September 25, 2022

O ATAQUE DO PÓS-NEGACIONISMO

 



Segundo relatório do Instituto Ipsos,
publicado em outubro de 2018, os
brasileiros são os que mais acreditam
em fake news, dentre 27 países
analisados – 62% da população
brasileira já acreditou em um boato
compartilhado na internet. Para 2022,
o desafio promete ser as deepfakes e as
shallowfakes. A primeira é uma técnica
que, ao usar softwares de inteligência
artificial, recria sons e imagens,
resultando em áudio ou vídeo falso,
acabando com a tese de que esses tipos
de arquivos podem servir como provas,
inclusive em processos judiciais. A
segunda técnica, ao não usar softwares
de inteligência artificial, apenas
acrescenta ou remove informações de
fala ou vídeo, empregando uma nova
edição de material já existente. Nos
Estados Unidos, por exemplo, um vídeo
da democrata Nancy Pelosi, presidente
da Câmara dos Representantes e alvo
de perseguição de trumpistas durante
a invasão ao Capitólio, foi editado para
que a congressista parecesse estar
bêbada em um discurso. O vídeo teve
mais de 6,3 milhões de visualizações.

 
O Tribunal Superior Eleitoral busca
combater as fake news em 2022, mas será
uma tarefa dificílima. “Na resolução
23.610 do TSE, foram inseridos dois
artigos que se referem às fake news, o
9 e o 9A. Essa será a primeira eleição
deste artigo, que traz a possibilidade de
ser caracterizado abuso, ou seja, poder
cassar um candidato que se utiliza
de fake news e desde que seja contra
a própria Justiça Eleitoral. Esse é um
dispositivo muito pesado, considerando
todo o processo e mostra a força que
a Justiça quer para combater esse
mal”, analisa o professor Diogo Rais.

 
Para Giulia Tucci, o Telegram pode
dar mais trabalho às autoridades,
porque é bem menor a possibilidade de
controlar e monitorar algum conteúdo
problemático que for disseminado.
“Há essa quantidade de grupos e essa
movimentação que é praticamente
invisível. Quando a gente fala em
monitorar, a gente consegue monitorar
os grupos que são públicos. Tanto no
Telegram quanto no WhatsApp, é possível
criar redes de grupos que não gerem links.
Então, esses grupos não ficam públicos.
A gente não sabe nem a quantidade
de grupos que existem”,

O que motiva esses seguidores?
“E é bem verdade que parte da
surpreendente resiliência demonstrada
por Trump durante seu governo – e
que Bolsonaro ainda demonstra, apesar
de tudo – decorre da capacidade que
ambos têm de disseminar suas próprias
versões dos fatos por meio de uma
infraestrutura de informação muito mais
eficiente do que a dos seus opositores.
Mas o caminho que eu gostaria de tomar
aqui é outro. Ele consiste em examinar
o mistério dessas duas resiliências – a
do discurso de extrema direita e aquela
demonstrada pelo neoliberalismo
desde 2008 – a fim de apontar não
apenas o modo como as duas coisas se
comunicam e se retroalimentam, mas
também aquilo que está por baixo das
fake news e constitui o terreno no qual
elas prosperam”, indica o professor de
Filosofia da PUC Rodrigo Nunes, no
artigo O presente de uma ilusão, publicado
no site publicbooks.org e traduzido
em março de 2021, na revista Piauí.

 
Nunes vai direto ao ponto: “Se
a extrema direita, ao recorrer à
desinformação ou qualquer subterfúgio
parecido, conseguiu mobilizar as
paixões antissistema de milhões de
pessoas que se sentem desassistidas
e abandonadas é porque esses
sentimentos realmente existem. Isto
é, a mensagem da extrema direita só é
convincente porque grande número de
pessoas acredita que há, de fato, algo
profundamente errado com o sistema
político e econômico atual. Combater
essa mensagem não se resume,
portanto, a combater as mentiras em
que ela vem embalada; mas exige, mais
que isso, dar respostas convincentes
às questões que estão na raiz desses
sentimentos. Isso não poderá ser feito,
no entanto, enquanto continuarmos
negando a existência dessas questões”.

 
Ou se continuarmos a ignorar
a essência negacionista da nossa
nação. De acordo com a historiadora
Sônia Menezes, da Universidade
Regional do Cariri, no Ceará, o Brasil
se encontra em “uma tempestade
perfeita” a justificar o atual estado
de coisas, no qual não apenas
estamos, e, sim, somos negacionistas.

 
“Compreendo o Brasil como uma
nação negacionista, assentada em
uma estrutura de negações sobre a
qual nos organizamos com violência,
exclusões e amenizações de problemas
com os quais nos deparamos ao longo
de anos, ou séculos, na verdade, e que
demonstram a dificuldade da nossa
nação de reconhecer esses processos
problemáticos da nossa História – como
a escravização de pessoas, os sexismos
e violências de todos os tipos e os
momentos autoritários e as rupturas
democráticas que já vivemos. No meu
entendimento, demoramos muito tempo
a nos reconhecer e aceitar a dimensão
negacionista da nossa sociedade. E,
quando falo em dimensão negacionista,
percebo que ela se espraia em todas
as dimensões da própria vida, seja
nos processos sociais, nas agressões
contra negros, mulheres, indígenas,
população LGBT e nos discursos
de eufemismo que amenizam tais
violências”, ratifica a professora.

 

De 2020 para cá,
vemos a generalização
do pensamento
negacionista na ciência,
na educação, na
sociedade, para além do
negacionismo histórico
ao qual a sociedade
já estava exposta

 
De 2020 para cá, assistimos ao
que ela descreve como “uma outra
pandemia”: a generalização do
pensamento negacionista na ciência,
na educação, na sociedade, para além
do negacionismo histórico ao qual
já estava habituada. Atualmente, no
cruzamento entre História e mídia que
lhe fez estudar a negação da ditadura
militar nas redes sociais durante o
pós-doutorado, Sônia lidera um projeto
de pesquisa financiado pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico – CNPq que investiga
as emergências negacionistas na cena
pública brasileira a partir do final dos
anos 1990. “Temos o acirramento de
um processo que não é de hoje, mas
se ressaltou muito nos últimos anos,
principalmente porque estamos vivendo
um governo autoritário que cerceia
direitos, desmonta políticas públicas
afirmativas conquistadas ao longo das
últimas três décadas e desestrutura
o próprio Estado Democrático de
Direito. Esse momento político realçou
características já presentes nessa
sociedade, mas que agora emergiram
com muito mais força, sobretudo em
virtude dos vários mecanismos que
possibilitam a rápida propagação de
ideias e ideais”, sublinha.

 
Para Sônia Menezes, não há
parâmetros históricos para a
emergência das novas possibilidades
de produzir, distorcer e distribuir
informações que vemos hoje nas redes
sociais. “Nem para a existência de
várias comunidades que acabam por
disseminar essas ideias de falseamento
e negação e por criar e difundir
narrativas de ódio de forma muito
mais rápida. Essa situação atual do
Brasil, com a pandemia, foi agravada
por um governo de extrema direita e
negacionista, que se comunica com fake
news. Vivemos dois anos muito difíceis,
no processo de desparcelamento, de
desestruturação da nossa sociedade,
e só vamos conseguir dimensionar
e entender os efeitos daqui a algum
tempo”, vislumbra.

 
***

 
Se somos ludibriados por fake news, então
o negacionismo já está latente entre nós.
Segundo José Luiz Ratton, professor
do Departamento de Sociologia e
do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da UFPE, estamos vivendo
a fase do pós-negacionismo. No
negacionismo, havia uma busca por
um suposto amparo na ciência para
comprovar suas crenças. “O movimento
antivacina tentou se apropriar de um
artigo específico produzido numa
revista científica de prestígio, que foi
amplamente refutado, para gerar uma
suposta associação com o autismo. Isso
foi de uma irresponsabilidade muito
grande, porque produziu um impacto
nas pessoas quando essa informação
se difundiu e parte das pessoas passou
a sentir uma dúvida que pode ser
legítima, e é preciso uma comunicação
pública mais eficiente da ciência
com relação a isso. Antes, sempre
havia a utilização dos instrumentos
da ciência, mesmo que tivessem sido
refutados ou não tivesse passado por
comitês ou a utilização de elementos
para descaracterizar uma memória
histórica”, avalia.

 
A situação mudou. “Nos últimos 10
anos, observa-se um pós-negacionismo
que dispensa o argumento racional
e passa a negar de forma sistemática
tudo aquilo que não lhe interessa e a
utilizar de procedimentos retóricos
na arena pública, na imprensa, nas
redes sociais, que são simplesmente
ataques às pessoas que produzem
conhecimento no âmbito da ciência,
tentativa de descredibilização que são
de desconstrução das pessoas, produção
de violência simbólica e de ameaças
de violência real, que constituem uma
estratégia que obviamente alcança
um grupo de pessoas num momento
de crise. E aí nós passamos para uma
fase que pode ser chamada de pós-
negacionismo, que é como se houvesse
aquele negacionismo original, que tem
ainda uma relação com uma tentativa
racional de levantar argumentos
fundamentados através de evidências.
Agora ela é dispensada”, conclui Ratton.

 
A partir daí, surgem as ideias de pós-
verdade e de fake news. “Elas assumem
um lugar importante, não que não
houvesse mentiras antes, mas assumem
uma dimensão sistêmica produzida
intencionalmente por autoridades
no plano político e mesmo dentro
de grupos técnicos, como médicos e
operadores do Direito. Eles começam a
assumir um lugar de autoridade, mas
que, neste momento pós-negacionista,
não precisam estar ancorados em
evidências que são reconhecidas
convencionalmente pela comunidade
científica ou de experts como verdadeiras
ou como o melhor que se tem naquele
momento, para fundamentar tomadas
de decisão. Isso cria um exército de
pessoas que as divulgam de uma
maneira acrítica, que as conforta em
momento de insegurança e perplexidade
diante de uma crise. Isso não se dá
apenas em relação à Covid-19, mas em
outras dimensões, como o aquecimento
global”, completa o sociólogo.

 
Ratton é organizador, junto ao
sociólogo José Szwako, do Dicionário dos
negacionismos no Brasil (Cepe Editora),
um apanhado de mais de 100 verbetes,
escrito por dezenas de colaboradores de
diversas áreas. “O termo vem do francês
négationisme e surgiu no pós-Segunda
Guerra Mundial para caracterizar o
discurso dos que negavam o extermínio
dos judeus e outros grupos durante o
Holocausto. Posteriormente, o termo
passaria a abranger outros alvos,
não apenas no domínio da história,
mas do conhecimento científico de
modo geral, como a correlação entre
o uso do tabaco e doenças como
o câncer, a teoria da evolução, as
vacinas, as mudanças climáticas
decorrentes de ações humanas”,
explica Simone Petraglia Kropf,
pesquisadora da Fundação Oswaldo
Cruz, no verbete Negacionismo científico.

“O negacionismo científico
não deve ser confundido com a
enunciação de dúvidas, incertezas
e controvérsias legítimas, posto que
estes são ingredientes fundamentais
da produção e da certificação do
conhecimento científico. O ceticismo,
em sua perspectiva crítica de
contraposição ao dogmatismo, foi
decisivo na conformação do método
experimental a partir do qual a
ciência se constituiu historicamente
como empreendimento epistêmico,
social e institucional específico. O
negacionismo científico também
não deve ser visto como resultado da
ignorância, mas, ao contrário, como
responsável por produzi-la de modo
deliberado. Não constitui tampouco
um conjunto de alegações exóticas e
irracionais amplificadas pelas redes
sociais. Não se trata de déficit cognitivo
ou informacional”, esmiúça Simone no
livro lançado neste mês.

 
A Agência Bori – de pronúncia ‘Bóri’
e em homenagem a Carolina Bori,
psicóloga e pesquisadora brasileira
(1924-2004) – surgiu em fevereiro
de 2020, duas semanas antes da
Organização Mundial de Saúde (OMS)
decretar o status de “pandemia” para
o alastramento do SARS-CoV-2. Fruto
do encontro entre duas pesquisadoras
e jornalistas especializadas em ciência
– Sabine Righeti, do Laboratório de
Estudos Avançados em Jornalismo/
Labjor, da Unicamp, e Ana Paula
Madeira, formada em Biomedicina
e pós-graduada em Farmacologia
–, assumia a missão de conectar
jornalismo e ciência, duas áreas que a
experiência pandêmica aproximaria
à medida que novos estudos saíam e
cientistas do planeta inteiro buscavam
decifrar os mistérios da Covid-19 – que,
até março de 2022, já matou mais de
seis milhões de pessoas no mundo, das
quais 656 mil viviam no Brasil.

 
Portanto, tão logo surgiu, a Bori teve
de lidar com jornalistas, de várias áreas,
despreparados para filtrar e interpretar
informações científicas e com cientistas
sem traquejo para lidar com a imprensa
desesperada por ângulos novos para
mirar uma hecatombe em curso. Pior,
contudo, foi lidar com o arcabouço
negacionista em tempos de tragédia,
como recorda a gerente de conteúdo
da agência, a jornalista Natália Flores.

 
“Não tínhamos ideia do tamanho do
problema da desinformação, mas
conforme fomos avançando, vimos
realmente que havia, e ainda há, atores
muito bem-posicionados produzindo
esse tipo de conteúdo. Nosso papel para
mitigar a desinformação passa pelo que
acreditamos que é o papel do jornalismo
e a missão da agência, de tentar fazer
com que a nossa cultura científica
melhore na sociedade. Não combatemos
a desinformação ativamente como uma
agência de checagem, mas estamos
ali para dar a qualquer jornalista,
de qualquer veículo ou agência de
checagem, uma forma de ele fazer
seu trabalho mais rápido”, pontua.

 
Mantida com apoio de entidades
como os institutos Serrapilheira,
Ibirapitanga, Clima e Sociedade, Questão
de Ciência e o Sabin Vaccine Institute,
dos Estados Unidos, em dois anos,
a Bori montou um banco de fontes
com mais de 500 cientistas; organizou
cursos e mentorias como o programa
InfoVacina, voltado para histórias sobre
a campanha de imunização contra
a Covid-19; antecipou 288 estudos
científicos explicados (sendo algumas
dessas publicações incluídas nas
perguntas feitas por senadores durante
a CPI da Covid); capacitou mais de
250 cientistas e jornalistas; deu sua
parcela de contribuição para que o
negacionismo não nos engolisse. Nessa
seara, para Natália Flores, o início da
vacinação infantil foi um dos exemplos
cruciais da guerra das narrativas: “Foi
um momento muito complicado,
com atores posicionados por malícia,
desconsiderando as etapas do processo
de avaliar uma vacina, e num cenário em
que todo o planeta já estava vacinando
as crianças. Aí, por alguma razão, o
ministro da Saúde do Brasil convoca
um plebiscito, dando poder a pessoas
que não entendem nada de ciência
para decidir sobre aquilo, enquanto
pais e mães seguiam apavorados e na
expectativa. Inacreditável”.

 
Ou surreal, para usar uma palavra
que se encaixa tanto nessa estapafúrdia
decisão do ministro Marcelo Queiroga
(tomada, é bom lembrar, após a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária –
Anvisa determinar, em 16 de dezembro
de 2021, que a vacina da Pfizer estava
aprovada para ser aplicada nas crianças 

 entre 5 e 11 anos), como na insistência
em prescrever ivermectina no kit de
tratamento precoce. “Não falo nem
tanto da cloroquina, porque é até
interessante pensar nela como outro
tipo de desinformação, já que é fato
que, no início, em 2020, se testou a
cloroquina e havia a hipótese de que
poderia funcionar no tratamento contra
a Covid-19. Depois, quando estudos
não comprovaram que a medicação
funcionava, nosso trabalho ali foi
basicamente ensinar os jornalistas
a olhar criticamente para aqueles
estudos, ou seja, para a ciência
como processo”, aponta Natália.
“Acontece que só de ver como o
Brasil lidou com a pandemia é possível
entender que os players, os políticos,
usam as informações científicas de
forma a satisfazer os seus interesses.

 
Vimos isso nos movimentos de
reabertura do comércio, na volta às
aulas, em algumas tomadas de decisão
em que se dizia que era com base na
ciência, mas era uma decisão movida
por outros interesses políticos. E na hora
do combo do tratamento precoce vimos
que o furo estava mais embaixo. Não
havia evidência científica alguma para
comprovar a eficácia da ivermectina,
por exemplo, mas se alinhou a questão
política com a tomada daquela decisão.

 
O governo Bolsonaro tem ouvido
seletivo e investiu nessa direção sem
medir consequência alguma. Agora, é
importante pontuar que a pandemia
também mostrou o quão falhas são
as formações dos médicos em termos
científicos”, complementa a gerente de
conteúdo da agência Bori.

Talvez o estrato dos 214
milhões de habitantes
do brasil mais afetado
por esse ódio aos
direitos humanos, e
pela tática de negar
às vezes até mesmo
sua existência, sejam
os povos originários

 
Desinformar, como apostar na
ivermectina, produzida e distribuída em
larga escala e validada em comunicados
oficiais, é um dos eixos negacionistas.
Tanto que Desinformação virou um verbete
no Dicionário dos negacionismos no Brasil.

 
“Atualmente, o termo desinformação
é utilizado para denominar três
diferentes categorias: a informação
incorreta, a desinformação em si e a
má-informação. A informação incorreta
é o conteúdo falso que as pessoas
compartilham acreditando que seja
verdadeiro. Ela pode ser resultado de
uma comunicação malplanejada, de um
mal-entendido e da falta de atenção ou
de verificação dos materiais por parte
do público. Diferente da informação
incorreta, que acontece sem querer,
a desinformação é o conteúdo falso
produzido e distribuído com a intenção
de confundir ou de enganar. É a mentira
deliberada, frequentemente utilizada
para benefícios políticos e financeiros.
A má-informação, por sua vez, é o
conteúdo verdadeiro, ou parcialmente
verdadeiro, distribuído sem autorização
com o propósito de prejudicar indivíduos
ou instituições”, conceituam as
pesquisadoras da Unicamp Dayane
Machado e Leda Gitahy.

 
Os termos negacionismo e pós-verdade,
por sua vez, foram dicionarizados pela
Academia Brasileira de Letras, em julho
de 2021, mês em que 33.660 mortes por
Covid-19 foram registradas no Brasil.
Negacionismo: “Atitude tendenciosa que
consiste na recusa a aceitar a existência,
a validade ou a verdade de algo, como
eventos históricos ou fatos científicos,
apesar das evidências ou argumentos
que o comprovam”. Pós-verdade:
“Informação ou asserção que distorce
deliberadamente a verdade, ou algo
real, caracterizada pelo forte apelo à
emoção, e que, tomando como base
crenças difundidas em detrimento de
fatos apurados, tende a ser aceita como
verdadeira, influenciando a opinião
pública e comportamentos sociais.

 
Também pode ser um contexto em
que asserções, informações ou notícias
verossímeis, caracterizadas pelo forte
apelo à emoção e baseadas em crenças
pessoais, ganham destaque, sobretudo
social e político, como se fossem fatos
comprovados ou a verdade objetiva”.
Coautor do Dicionário dos negacionismos
no Brasil, o pesquisador José Szwako
relembra que a ideia de fazer uma
compilação de centenas de verbetes para
contextualizar os tempos negacionistas
surgiu no meio da pandemia: “José Luiz
Ratton e eu pensamos: vamos fazer um
dicionário, mas um que não fosse muito
acadêmico, nem voltado apenas para a
universidade, e, sim, para o público em
geral, escrito em estilo claro. Eu já vinha
estudando movimentos sociais, e é nessa
chave que já estudava o negacionismo,
pois está no meio dos movimentos
conservadores e em especial do
reacionarismo, que é uma radicalização
do conservadorismo, mais tosco e
violento. Um dos pontos fundamentais
que estávamos vendo eram os ataque
à universidade, seu parentesco com
a negação da ciência, e os ataques a
centros de pesquisas e autoridades
sanitárias, em especial a negação
sobretudo de instituições internacionais,
como a Organização das Nações Unidas
– ONU e a Organização Mundial da
Saúde – OMS, dentro da lógica de um
antiglobalismo ferrenho”.

 
Professor do Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e
pesquisador do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento – Cebrap,
Szwako é autor do verbete sobre o
anti-intelectualismo. “É uma análise
dos ataques de Jair Bolsonaro desde
as eleições, em 2018, até o fim de
2021. Na cronologia dos ataques, o
que acontece é que se percebe que o
ataque à universidade pública marca
a trajetória do bolsonarismo e esse
ataque vira um recurso político, uma
espécie de moeda eleitoral, com a
qual ele mostra para suas bases que
a universidade é uma elite, distante e,
portanto, inútil para a sociedade. No
entanto, a própria pandemia mostrou,
mais uma vez, como as universidades
são centrais para esse país, como sempre
foram. A própria redemocratização
do país passou centralmente pelas
universidades – os dois grandes partidos
desse período histórico, o PT e o PSDB,
nasceram na universidade. É claro que
na redemocratização agiram forças
sociais e populares, atores de elite,
mas a universidade foi ator central na
reconstituição do pacto democrático no
pós-ditadura”, pontua.

 
Deve ser justamente por isso que a
universidade pública atrai essa ira: pelo
seu vínculo direto com a democracia.
Ou por espelhar, de várias formas,
algumas das transformações sociais
pelas quais o Brasil passou entre 2003
– ano em que Luiz Inácio Lula da
Silva tomou posse na presidência – e
2016, quando Dilma Rousseff sofreu
um golpe e, com o impeachment, foi
substituída por Michel Temer.

 
Na cartografia do ensino superior
público, a paisagem é mais diversa e,
assim, mais semelhante à complexidade
que é o nosso país; nesse lugar, os direitos
humanos são defendidos e demandados.
“Acontece que a sociedade brasileira é
muito avessa a qualquer ideia de direitos
humanos. É uma ideia que não cola.
Somos a sociedade do ‘bandido bom é
bandido morto’, do ‘direitos humanos
para humanos direitos’. Nos grupos
reacionários, você tem a radicalidade
da extrema direita, o antiglobalismo,
o negacionismo reforçado pela agenda
conservadora de costumes e uma posição
antigênero, antiLGBT, antidireitos
sexuais e reprodutivos. O negacionismo
é um vetor nesse conjunto, uma força a
mais dando legitimidade a essa forma
de pensar que é de uma parte da nossa
sociedade já imersa num processo de
fascistização”, sustenta José Szwako.
Talvez o estrato dos 214 milhões de
habitantes do Brasil mais afetado por
esse ódio aos direitos humanos, e pela
tática de negar às vezes até mesmo sua
existência, sejam os povos originários.

 
Antes da chegada dos invasores coloniais,
quem já estava aqui, ocupando,
produzindo, vivendo no território de
Pindorama – do tupi-guarani “pindó-
rama” ou “pindó-retama”, terra ou lugar
das palmeiras – eram as milhares de
etnias indígenas.

 
“Considero negacionistas falas do tipo
‘tem muita terra para pouco índio’ ou
‘tem muito falso índio querendo terra’.
Os indígenas vêm sendo escravizados
e dizimados ao longo dos séculos e não
se fala dessa escravização, muito pelo
contrário: até hoje a crença geral é que o
atrapalha o desenvolvimento do país.
E aí o país nega a escravização e nega
o direito dos povos indígenas aos seus
territórios, o que pode ocorrer pela
não demarcação ou pela não proteção
contra invasões. Só que não é bem
negacionismo, e, sim, uma estratégia
do Estado para legitimar a invasão das
terras originariamente ocupadas. Hoje,
há três estratégias para a expropriação de
territórios: criminalização de lideranças
indígenas, assassinatos e outros crimes –
como invasão das terras ou exercício de
atividades nocivas em terras limítrofes
– e racismo”, enumera a magistrada
Andréa Bispo, que integra a Associação
Juízes para a Democracia – AJD.

 
Há 20 anos radicada no Pará, entre
2007 e 2014 ela esteve à frente de uma
vara na comarca de Paragominas, a cerca
de 300 km de Belém e próxima à Terra
Indígena Alto Rio Guaná, e assim travou
contato com indígenas das etnias Tembé
e Guajajara. Fez amizades que cultiva
até hoje e se aprofundou nos estudos e
na compreensão dos direitos dos povos
da floresta. “Quando eu era criança, as
histórias dos indígenas eram contadas de
maneira superficial e mentirosa. Nunca
aprendi, por exemplo, que eram povos
escravizados. Mas, sim, que tinham
morrido no contato com o branco,
vítimas de doenças trazidas pelos
colonizadores”, rememora Andréa. Para
ela, as histórias de O guarani e Iracema,
livros escritos por José de Alencar
em, respectivamente, 1857 e 1865,
eram inverossímeis. “Os personagens
indígenas não faziam sentido.”

 
Anos depois, já na faculdade de
Direito, aprendeu que direito, aliás,
era algo sempre negligenciado para os
indígenas. “Quando Dom João VI chegou
ao Brasil, em 1808, declarou Guerra Justa
contra os botocudos. Esse termo se refere
a várias etnias que viviam em Minas
Gerais, mas era uma guerra declarada
a todas as etnias. Entre as regras do
Diretório Pombalino, de 1758, e a criação
do Serviço de Proteção ao Índio – SPI,
em 1910, não houve legislação específica
sobre indígenas, exceto a Lei de Terras,
a 601/1850. Só que tanto o Diretório
quanto o SPI previam um absoluto
controle sobre o trabalho dos indígenas.
Eles não podiam escolher para quem
trabalhar, além de serem obrigados a
pagar dízimo para a igreja e para o diretor
dos índios de cada região, inclusive
quando cultivavam terras pessoalmente.

 
Além disso, não podiam negociar
pessoalmente a produção. A Funai, que
substituiu o SPI, também mantinha
esse controle. Na minha opinião,
isso é trabalho escravo. Por isso, digo
que desde a primeira Guerra Justa da
colônia até a Constituição Federal de 1988, os
indígenas foram escravizados”, defende.
E suas terras, invadidas, saqueadas,
encurtadas, roubadas.... “A situação
dos povos indígenas foi bastante
singular, porque em nenhum momento
a Lei de Terras contestou o fato de
serem legalmente os donos. Nela, os
indígenas teriam direito sobre suas
terras simplesmente pelo fato de serem
indígenas. Não havia necessidade da
legitimação. Mas isso não significou,
de maneira nenhuma, a garantia de
seus direitos. Foram utilizadas todas
as artimanhas possíveis para burlar
a lei e tomar posse de suas terras. O
principal argumento era o de que não
havia mais indígenas, pois confinados
em aldeamentos – que depois foram
extintos –, miscigenados e aculturados,
já não eram mais indígenas. Assim
suas terras foram sendo ocupadas
não só por posseiros, mas também
por grileiros, que se apossaram das
terras mediante falsa escritura de
propriedade”, explica Andréa Bispo.
Isso foi antes e é agora, ainda
mais quando a Amazônia segue alvo
de disputas políticas e financeiras.
Afinal, “o negacionismo é também
o negocionismo”, nas palavras do
físico Alexandre Ferreira Costa. Ele
é colaborador do Painel Brasileiro
de Mudanças Climáticas, divulgador
científico, com um canal no YouTube,
e ativista no enfrentamento ao
negacionismo climático desde 2012.

 
“A Amazônia é fundamental para
a regulagem climática em escala
continental e crucial para ciclagem de
umidade da América do Sul. E é um
enorme reservatório de carbono. A
quantidade de carbono estocada no solo
da vegetação é o equivalente a 10 anos
de emissões globais de todos os países
do mundo, incluindo China e Estados
Unidos. Esse carbono tem que ficar
ali mesmo, no solo. E tem quem diga
que ‘se derrubar a Amazônia, não tem
problema, cresce de novo’”.

 
Para ele, estamos no momento do
“negacionismo 3.0” no que se refere ao
clima. O “negacionismo 1.0” se deu nos
anos 1950, quando a Monsanto, empresa
norte-americana fundada em 1901,
começou a fazer campanhas televisivas
para promover o DDT, inseticida
fabricado sinteticamente para ser usado
contra os mosquitos transmissores da
malária e que em 1972 teve sua licença
cancelada e seu uso, proibido, pelos
órgãos reguladores de lá. Motivo: efeitos
colaterais catastróficos contra animais
e seres humanos. Nessa mesma época,
a indústria do tabaco foi a primeira a
organizar “uma ação orquestrada de
combate à ciência”, conta Alexandre.
Quem viu o seriado Mad Men, produzido
entre 2007 e 2015 pelo canal AMC, há de
lembrar como o publicitário Don Draper
(Jon Hamm) escamoteava todos os
efeitos danosos do cigarro para conceber
seus sedutores comerciais.

 
O segundo momento veio em 1989,
quando as gigantes petroquímicas
Exxon, BP, Shell e Chevron, entre outras
empresas de setores como indústria

utomobilística, mineração e energia
formaram a Global Climate Coalition
– GCC, uma coalizão global climática.
“Era, na verdade, uma ampla campanha
de enfrentamento à ciência. Tem um
documento que mostra que, para eles,
‘a vitória será alcançada’ através de
alguns pontos: a população reconhecer
incertezas; a maioria do setor industrial
estiver convencida de que não há
base sólida para mudanças na matriz
energética; quando a cobertura de
mídia refletir um equilíbrio entre
a ciência vigente e pontos de vista
‘alternativos’, que é algo que se aplica
a várias coisas que vemos até hoje; e
quando os defensores do Protocolo
de Kyoto, então vigente, aparecessem
junto à opinião pública como pessoas
fora da realidade, alarmistas, sem
credibilidade. O negacionismo científico
é um sofisticado produto de laboratório”,
testemunha Alexandre, doutor em
Ciências Atmosféricas e professor da
Universidade Federal do Ceará.
Nosso “negacionismo 3.0” eleva
à enésima potência essa fórmula.

 
“Com muito mais dinheiro, mais
orquestração no ataque e, agora,
com uma câmara de eco que antes
não existia – as redes sociais. Negar
o aquecimento global faz parte da
cartilha da alt right americana e passa
a ser, até, uma questão de auto-
identidade. Quem é de extrema
direita, tem que negar a urgência
climática e espalhar o negacionismo
climático”, comenta Alexandre.
Para essas pessoas, de nada vão
adiantar os relatórios do IPCC – The
International Panel on Climate
Change (Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas,
ramificação da ONU que analisa e
difunde a ciência do clima) ou os
alertas de jovens ativistas como a
sueca Greta Thunberg e ugandense
Vanessa Nakate, tampouco o
cometa fictício do filme Não olhe
para cima, de Adam McKay.

 
Em maio de 2021, no anúncio de uma
pesquisa encomendada pelo Ministério
da Saúde, o ministro Marcelo Queiroga
declarou: “Negacionismo é negar o
que o governo federal tem feito na
pesquisa, na ciência e na tecnologia”.
Um chiste do “pós-negacionismo”
ou, talvez, o “negacionismo 4.0”?

 
Contudo, paradoxalmente, a publicação
Dicionário dos negacionismos no Brasil, o
Observatório do Negacionismo e a
atuação de todas as fontes entrevistadas
para esta reportagem hão de com ele
concordar. É impossível esconder
como o governo tem se esmerado
para destruir a pesquisa, a ciência
e a tecnologia. Mas, na guerra das
narrativas no Brasil, em ano de eleições
presidenciais, assim como no conflito
bélico entre Rússia e Ucrânia, haverá
sempre espaço para insurgências.
Para a resistência. E para o revide.

 
DÉBoRA nASciMento e LUciAnA
VeRAS, repórteres especiais da continen
te

CONTINENTE


 

 





 

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