Por Maurício Thuswohl
No comando da campanha de Jair Bolsonaro, é grande a expectativa de que as “bondades” econômicas do governo dirigidas às pessoas em situação de pobreza e aos estratos com menos renda da classe média deem o impulso necessário para que o ex-capitão garanta sua ida ao segundo turno contra Lula. Na terça-feira 6, a menos de um mês da eleição, o Ministério do Desenvolvimento Regional confirmou que será autorizado o uso dos recursos do FGTS futuro – baseado na previsão do que o trabalhador ainda vai receber se continuar empregado – para o financiamento de imóveis do programa Casa Verde e Amarela. Aparentemente irresistível, a proposta pode se transformar em cilada para os trabalhadores que decidirem comprometer sua renda futura em um cenário de grande incerteza econômica. Ela vem juntar-se a medidas como a fixação provisória do valor do Auxílio Brasil em 600 reais ou a redução do preço da gasolina e das tarifas de luz, que vêm sendo estrategicamente adotadas desde julho e podem trazer dividendos eleitorais ao candidato à reeleição na reta final da campanha.
Por onde passa, Bolsonaro repete os números “fantásticos” da economia. Estes, de fato, mostram que nos últimos dois meses houve uma ligeira queda no nível de desemprego e também redução da inflação, mas as boas notícias estão longe de significar uma luz no fim do túnel para os brasileiros. Ao contrário, dizem especialistas, tudo indica que os números positivos não devem se manter no ano que vem. A melhora das últimas semanas é pontual e deriva da combinação de uma recuperação econômica natural – após a paralisia de diversos setores causada pela pandemia – com a aplicação de medidas indutivas tomadas pelo governo, como, por exemplo, o corte do ICMS, que fixou um teto de 17% e 18% para os impostos sobre energia elétrica e combustíveis. Dada a absoluta falta de garantias para 2023, a atual sensação de alívio é um canto de sereia que pode levar de vez para as profundezas as finanças de milhões de famílias, sobretudo aquelas que vivem com salário mínimo ou dependem do auxílio emergencial.
naro, a proposta de Orçamento da União
para 2023, enviada ao Congresso pelo
Ministério da Economia no último dia
de agosto, não prevê a continuidade dos
600 reais pagos atualmente pelo Auxílio
Brasil. Segundo o documento, a partir de
janeiro o valor médio do benefício voltará
a 405 reais, embora Bolsonaro tenha pro-
metido “vender estatais para complemen-
tar isso daí” e manter o valor atual. O mi-
nistro Paulo Guedes, por sua vez, valeu-
-se da guerra entre Rússia e Ucrânia para
sugerir a prorrogação no ano que vem do
estado de emergência em vigor no Brasil.
“Se a guerra continua, prorroga o estado
de calamidade e paga os 600 reais”, vati-
cinou. Segundo a estimativa do próprio
governo, serão necessários 160 bilhões de
reais para manter o Auxílio Brasil com o
atual valor ao longo de 2023.
Já o salário mínimo, de acordo com a
proposta orçamentária, chegará ao últi-
mo ano de mandato de Bolsonaro sem au-
mento real, com valor estipulado em 1.302
reais a partir de janeiro. Mais uma vez ha-
verá apenas a reposição para o trabalha-
dor das perdas com a inflação. Para fazer
a correção, o governo tomou como base o
INPC, indicador que aponta a inflação pa-
ra quem ganha até cinco salários mínimos
e que, segundo estimativas da equipe de
Guedes, terminará o ano em 7,41%. Outro
compromisso de Bolsonaro que ficou de
fora do Orçamento de 2023 foi o reajuste
da tabela do Imposto de Renda para pes-
soa física, defasada em 31,3% desde o iní-
cio de seu governo. Apesar da promessa de
mínimos, hoje no valor de 6.060 reais, o
limite para o próximo ano permanecerá
em 1.903 reais mensais.
Diretor técnico do Dieese, Fausto
Augusto Júnior diz não ter “a menor dú-
vida” de que as famílias de baixa renda
enfrentarão muitas dificuldades no ano
que vem. “Estamos diante de um proces-
so de desconstrução de políticas ativas de
aumento da renda e redução da pobreza”,
afirma. Três pilares que buscam garan-
tir a elevação do padrão de vida da maio-
ria dos brasileiros são atingidos: “Foi
deixada de lado a importante política de
valorização do salário mínimo. A tabela
do IR leva cada vez mais à cobrança do
imposto para as camadas da classe mé-
dia mais baixa, o que retira sua renda. E,
por fim, a manutenção do Auxílio Brasil
é fundamental para o enfrentamento da
extrema pobreza e da fome, a atingir mais
de 33 milhões de brasileiros”.
No início de setembro, o governo anun-
ciou a inclusão de mais 804 mil famílias
no Auxílio Brasil, elevando a 21 milhões o
número de beneficiadas. Para todas elas,
a sereia canta com requinte de crueldade
ao acenar com a possibilidade de obtenção
de empréstimos descontados diretamente
na folha da ajuda emergencial. Segundo a
proposta, o beneficiário poderá empenhar
para o pagamento do empréstimo até 40%
do valor mensal que recebe, fixado em 400
reais, uma vez que os 600 reais pagos atu-
almente só permanecerão até dezembro.
O detalhe onde o diabo habita é que o go-
verno não determinou um teto para os ju-
ros a serem cobrados pelos consignados.
Por isso, operadoras financeiras mais ga-
nanciosas caçam clientes nas filas do rece-
bimento do Auxílio Brasil com propostas
que preveem juros escorchantes de 4,96%
ao mês (78,8% ao ano). A título de exem-
plo, os juros cobrados pelos grandes ban-
cos nos empréstimos consignados a apo-
sentados e pensionistas é de 2,14% ao mês.
O elevado risco de inadimplência e a
“preocupação com o endividamento de
famílias em condição de vulnerabilidade
social” foram alegados por grandes ban-
cos como Bradesco, Itaú e Santander, en-
tre outros, que em conjunto recusaram a
proposta de engajamento do governo. Se-
gundo o Ministério da Cidadania, 17 ins-
tituições se habilitaram a oferecer o con-
signado, mas a lista desses bancos não foi
divulgada até o fechamento desta edição.
Quanto aos riscos, Bolsonaro deixou cla-
ro no decreto a intenção de tirar o gover-
no da reta: “A responsabilidade pelo pa-
gamento dos empréstimos e dos finan-
ciamentos será direta e exclusivamente
do beneficiário. A União não será respon-
sabilizada, ainda que subsidiariamente,
em qualquer hipótese”.
Maldade pura, segundo especialistas.
Ione Amorim, coordenadora do progra-
ma de Serviços Financeiros do Idec, ava-
lia que o crédito consignado aos benefi-
ciários do Auxílio Brasil representa ris-
co mesmo que se defina um teto de juros:
“A arapuca para os pobres está armada em
qualquer cenário. Até o fim de dezembro,
os recursos destinados à política de trans-
ferência de renda para 2023 podem sofrer
reduções e comprometer o pagamento
do benefício no próximo ano. Neste caso,
nem o crédito nem o benefício compro-
metido com as parcelas de crédito esta-
rão garantidos”, diz. Fausto Júnior acres-
centa: “Quando se abre o crédito desse jei-
to, sem nenhum tipo de mediação, isso vai
se transformar lá na frente em uma forma
de retirar parte da renda que vem dos pro-
gramas sociais para pagar uma taxa de ju-
ros que é uma das mais altas do mund
tantes da população brasileira”.
A concessão irresponsável de crédito
a quem provavelmente não conseguirá
pagar deverá agravar no ano que vem um
problema que já atinge em cheio a eco-
nomia brasileira. Um levantamento di-
vulgado, em agosto, pela Confederação
Nacional do Comércio revelou que, até a
metade do ano, 80% das famílias tinham
dívidas acumuladas e 29% delas se en-
contravam em menor ou maior grau de
inadimplência. “Isso vai reduzir o cres-
cimento econômico no ano que vem
porque compromete o consumo. Não
há perspectiva de melhora”, diz Izis
Ferreira, responsável pelo estudo.
Do total de brasileiros endividados,
85,4% devem às empresas de cartões
de crédito que praticam taxas de juro
anuais superiores a 300%. A novidade é
a crescente presença de quem ganha sa-
lário mínimo, grupo que hoje represen-
ta 12,2% dos inadimplentes. “A popula-
ção de baixa renda sofreu forte redução
no poder de compra nos últimos quatro
anos, com inflação acumulada, ausên-
cia de aumento real do salário mínimo
e elevação das taxas de juro. O crédito
caro do cartão foi a alternativa de muitas
famílias para garantir a sobrevivência,
convertendo-se em outra arapuca para
a população, que deixou de pagar tam-
bém os serviços essenciais de água, ener-
gia elétrica e gás, além do aluguel de mo-
radia”, lamenta Amorim.
O economista Luiz Gonzaga Belluzzo,
consultor editorial de CartaCapital,
observa que, após um período muito lon-
go de desempenho ruim da economia na
geração de renda e emprego, “as famí-
lias têm de se defender de alguma manei-
se transformará em um obstáculo para
que a economia cresça mais rápido, por-
que impõe um limite para o gasto das fa-
mílias que têm boa parte da renda captu-
rada pelo serviço da dívida”, explica. Para
o economista, um eventual novo governo
terá um abacaxi para descascar: “Supon-
do que se aumente o gasto público para
sanar as várias deficiências que a econo-
mia tem na infraestrutura e nas políticas
sociais, isso na verdade vai ser converti-
do em pagamento da dívida”.
Belluzzo diz ser “inevitável” que a fatu-
ra seja paga ao longo de 2023, e apresenta
uma sugestão ao próximo presidente: “Há
que se pensar em um programa de rees-
truturação da dívida. O governo pode ban-
car essa reestruturação, sobretudo para os
mais pobres. Não é tão difícil de fazer por-
que o governo tem os instrumentos para
isso, como o Banco Central. Esse proble-
ma vai se refletir no desempenho da eco-
nomia no ano que vem, se não houver ne-
nhuma forma de contornar os obstáculos
que Bolsonaro está criando para uma re-
tomada do crescimento com mais solidez”.
O experiente economista critica par-
te da mídia, que só analisa a economia
no curto prazo. “Se observarmos em
uma perspectiva mais longa veremos
que o PIB de 2022 provavelmente não
vai sequer sombrear o PIB de 2013”, diz.
Belluzzo avalia ainda que os atuais efei-
tos sobre a renda e o emprego, sobretu-
do das camadas menos favorecidas da po-
pulação, são tênues: “As coisas não estão
boas como alguns estão dizendo. É claro
que os estímulos que foram empregados,
inclusive com a antecipação do FGTS e o
pagamento do auxílio emergencial, têm
um impacto no consumo, mas os núme-
ros ainda estão muito longe dos observa-
dos no período entre 2003 e 2013, mesmo
levando em conta a desaceleração a par-
tir de 2010. Mas o governo e parte da mí-
dia comemoram qualquer coisa. Daqui a
pouco vão comemorar até gol contra”.
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