Sérgio Rodrigues
Típica do ambiente maniqueísta, chapado, irrefletido e verbalmente violento das redes sociais, a onda de indignação e ódio provocada pela charge que Jean Galvão publicou na Folha no último domingo (5) tem ingredientes que a destacam da rotina e que deveriam acender um sinal de alerta.
A charge em si –descontado tudo o que a expressão "em si" tem de incompatível com uma mensagem de massa, sempre sujeita a múltiplas leituras– não é das mais notáveis em engenho, mas a meu ver consegue traduzir em tom menor algo que tende ao indizível: o estupor provocado pelo gigantesco flagelo que se abateu sobre o Rio Grande do Sul.
Refugiada da enchente no telhado de sua casa, cercada de água lamacenta por todos os lados, uma família composta de quatro pessoas contempla a desolação. À beira do desespero, pai e mãe estão mudos.
O que podem dizer os adultos, responsáveis pela segurança da família, quando reduzidos de tal forma à impotência? Cabe à filha pequena, provavelmente a mais velha, amparar o irmãozinho com lógica pueril: "Não chora, vai alagar ainda mais".
A poesia da cena –amarga– me parece residir no fato de que, para a inocência da menina, até o inevitável choro está interditado, uma vez que lágrimas poderiam agravar a inundação. Não há alívio à vista nem no mundo físico, nem no mundo emocional. A tristeza alagou tudo
É possível, claro, achar que a charge de Galvão não é tão rica assim em significados. Entendo os amigos que a consideraram de mau gosto. No entanto, que tanta gente embarque na tese de que o artista zombou da desgraça alheia me parece um sinal claro de que estamos vivendo tempos perigosamente hostis à inteligência.
Não se trata de uma burrice individual, particularizável, mas coletiva –o pior tipo, pois afeta até pessoas inegavelmente inteligentes. Afeta todo mundo, inclusive quem percebe o que está acontecendo, mas se vê impotente como a família no telhado. O problema é de linguagem.
Como sociedade, estamos perdendo na vertigem cacofônica das redes a capacidade de lidar com sutilezas. Espera-se da arte que seja prescritiva e construtiva, que suas mensagens tenham a clareza de cartilhas e manifestos, unívocas e mobilizadoras.
No Painel do Leitor de segunda (6), Galvão se desculpou: "Significa que falhei na comunicação do desenho". Mas como, sendo artista, não falhar? Tudo precisa ocupar um lugar político e social predeterminado, sob pena de vara e execração pública.
Se é charge, só pode ser humor. Se é humor, só pode ser zombaria. Se alguém zomba de uma tragédia dessa magnitude, não presta como ser humano.
Junte-se a tantas certezas o reservatório infinito de superioridade moral que costuma morar dentro dos guardiães da nova ordem e o resultado é um ambiente sufocante não só para a arte, mas para o pensamento.
Falta falar da má-fé com que os espertalhões tiram proveito político desse estreitamento cognitivo. Acredito que muitos dos que puxaram coros de ódio contra o chargista soubessem muito bem que ele não estava fazendo pouco de uma dor desmedida. E daí?
Seja para ganhar likes, seja para jogar pedra na imprensa ou ainda para desviar a atenção do público dos verdadeiros vilões do cataclismo gaúcho –os políticos negacionistas que bombardearam e continuam a bombardear todas as medidas de proteção ambiental–, explorar esse cenário de poucas luzes é um excelente negócio. Acho que estamos fritos.
FOLHA
No comments:
Post a Comment