saída de mais um ministro, a Cultura embarca em um navio fantasma


por Jotabê Medeiros — CARTA CAPITAL, junho 2017 

A demissão de mais um chefe da pasta federal escancara o caos gerado pela paralisia e pelo desinteresse de Temer em lidar com o setor 


Deve se sentar na cadeira de ministro da Cultura do Brasil, na próxima semana, o quarto personagem a ocupar o cargo no espaço de um ano. Na semana passada, pediu demissão o cineasta João Batista de Andrade (PPS), que estava ocupando o cargo após a demissão de Roberto Freire (PPS). Andrade saiu alegando que o MinC tinha se tornado inviável após o corte de 43% dos recursos, e também tinha se tornado território fértil de ingerências políticas (leia entrevista com o ex-ministro a seguir).

No início desta semana, a assessoria de imprensa do deputado federal paraibano André Amaral (PMDB), de 26 anos, preparava às pressas um texto com seu currículo para entregar à imprensa – Amaral dava como líquida e certa sua nomeação para o cargo ainda na sexta-feira dia 24.

Estudante de direito, Amaral chegou ao Congresso por uma série de acasos. Mal votado em seu estado (obteve pouco mais de 6 mil votos em 2014), ele era suplente em janeiro quando assumiu a vaga deixada por Manoel Júnior, que se elegeu vice-prefeito de João Pessoa.

Se estiver certo e o Ministério da Cultura cair no seu colo, cai também pelo mesmo motivo: acaso. Como o governo Temer não tem a menor familiaridade com o tema da cultura (tentou até extinguir a pasta, no ano passado) e não há mais peemedebistas disponíveis na linha de frente do golpe – estão quase todos enrolados em labirintos judiciais, com processos às pencas –, ficou aquela situação: quem sobrou no banco? Temer chegou até a pensar numa solução “Marta Suplicy reloaded”, mas a senadora recusou.
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O ex-ministro João Batista de Andrade e o candidato ao cargo, André Amaral: um passivo enorme de problemas e ingerência política (Foto: Reprodução)

Até hoje, a grande batalha cívica de André Amaral, festejado como um Forrest Gump do Congresso, foi ter ajudado a criar a Frente Parlamentar em Defesa da Vaquejada. “A vaquejada não precisa ser extinta, a vaquejada precisa ser regulamentada e humanizada”, defendeu o deputado.

A invasão dos temas da bovinocultura e da conversa para boi dormir no território da cultura federal, entretanto, não passará para a história como uma façanha exclusiva de André Amaral. O estado claudicante do ministério não vem de hoje e motivou a publicação, no último dia 16, de uma carta aberta do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura. A carta é assinada por 19 secretários de Cultura do País.

Os estados brasileiros cobram do MinC o cumprimento de contratos firmados com programas bilaterais (que envolvem participação de recursos das secretarias estaduais de Cultura e do ministério). São os seguintes: Programa Cultura Viva/Pontos de Cultura, edital Economia Criativa, edital do Sistema Nacional de Cultura, PAC das Cidades Históricas, Mapas da Cultura e até os dados para a composição do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC).

Repasses atrasados já causam uma situação de quase calamidade em alguns estados. Somente no Ceará, mais de cem pontos de cultura esperam recursos pactuados da ordem de 4,5 milhões de reais. Como é uma situação de contrapartida, o estado já tem os recursos reservados, mas depende do MinC liberar sua parte para que o contrato tenha validade. O MinC nem sequer respondeu às demandas. Essa situação se repete em outros 18 estados.

A carta dos secretários de Cultura não tem caráter político-partidário – assinam titulares que pertencem ao PMDB (como o do Rio de Janeiro) e ao PSDB (do Paraná), os dois partidos que, em tese, governam o País neste momento. O vazio que a inatividade do MinC criou está deixando “um impacto muito forte na relação federativa”, diz Fabiano dos Santos Piúba, secretário da Cultura do Ceará. “O que é preocupante é que tudo isso demonstra a percepção que se tem do lugar da cultura no desenvolvimento”, afirma o secretário.

Os secretários de Cultura reclamam não apenas verbas, mas apontam imobilismo, um ministério incapaz de aprovar um “Plano de Trabalho, responder a diligências, empenhar recursos, ordenar despesas e repassar recursos financeiros referentes aos convênios com os estados da Federação”. A situação de paralisia do MinC provoca efeitos colaterais até irônicos.

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Marcelo Calero resistiu a uma investida do decaído Geddel
e saiu (Foto: Marcelo Camargo/ABr)

No Seminário Nacional para Negociadores em Direito de Autor (organizado pelo MinC e pelo Ministério das Relações Exteriores), realizado na segunda-feira 19, em Brasília, produtores de cultura estavam abismados com uma descoberta: o País estava em vias de colocar na ilegalidade seus organismos de cobrança de direitos autorais (incluindo o Ecad).

O que eles descobriram foi o seguinte: a Lei nº 12.853/2013, com seu decreto regulamentador, estipulou dois anos (a partir da publicação do decreto, em 2015) para as associações de gestão coletiva de direitos autorais se habilitarem para seguir cobrando. Esses dois anos venceram na quarta-feira 21. A partir daí toda cobrança seria ilegal.

O Ministério da Cultura tinha a obrigação, nesse período, de ter analisado a documentação do Ecad e das outras entidades para conceder novas habilitações. Como não fez nada, a situação beira o caos, um clima de insegurança jurídica. Na quarta, às pressas, o governo publicou um decreto prorrogando as habilitações das associações de direitos autorais. O pior é que, com o anúncio do provável novo titular para esse ministério à deriva, a vaca pode, literalmente, ir para o brejo.

Só existe literatura porque existem leitores


Fred Coelho


Só existe literatura porque existem leitores. A mão da escrita atua como extensão de um olho que lê e forja mundos internos a partir de suas experiências. Ao lermos, ativamos a memórias das coisas que atravessam nossos sentidos. Somos leitores diários das escritas que produzimos constantemente com nossos corpos. Por isso lemos gestos, cheiros, superfícies, fragmentos, percursos, cidades. No caso da literatura, porém, o que lemos são fabulações que ampliam as múltiplas dimensões do que vivemos. Por ser lida dentro da vida, toda literatura, no limite, é política.

Uma matéria recente na “Folha de S. Paulo” apresentou o tema dos “leitores sensíveis”, isto é, leitores representantes de minorias cuja missão é apontar para as editoras marcas narrativas em manuscritos que, de alguma forma, prejudiquem tais grupos. Tendo como lastro crítico experiências pessoais de opressão, sexismo, racismo e outros preconceitos, tais leitores indicam às editoras os perigos que um livro de conteúdo dito inapropriado pode apresentar. Neste caso, leitores tornam-se especialistas em identidades e suas representações, zelando por algum tipo de qualidade social que, no limite, é imputado aos escritores.

Tal procedimento indica o estágio avançado de mercadoria que o “produto livro” atinge atualmente no mundo e no Brasil. A grosso modo, editoras se protegem de algum tipo de boicote ou de ver seu nome comercial ser atingido por iniciativas similares. Talvez um ponto importante para se pensar, além da questão do livro enquanto mercadoria com “selo de qualidade identitária” (um futuro adesivo nas capas dizendo “livro livre de preconceitos de qualquer ordem”?), é o fato de estarmos ajustando nossa perspectiva de leitura — e, por consequência, de escrita — a premissas identitárias que, talvez, não sejam premissas literárias. A professora e pesquisadora da Uerj Giovanna Dealtry, em texto nas redes sobre o assunto, foi direto no ponto: a diversidade não será garantida por controles de mercadorias contra processos judiciais, mas sim com a ampliação necessária de vozes e diversidades dentre escritores. Se contemplarmos apenas leitores em suas experiências pessoais, escritores serão funcionários narrativos da linguagem depurada.

O ponto aqui não é, óbvio, afirmar que não existem péssimas representações de minorias em nossa literatura (e sociedade), mas sim afirmar que a representação literária do outro não é uma simples superfície de interpretação do real. A literatura, como todas as artes, precisa por em tensão as diversas camadas de uma sociedade desigual, sabendo ser transgressora muito mais pela forma que diz do que propriamente pelo que diz. Hoje, e cada vez mais, cabe ao escritor medir exatamente a medida entre o impacto e a consciência que deseja com seus textos.

E o que é ser sensível nesse contexto? Sensível ao preconceito, por certo. Mas até que ponto negá-los colabora para uma literatura que amplie o poder fabulador e até mesmo crítico dos leitores?

Escritores e críticos de todos os gêneros e cores passaram o século XX defendendo com unhas e dentes a autonomia da literatura, do texto, da escrita, como garantia fundamental de um espaço de liberdade da cultura e do pensamento. O fascínio pela literatura, mesmo com seus erros e abismos, não esmaece frente ao surgimento de textos em que claramente o preconceito ocorre. E isso, longe de ser purismo, é justamente acreditar no contraditório que habita todos nós.

E aqui, no Brasil atual, cujo histórico de leitura ainda é baixo comparado a outros países? A ação de editoras que estão selecionando “leitores sensíveis” pode ser uma resposta ao tipo de “leitores comuns” que temos? Ou, e aí sim reside o dilema, ao tipo de escritores que temos? E se for o caso de termos cada vez mais escritores que perdem a linha do respeito contra minorias, qual o mundo que eles habitam, os valores que consomem, as ideias que circulam ao seu redor? Aliás, que tipo de leitor é o escritor contemporâneo?

Quando autores constroem personagens, seja de que tipo social, ideológico ou biológico forem, tudo será filtrado pela qualidade dessa construção. Bons escritores conseguem passar aos leitores as contradições, perversões e qualidades dessas personagens. O mal e o bem, a fúria e a gentileza, o amor e a morte, tudo isso deve ser urdido em palavras de um jeito que não resida dúvida sobre quem fala naquela história. E quem fala é a literatura. Inspiradora, monstruosa, preconceituosa, desafiadora, reveladora do que temos de melhor e pior — seja como escritores, seja como leitores. Um leitor sensível às opressões e preconceitos saberá até onde uma escrita conduz tais situações em prol de uma fabulação.

No fim das contas, todo leitor é sensível. E se aquilo que dói em sua vida está no livro lido, devemos pensar quem está nos machucando: a personagem? O narrador? O autor? A literatura? A história? Talvez, para mudarmos a literatura que lemos, precisamos, antes dos livros, mudar o mundo.

O GLOBO, JULHO 2017