José Sócrates
A tentativa de assassinato de
Cristina Kirchner e a agressão
ao irmão do presidente chile-
no, Gabriel Boric, representam a pas-
sagem ao ato depois de vários anos de
retórica pública agressiva, intolerante,
quase belicista. Lentamente, o ódio po-
lítico transformou o adversário em ini-
migo e o inimigo em inimigo radical – o
inimigo é a causa do meu ódio, ele obri-
ga-me a odiar e por isso o odeio. A sua
existência ofende-me, provoca-me, de-
safia-me. Passo a passo, a política con-
verteu-se numa espécie de guerra de ex-
termínio que ameaça o convívio entre
compatriotas e impede qualquer con-
versa ou diálogo sobre o que se está a
passar. Quando é que tudo isso come-
çou? Bom, a resposta parece-me evi-
dente – com a ascensão da extrema-di-
reita, um pouco por todo o mundo.
Por favor, nada de confusões, o proble-
ma democrático não é a polarização, mas
a violência. A primeira faz parte do jogo
democrático, a segunda tenta destruí-lo.
Desculpem usar uma palavra tão forte,
mas sempre me pareceu um pouco idiota
a queixa da polarização num regime pre-
sidencial disputado em dois turnos. To-
dos os sistemas presidenciais tendem pa-
ra o duplo polo, tal como o sistema norte-
-americano, de onde toda a América Lati-
na herdou a cultura política presidencial
(por oposição à tradição parlamentar).
Na verdade, não é isso que lamentam os
aflitos da polarização. As queixas preten-
dem apenas disfarçar a amarga frustra-
ção da direita democrática de não ter um
candidato competitivo. Percebo-os mui-
to bem, mas, se me permitem argumen-
tar, o problema é sério demais para se re-
solver esperneando. A primeira verdade
que a direita democrática tem de enfren-
tar é que o seu problema não é o proble-
ma do sistema, não é problema do regi-
me – é apenas o seu problema. E o seu
problema é estar refém da extrema-di-
reita e, nessa situação, dificilmente ga-
nhará eleições no Brasil porque perderá
o eleitor moderado, o eleitor que não faz
prévias escolhas ideológicas e que apre-
cia tudo o que é equilibrado, comedido,
sem rupturas. Esse é, verdadeiramente,
o problema da direita democrática – co-
mo se ver livre de Bolsonaro. No entre-
tanto, beberá o cálice até o fim.
Mas o mal, podemos dizer assim, é ge-
ral. Os sinais de violência no Chile e na
Argentina são os mesmos que vemos na
Europa. Na Itália, estamos à beira de vi-
ver algo nunca visto depois da Segun-
da Guerra Mundial. A extrema-direita
italiana, provavelmente, vai ser o parti-
do mais votado nas próximas eleições e
o primeiro-ministro (neste caso, a pri-
meira-ministra) sairá das fileiras do par-
tido que reclama a herança política de
Mussolini. Um pouco por toda a Europa
as dificuldades da guerra e da economia
deixam espaço livre à retórica extremis-
ta. Aqui em Portugal, o líder da extrema-
-direita, evocando um episódio históri-
co, sugeriu que talvez se devesse atirar
o primeiro-ministro pela janela. E ria-
-se, ria-se muito com a piada. Nos Esta-
dos Unidos a derrota de Trump não der-
rotou de vez a extrema-direita. Recente-
mente, tivemos de assistir ao espetácu-
lo inédito de um presidente norte-ameri-
cano a fazer um discurso, inédito e sole-
ne, com o único propósito de lembrar ao
Partido Republicano que o seu compor-
tamento político ameaça a democracia
norte-americana. A América, que sem-
pre se viu a si própria como república
exemplar, como “cidade no topo da co-
lina” iluminando o resto do mundo, en-
frenta um sério problema existencial.
Os dois incidentes, o do Chile e o da
Argentina são, portanto, para levar
muito a sério. Em particular no Brasil,
aí tão perto. As eleições brasileiras se-
rão seguidas com muito interesse em
todo o mundo, não apenas pela impor-
tância do país, mas pelo que significam
de avanço ou recuo da extrema-direita.
O que se passou nestes últimos quatro
anos foi mau demais. A política dispen-
sou o adversário e criou o inimigo. A go-
vernação foi substituída pelo combate e
pela agressão a tudo o que é diferente, o
negro, o pobre, o comunista, o homos-
sexual. A política da chamada “família
tradicional” autorizou a desconsidera-
ção da mulher. Os militares, em aproxi-
mações sucessivas, abandonaram a am-
bição de representação da nação em tro-
ca de umas quantas sinecuras no gover-
no. O que mais ouvimos nestes anos fo-
ram berros, berros contínuos que impe-
diram a política de dizer algo de humano,
algo capaz de acalmar a besta interior. A
escolha nas urnas também se fará entre
tolerância democrática e violência polí-
tica. Há coisas que só os povos podem de-
fender – e uma delas é a democracia.
CARTA CAPITAL
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