Maurício Thuswohl
Com a intenção de passar a limpo ao menos parte dessas histórias em geral mal contadas, o governo decidiu dar fôlego ao projeto Memórias dos Massacres no Campo, lançado em 2020 pela Comissão Pastoral da Terra e pela Universidade de Brasília. Até então, o maior mérito da iniciativa foi denunciar o recrudescimento da violência rural nos últimos anos, sobretudo no governo Bolsonaro. A nova fase da pesquisa, com 2 milhões de reais de orçamento e previsão de dois anos de duração, conta com a participação do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que montou uma força-tarefa para analisar 57 chacinas ocorridas de 1985 a 2023. A parceria com a pasta, explicam os coordenadores do projeto, “é para apurar a responsabilidade criminal de mandantes e executores de crimes de assassinato configurados como massacres no campo, a partir do levantamento documental dos processos e investigações e construção de acervo audiovisual”.
O estudo dos casos abrange 11 estados,
com destaque para o Pará, onde ocorreu
a metade dos massacres (29). Os demais
episódios tiveram lugar em Rondônia (9),
Roraima (4), Minas Gerais (4), Bahia (2),
Amazonas (2), Mato Grosso (2), Rio Gran-
de do Sul (2), Amapá (1), Espírito Santo
(1) e Tocantins (1). “O principal objeti-
vo é preservar a memória e apontar a au-
sência de políticas públicas adequadas
em relação aos massacres ocorridos no
campo desde a reabertura democráti-
ca em 1985”, diz Alexandre Bernardino
Costa, doutor em Direito Constitucional
e coordenador do projeto na UnB. Além
de elencar os principais massacres, a pes-
quisa pretende entender o contexto his-
tórico e político no qual eles estão inseri-
dos. Ao mesmo tempo, busca verificar por
que os processos não são aprofundados:
“Eles se estendem no tempo, e essa moro-
sidade leva a uma não apuração efetiva e à
prescrição dos crimes contra os trabalha-
dores. Nesse sentido, o aparelho de Justi-
ça – seja no âmbito da apuração policial,
da promotoria ou da magistratura – po-
de ter sido conivente com os massacres”.
Equipes de pesquisadores nos es-
tados trabalharão sob a coordenação do
Centro de Estudos Avançados Multidis-
ciplinares da UnB na construção de levan-
tamentos documentais dos casos e pro-
cessos. A meta é a criação de um reposi-
tório de memória e a elaboração de rela-
tórios com sugestões de aperfeiçoamento
das políticas de acompanhamento dos ca-
sos de violência no campo. O projeto pre-
vê ainda etapas de divulgação e mobiliza-
ção social e a realização de um seminário
nacional para exposição dos resultados da
pesquisa e apresentação das sugestões le
gislativas e de políticas públicas aos três
poderes da República. Além do dossiê fi-
nal, que será publicado ao cabo dos dois
anos de pesquisa, estão previstas ações
como o treinamento de agentes de Segu-
rança Pública e da Justiça para lidar com
os crimes no campo, a formação e fortale-
cimento de advogados populares e a cria-
ção de programas de proteção a vítimas,
pessoas ameaçadas e testemunhas.
Integrante da coordenação da pesqui-
sa pela CPT, Euzamara Carvalho diz que
o projeto é consequência do trabalho de
documentação dos casos de conflitos e de
constituição de um acervo sobre os mas-
sacres: “Agregamos histórias coletivas de
sujeitos submetidos a constantes violên-
cias, agravadas pela defesa da propriedade
privada, o avanço do agronegócio, a ins-
tauração de megaprojetos e a expropria-
ção do meio ambiente para gerar rique-
zas para uma classe social dominante”.
Carvalho afirma que a parceria pode
contribuir para a “reversão do quadro
histórico de impunidade que permeia a
luta pela terra no Brasil” ao aproximar
a universidade e o Ministério da Justiça
dos conflitos no campo. Ela acrescenta
que “diferentes caminhos precisam ser
percorridos” para a responsabilização
dos criminosos: “A denúncia da impu-
nidade no campo é uma pauta históri-
ca e precisa ser priorizada pelo Estado,
de forma a criar caminhos sinérgicos
de atuação para o acompanhamento de
massacres, apuração dos crimes cometi-
dos, cumprimento de mandados de pri-
são dos responsáveis e atuação para di-
minuição da violência nos territórios”.
O olhar para o passado é também essen-
cial para chamar atenção para os conflitos
atuais, que se sucedem quase diariamen-
te. De acordo com um levantamento sobre
as “tensões agrárias” realizado pela CPT,
o Brasil tem hoje 1.050 conflitos no cam-
po, de Norte a Sul, a envolver 181.304 famí-
lias. O ranking da violência rural é puxa-
do pela Região Norte, com 420 conflitos,
seguida por Nordeste (324), Centro-Oes-
te (184), Sul (62) e Sudeste (60). A violência
no campo, que diminuiu nos governos de
Lula e Dilma Rousseff, voltou a crescer no
período de Michel Temer e explodiu a par-
tir do governo Bolsonaro, que incentivou
o derrame de armas e a formação de milí-
cias de fazendeiros. A CPT e outras orga-
nizações e movimentos sociais lançaram,
em 2022, a Campanha Contra a Violência
no Campo: “Foi a forma de fazer uma atua-
ção conjunta diante da gravidade dos con-
flitos, que aumentaram nos últimos anos
e ceifaram vidas em lutas”, diz Carvalho.
Embora ressalte que não se repetiu nos
últimos anos um episódio tão grave quan-
to Corumbiara ou Eldorado dos Carajás,
que deixaram como saldo, respectivamen-
te, 12 e 21 trabalhadores rurais assassina-
dos, Alexandre Costa afirma que vivemos
no País um momento de escalada a perdu-
rar por bastante tempo: “Após um arre-
fecimento nas gestões petistas, houve au-
mento significativo da violência no campo
na gestão de Temer e, depois, uma tensão
muito grande no governo Bolsonaro, com
acirramento das disputas pela terra por
fazendeiros, madeireiros e garimpeiros”.
O professor da UnB diz que a situação se
agravou com a política de incentivo à in-
vasão de terras indígenas para mineração,
a entrada do crime organizado na Amazô-
nia e a repressão à luta pela terra que ca-
racterizaram o governo anterior. Ele res-
salta ainda a dimensão ambiental da ques-
tão: “A violência está relacionada direta-
mente à expansão da fronteira agrícola no
chamado Arco do Desmatamento, que pe-
ga o Sul e o Sudoeste do Pará, passa pelo
Sul do Amazonas e se estende até o Acre”.
O deputado federal Valmir Assunção,
do PT, diz que o projeto é fundamental
para que os crimes não caiam no esque-
cimento: “Ajuda a resgatar a memória da-
queles que lutaram e perderam suas vidas
lutando”. O parlamentar, um dos líderes
nacionais do MST, considera o momento
oportuno para o governo avançar
nessa questão: “É possível agi-
lizar os processos de assenta-
mentos da reforma agrária, de
reconhecimento das áreas
indígenas e de titulação
das áreas quilombolas,
além de criar uma po-
lítica específica para
pescadores artesa-
nais e marisquei-
ros. Temos que dar um
passo adiante nessas políticas”. Do Con-
gresso, lamenta Assunção, é melhor não
esperar muita coisa. “A maioria dos par-
lamentares é reacionária e não aceita de
forma alguma que o povo pobre e traba-
lhador, que as mulheres e jovens negros,
tenham oportunidades. Esse Congresso
não tem condições de construir uma po-
lítica que crie oportunidades de fortale-
cimento de trabalhadores sem-terra, in-
dígenas e quilombolas.”
Titular da Secretaria de Acesso à Jus-
tiça, responsável pela coordenação geral
do projeto no MJSP, Sheila de Carvalho
diz que a expectativa do governo é obte
um diagnóstico preciso da violência rural
no País: “Isso permitirá a qualificação das
políticas públicas em uma lógica de pre-
venção de conflitos, conciliação e media-
ção dessas situações no campo, assim co-
mo eventuais políticas de apuração, apri-
morando a investigação e a resolução des-
ses crimes nos estados”. A partir do levan-
tamento documental e audiovisual a ser
realizado, acrescenta a secretária, a pas-
ta deverá “propor políticas de aperfeiço-
amento e acompanhamento dessas situ-
ações junto ao Estado brasileiro para me-
lhor responder aos casos, bem como au-
xiliar as unidades federativas”.
Reverter a impunidade em alguns casos
impossível, porque muitos deles já es-
tão prescritos. Outros vários estão a cami-
nho da prescrição. Costa ressalta, porém,
a importância simbólica de um posicio-
namento do governo brasileiro, até por-
que alguns processos foram ou estão sen-
do analisados em instâncias como a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. A
mais recente menção ao Brasil na CIDH
aconteceu na sessão realizada em 15 de
março, quando foi anunciada a condena-
ção do Estado brasileiro pela omissão na
morte de Antônio Tavares e no ferimen-
to de dezenas de outros militantes sem-
-terra durante a repressão policial a uma
marcha do MST no Paraná, em 2000. “Há
casos em que não existe mais a pretensão
punitiva, mas vários deles são submetidos
à avaliação das cortes internacionais, o
que gera, se não uma punição direta, pe-
lo menos a possibilidade do estabeleci-
mento da memória e da reparação para
as famílias das vítimas desses massacres.”
Integrante do Grupo Prerrogativas,
o advogado Marco Aurélio de Carvalho
afirma que tratar de outra forma os cri-
mes no campo pode ser um
fator diferencial positi-
vo para o Brasil: “É
importante que
esses delitos sejam
devidamente ape-
nados e os respon-
sáveis condenados, para que
isso não volte a ocorrer em
um futuro próximo. Que es-
ses crimes não prescrevam e
que haja um acompanhamen-
to pari passu de cada um dos an-
damentos dessas ações”. Já Costa
considera que agir rápido é crucial,
até mesmo para impedir uma onda de vio-
lência no campo, no caso de retorno da di-
reita ao poder no País: “Temos uma situa-
ção ambiental e social muito grave. Se os
órgãos de Estado não desarmarem essa
bomba-relógio durante o governo Lula,
teremos novamente esse tipo de explosão.
A pesquisa aponta essa possibilidade”. •
CARTA CAPITAL
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