RESUMO] Leva de livros no bojo das celebrações dos 200 anos da Independência questiona a historiografia clássica e busca novas interpretações desse momento histórico. Os papéis centrais da crise fiscal e da atuação de outros estados que não o Rio, como Bahia e Pernambuco, no processo de emancipação revelam contextos múltiplos e complexos que ultrapassam o discurso oficial do 7 de setembro.
Em agosto de 1821, o cônego Francisco da Mãe dos Homens Carvalho conduziu uma oração na Capela Real do Rio de Janeiro, onde aconteciam as celebrações acompanhadas por dom João 6º e sua família. Naquele momento, no entanto, o monarca e sua mulher, Carlota Joaquina, já tinham voltado para Portugal depois da forte pressão das Cortes de Lisboa, que exigiam do rei a submissão a um regime constitucional.
O poder do lado de cá do Atlântico foi entregue a Pedro, então príncipe regente, encarregado pelo pai, dom João 6º, de representar a Casa de Bragança no Brasil.
Orador inflamado, o cônego não se restringiu aos rituais católicos e, diante do regente, queixou-se da crise econômica que se alastrava pelo território. O religioso reconheceu o esforço de Pedro para colocar as contas em dia, mas não tergiversou na abordagem do problema: "Toda a vossa atividade, toda a vossa economia, todos os vossos desvelos assíduos e incansáveis não poderão remediar esse horroroso déficit, que embaraça a nação".
Carvalho falava do que havia visto nas ruas cariocas: penúria e insatisfação popular resultantes, sobretudo, do descontrole das finanças sob dom João 6º. É certo que o governo joanino tinha criado impostos e aumentado encargos já existentes, para o desespero, entre outros, de proprietários de terra de províncias como Bahia e Pernambuco, que vinham obtendo lucros significativos com cana-de-açúcar, algodão e tabaco.
As medidas, porém, não foram suficientes para conter o déficit, que crescia ano a ano. Em outras palavras, os impostos subiam, mas as despesas com a Casa Real e as Forças Armadas subiam mais ainda.
A Corte recorreu então ao Banco do Brasil, que havia sido fundado em 1808, primeiro ano da família real portuguesa no Rio. Foi tamanha a avalanche de empréstimos que o governo se tornou o maior devedor do banco. Ao deixar de pagar suas dívidas, a Corte abriu a porteira para que a inflação aumentasse.
A situação se agravou com a emissão desenfreada de papel-moeda. As consequências não tardaram: além da inflação nas alturas, crise de abastecimento, aumento do custo de vida e falta (ou atraso) de pagamentos, inclusive de militares.
A magnitude da crise, relatada pelo cônego, não era novidade para o regente. Em uma carta enviada ao pai em julho de 1821, um mês antes dessa cerimônia, ele comentou a queda expressiva da fonte de recursos.
A torneira, que antes jorrava dinheiro para as celebrações luxuosas de dom João 6º e família, estava secando. Na correspondência, dizia que havia vendido seus cavalos, reduzidos de cerca de 1.300 para em torno de 150, e diminuído sua própria mesada.
Era inevitável que essa barafunda econômica levasse ao descontentamento da população do Rio e de outras províncias da porção americana do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Essa ebulição crescente foi determinante no processo da Independência, defendem Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira no livro "Adeus, Senhor Portugal: Crise do Absolutismo e a Independência do Brasil".
Os autores não são os primeiros a retratar a crise fiscal daquela época, mas se notabilizam ao dar a ela uma posição central para a deflagração de um novo momento histórico. "Adeus, Senhor Portugal" é, provavelmente, o livro mais inovador em suas conclusões entre as mais de 20 obras sobre aquele período que chegam às lojas no embalo do bicentenário.
Estudos feitos nas últimas décadas sobre a separação de Brasil e Portugal, alguns consolidados em livros neste ano, evidenciam a fragilidade de ideias reiteradas em datas comemorativas, como os 100 e os 150 anos da Independência. Parte delas volta à tona na comunicação do governo Bolsonaro sobre o bicentenário.
Diferentemente do que os leitores de certa idade aprenderam na escola, a emancipação envolveu de forma efetiva centros além de Rio de Janeiro e Lisboa, transcorreu com violência em muitas situações, contou com a participação de mulheres e negros e ganhou corpo em meio a uma economia diversificada.
Além disso tudo, o papel histórico de dom Pedro 1º está sob reavaliação: seria exagero negar ao imperador centralidade nesse processo, mas seu protagonismo reluzente tem sido relativizado.
A esse conjunto de constatações, síntese ligeira de uma nova historiografia, Cariello e Pereira adicionam a crise fiscal. "Como toda reviravolta política decisiva e traumática, uma série de modificações de longo prazo –ideológicas, institucionais e materiais–, ligadas a circunstâncias e peripécias particulares, precisam confluir para que as coisas se passassem como hoje contam os livros didáticos", escrevem.
"Mas o nexo fiscal, capaz de articular fenômenos políticos e econômicos, organiza a história melhor do que qualquer outro aspecto particular do processo. Sem ele, fica bem mais difícil conferir clareza e inteligibilidade às revoltas e aos embates que levaram à separação entre portugueses e brasileiros."
Entre boa parte dos especialistas em atividade, a cultura política do final do século 18 e começo do 19 é vista como o principal fator para impulsionar a emancipação do Brasil. Sob a influência do Iluminismo, conceitos como Constituição e igualdade ganhavam força na Europa e na América.
Cariello e Pereira não desconsideram essa onda de liberalismo, que avançava pelo Ocidente. São assertivos ao ressaltar seu impacto, mas a colocam em um outro patamar. "As ideias podem ser uma condição necessária [para grandes transformações políticas], mas nunca serão o suficiente. O estopim é gerado por crises econômicas, que têm um papel de desestabilização gigante. Isso não só no Brasil, há evidências empíricas em todos os lugares, em diferentes períodos do tempo", afirma Pereira, professor da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
"Para onde a desestabilização vai levar, depende da época. Nesse período [início do século 19], a solução é: vamos cortar as mãos do rei, no sentido orçamentário."
A opulência da família real no Rio, com festas extravagantes e títulos de nobreza distribuídos às centenas para as elites locais, explicava parte do "horroroso déficit" de que falava o cônego. Também tinham enorme peso nas contas as despesas militares, especialmente na luta a partir de 1815 para a conquista da província da Cisplatina, que mais tarde se revelou um fracasso.
No absolutismo, não existem freios institucionais para os gastos do monarca, o que dá lugar a recorrentes situações de descontrole orçamentário. Dom João 6º estava inserido nesse contexto, não era um caso à parte. Assim, política e economia, de mãos dadas, levaram o Brasil a um quadro de grande instabilidade.
"Adeus, Senhor Portugal" pode ser lido sob duas perspectivas, segundo Cariello, jornalista com passagens pela Folha e pela revista piauí. "Existe uma primeira entrada: houve essa brutal crise econômica, com inflação e perda do poder de compra, e as pessoas ficaram muito insatisfeitas, inclusive as elites, porque a farinha e a carne seca que elas compravam para seus escravizados estavam mais caras. Os soldados, por exemplo, deixaram de receber seus salários. Tudo isso teve consequências políticas."
A segunda leitura parte da mesma realidade, mas a vê com mais distanciamento. "Havia esse arranjo político do absolutismo, que criava os incentivos para a crise econômica. Para solucionar essa crise, era preciso preparar um novo arranjo institucional. Ou seja, saiu da política, passou pela economia e voltou para a política."
Depoimentos dramáticos, como a indignação do cônego, e reconstituições dos levantes contra o despotismo não bastariam para contar essa história em toda a sua complexidade. Os autores também se baseiam em números de receitas e despesas oriundos de diferentes fontes, além de variações de preços e salários, para comprovar o nó fiscal do Brasil no início dos anos 1820.
Ao longo do trabalho, iniciado em 2018, não precisaram descobrir documentos inéditos para comprovar a principal hipótese do livro. Pereira usa uma figura de linguagem para dar aparência de trivialidade a uma tarefa em nada simples. "Havia um monte de papéis espalhados. O que fizemos foi organizar esses papéis", diz.
Além do empenho de cotejar arquivos sobre o processo da Independência em busca de uma nova síntese, "Adeus, Senhor Portugal" questiona a historiografia clássica daquele período, em sintonia com o que outros pesquisadores têm realizado. Assim, ajudam a iluminar setores da sociedade que costumam ser ignorados nesse contexto.
Um dos movimentos nesse sentido é salientar a presença de grupos subalternos, como pretos e pardos, nas mobilizações do período. O livro lembra, por exemplo, Pedro da Silva Pedroso, um homem negro livre que se tornou um dos líderes dos atos antiabsolutistas da Revolução de 1817 em Pernambuco.
Também mostra aspectos pouco conhecidos de candidatos a heróis daquele tempo, como o médico Cipriano Barata. Ele participou da Conjuração Baiana em 1798 e de outros movimentos até se consagrar nas Cortes de Lisboa com discursos a favor de direitos individuais e da imprensa livre. Barata, porém, era proprietário de um escravizado.
Embora reconheçam a marca terrível da escravidão, que se perpetuou durante o Império, Cariello e Pereira não aderem ao grupo dos que associam esse momento histórico a uma espécie de imobilismo. Não defendem a ideia de que nada, na prática, tenha mudado com a Independência. Por outro lado, eles não se filiam aos que tratam o episódio com idolatria.
"Por pior que fosse aquela sociedade —e era uma sociedade escravocrata horrorosa—, aquele foi um passo para fora do autoritarismo, do absolutismo. Ainda não era uma democracia, mas um momento de revolução política no Brasil", afirma Cariello. "A superação de um primeiro tipo de autoritarismo tem que ser celebrada."
A República do Recife
"Adeus, Senhor Portugal" é, de certa forma, um tributo a Evaldo Cabral de Mello, historiador que se contrapôs fortemente à ideia de que havia uma única iniciativa de emancipação política, a via fluminense de dom Pedro 1º.
"Evaldo demonstrou que era um erro pensar na Independência apenas do ponto de vista do Rio. Outras províncias, como Bahia e Pernambuco, tiveram enorme importância no processo. Sem que o Evaldo tirasse do Rio esse protagonismo, não poderíamos ter dado o passo seguinte, de dizer que, na verdade, a crise que levaria à Independência começou como um movimento contra o Rio, em uma revolta contra o absolutismo", diz Cariello.
Ele se refere ao livro "A Outra Independência", lançado em 2004 e que agora ganha nova edição. Evaldo acompanha o processo político a partir de Pernambuco, descrevendo o que ele chama de "ciclo revolucionário da Independência", que vai da Revolução de 1817, quando uma República foi proclamada no Recife, à Confederação do Equador, em 1824, outra insurreição em busca de autonomia.
"Ao mudar nosso ponto de mirada, Evaldo escreveu uma história de Pernambuco em que se revelam interpretações inovadoras sobre o Brasil", diz Heloisa Starling, professora do Departamento de História da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), no prefácio da nova edição.
Segundo o historiador, prevaleceriam nestas terras o federalismo ou a criação de Estados regionais (no lugar de um Império unitário, como acabou ocorrendo) não fossem três fatores: "a transmigração da dinastia bragantina para o Rio; a determinação da corte fluminense de preservar a posição hegemônica recém-adquirida; e a incapacidade do Congresso de Lisboa em lidar com a questão brasileira".
Em meio à grande história narrada em "A Outra Independência", que esmiúça movimentos políticos e conflitos internos, surgem figuras extraordinárias, pernambucanos cujas trajetórias deveriam ser mais conhecidas nos demais estados do país. São os casos de Frei Caneca, líder de movimentos republicanos, fuzilado em 1825, e de Natividade Saldanha, homem negro muito culto, eleito secretário do governo da Confederação do Equador.
O passado não é livre
As últimas linhas do capítulo "Palavras Finais" dizem o seguinte: "Compreender o passado é mais do que interrogar testemunhos, vestígios e memórias. É complicar o que parece simples, mantendo viva a atenção sobre as teias, muitas vezes invisíveis, que prendem a história à política. É desvendar caminhos que possam iluminar no presente e no futuro outras independências".
Essas linhas poderiam aparecer em "A Outra Independência" ou em "Adeus, Senhor Portugal". São, na verdade, um trecho do capítulo final de "Ideias em Confronto: Embates pelo Poder na Independência do Brasil (1808-1825)", outro livro notável dessa fornada dos 200 anos.
Cecilia Helena de Salles Oliveira, professora ligada ao Museu do Ipiranga, do qual foi diretora de 2008 a 2012, se incumbiu da missão de ligar a universidade a um público mais amplo. "Ideias em Confronto" busca os leitores fora dos ambientes acadêmicos para oferecer a eles "parte da enorme produção historiográfica que tem sido feita, especialmente em universidades federais e estaduais".
Além de investigações dela própria desenvolvidas ao longo de mais de 40 anos, a professora se baseia em trabalhos de pesquisadores como João Paulo Pimenta e Vera Lúcia Nagib Bittencourt, ambos ligados a USP, e Marisa Leme, da Unesp.
Em uma das suas melhores passagens, o livro reconstitui como a versão oficial da Independência —que tem no grito do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822, seu momento de apoteose— foi uma construção idealizada por dom Pedro 1º.
Político hábil, o imperador deixou as contradições de lado para perpetuar em seus discursos o recorte histórico que lhe parecia mais favorável. No mais, os primeiros textos que descrevem aquele processo foram escritos com o intuito de agradá-lo.
"Havia, na verdade, uma gama de projetos e interpretações que não correspondiam àquela meia dúzia de protagonistas. Naquela época, a sociedade já era ampla e complexa", diz a professora.
Um dos propósitos da obra é desvincular a Independência de um episódio específico, o que não implica rejeitar a relevância do 7 de setembro. No entanto, ela aponta acontecimentos tão ou mais efetivos que o grito do Ipiranga nesse processo de emancipação, entre eles um decreto de junho de 1822 que definiu os critérios para a participação nas eleições de deputados provinciais. As medidas praticamente excluíam os portugueses do exercício da cidadania. "Na prática, o governo da Regência determinava a separação de Portugal", escreve Oliveira.
A professora também rechaça a tese tão alardeada de "continuísmo pacífico". Cita estudos recentes que apontam mais de 50 mil mortos, entre militares e civis, nas batalhas da Independência, especialmente no norte (não eram usadas as divisões Norte e Nordeste).
Nesses conflitos armados, estavam os brasileiros apartados da história convencional. Era uma sociedade múltipla do ponto de vista social e racial, como descreve a professora, "envolvendo o conjunto de homens e mulheres livres e libertos, assim como os contingentes escravizados".
Em seu capítulo conclusivo, Oliveira menciona a historiadora francesa Régine Robin, que morreu no ano passado. "O passado não é livre. Ele é regido, gerenciado, preservado, explicado, contado, celebrado ou odiado, permanece uma questão fundamental do presente." Ao completar 200 anos, a Independência do Brasil é, mais que nunca, uma questão do presente.
Alguns dos principais lançamentos do bicentenário
Adeus, Senhor Portugal: Crise do Absolutismo e a Independência do Brasil
Autores: Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira. Editora: Companhia das Letras. R$ 99,90 (416 págs.)
Almanaque do Brasil nos Tempos da Independência
Autor: Jurandir Malerba. Editora: Ática. R$ 71 (304 págs.)
As Guerras da Independência do Brasil
Autor: Leonencio Nossa. Editora: Topbooks. R$ 63 (445 págs.)
Ideias em Confronto: Embates pelo Poder na Independência do Brasil (1808-1825)
Autora: Cecilia Helena de Salles Oliveira. Todavia. R$ 75 (272 págs.)
Independência do Brasil: a História que Não Terminou
Organizadores: Antonio Carlos Mazzeo e Luiz Bernardo Pericás. Editora: Boitempo. R$ 63 (306 págs.)
Independência do Brasil: as Mulheres que Estavam Lá
Organizadoras: Heloisa Starling e Antonia Pellegrino. Editora: Bazar do Tempo. R$ 63 (224 págs.)
O Sequestro da Independência
Autores: Carlos Lima Junior, Lilia Schwarcz e Lúcia Stumpf. Editora: Companhia das Letras. R$ 99,90 (400 págs.)
Veja os relançamentos
Insultos Impressos: A Guerra dos Jornalistas na Independência 1821-1823
Autora: Isabel Lustosa. Companhia das Letras. R$ 72 (528 págs.)
A Outra Independência: Pernambuco 1817-1824
Autor: Evaldo Cabral de Mello. Editora: Todavia. R$ 95 (288 págs.)
FOLHA DE SAO PAULO
No comments:
Post a Comment