September 7, 2022

Pinturas excluíram povo e violência para criar mito do 7 de Setembro

 



Oscar Pilagallo

livro "O Sequestro da Independência" analisa como a iconografia produzida a respeito da separação do Brasil de Portugal, sobretudo o famoso quadro "Independência ou Morte!", de Pedro Américo, contribuiu para forjar uma visão idealizada do processo de emancipação, atribuindo todo o protagonismo ao "brado retumbante" de dom Pedro em 7 de Setembro, o que apaga os traços de participações populares de destaque antes e depois dessa data e a violência com que foram reprimidas.

A iconografia da Independência do Brasil contribui para fixar a interpretação de que a emancipação política do país teria sido pacífica, fruto do gesto de um príncipe europeu e centrada em um único evento, o tal "brado retumbante" do Sete de Setembro ao qual se refere o Hino Nacional.

A história, no entanto, não se deu bem assim. Tratou-se de um processo que começou antes e terminou depois do grito de dom Pedro 1º em 1822 e em que não faltaram violência e participação popular. Se tais aspectos não se integram à memória nacional é por não estarem em consonância com o projeto conservador traduzido na cena idealizada às margens do Ipiranga.

Desde o sesquicentenário da Independência, em 1972, uma nova historiografia se dedica a enfrentar a visão oficial, olhando o Brasil do século 19 para além do que acontecia ao redor da Corte no Rio de Janeiro. "O Sequestro da Independência", de Carlos Lima Jr., Lilia M. Schwarcz e Lúcia K. Stumpf, explora a mesma vereda, agregando a análise das pinturas que retratam momentos emblemáticos da monarquia.

Valendo-se das competências complementares dos autores —historiadores da arte e antropólogos—, o livro analisa dezenas de imagens, mas se debruça em especial sobre "Independência ou Morte!", de Pedro Américo, a obra que melhor sintetiza o mito em que se transformou o Sete de Setembro.

Embora tenha status de documento em livros didáticos, a célebre tela —em que o príncipe aparece montado em seu cavalo no alto da colina, de espada em punho, diante da tropa— não retrata a verdade factual. Concluída às vésperas da Proclamação da República por encomenda de dom Pedro 2º, mais de 60 anos após o evento, a pintura romantiza o papel do filho do imperador.

Antecipando-se às críticas, Pedro Américo procurou esvaziá-las ao registrar por escrito as razões políticas que determinaram suas escolhas estéticas. Colocar dom Pedro sobre um asno, a hipótese mais provável, não faria jus à "importância do cavaleiro". Da mesma maneira, aludir ao seu "incômodo gástrico" seria uma menção "indigna da história, contrária à intenção moral da pintura".

São dois exemplos do viés do artista, para quem "a realidade inspira e não escraviza o pintor". Não há erros, portanto, como às vezes se aponta ingenuamente, mas escolhas, que visaram atender à encomenda. Segundo os autores, a pintura "foi construída com a função de unificar sentimentos —negar divisões, dissolver conflitos e amplificar uma cena mundana transformando-a em triunfal".

Produzido em Florença, na Itália, "Independência ou Morte!" percorreu um longo e sinuoso caminho até chegar ao edifício-monumento neomaneirista do Museu do Ipiranga, inaugurado em 1895. Apresentado com pompa à realeza europeia em 1888, o quadro passou alguns anos enrolado em um depósito antes de ser novamente exposto ao público.

Foi só no centenário da Independência, em 1922, com a reabertura do museu após prolongada reforma, que a pintura passou a adquirir um sentido histórico mais definido e definitivo, atrelado à São Paulo da Semana de Arte Moderna, que aproveitou a efeméride para celebrar uma brasilidade que se afirmava em oposição à cultura lusitana.

Peça central do museu, a tela de Pedro Américo cumpriu papel estratégico na concepção do então diretor da instituição, Afonso d’Escragnolle Taunay, a quem coube, a partir de 1917, selecionar e comissionar obras que dessem a São Paulo protagonismo na história do Brasil, fazendo o estado rivalizar com o Rio de Janeiro, que então abrigava a capital da República.

Taunay orientava pessoalmente os artistas, de modo que eles dessem forma à sua visão da história, marcada pelo heroísmo dos personagens de origem europeia. Pesquisava imagens de referência e supervisionava os trabalhos, com frequência exigindo mudanças que dignificassem os retratados, fossem eles defensores da Independência ou bandeirantes.

A pintura de Pedro Américo se encaixava perfeitamente na moldura ideológica do curador. O povo, por exemplo, não aparece em "O Grito do Ipiranga", como o quadro é mais conhecido, a não ser representado pelo observador que, como sugerido, se surpreende diante de um feito histórico cuja dimensão ignora.

O processo de Independência, porém, contou com a participação popular, tanto em revoluções que a precederam como em proclamações posteriores à data oficial.

Entre as primeiras, houve a Conjuração Baiana de 1798, que teve a adesão de alfaiates, escravos alforriados e militares de baixa patente, e a Revolução Pernambucana de 1817, que contou com os descontentes com um sistema tributário que transferia recursos do Nordeste para o Rio. Ambas as revoltas foram influenciadas pelo Iluminismo francês e pela independência americana de 1776.

no pátio de uma cidade, uma multidão ergue os braços para o ar, celebrando. no canto da imagem, um homem ampara um homem negro que está ao chão, ferido
‘O Primeiro Passo para a Independência da Bahia’ (1930), de Antônio Parreiras, mostra celebração em Cachoeira, na Bahia - 'O Sequestro da Independência'/Reprodução

Entre as segundas, pode-se citar a proclamação da Independência na Bahia, em 2 de julho de 1823. Lima, Schwarcz e Stumpf sublinham o contraste entre o Sete de Setembro e o Dois de Julho ao comparar o quadro de Pedro Américo com o de Antônio Parreiras, de 1930, intitulado "O Primeiro Passo para a Independência da Bahia".

Na composição, que tem como palco a praça central da cidade de Cachoeira, "homens, mulheres e crianças; padres, civis e militares; brancos, indígenas e negros, aparecem todos na cena e com protagonismos semelhante", escrevem os autores. "Aqui é o povo, a sociedade civil, que conquista a Independência, e não um grupo de militares perdidos numa paragem erma e distante na tímida capital dos paulistas."

A relevância dessas outras independências nunca ultrapassou fronteiras regionais. Em que pese o esforço acadêmico da nova historiografia, para o qual "O Sequestro da Independência" colabora, a força da interpretação oficial —aquela que consta dos versos ufanistas do Hino— continua dominante, o que fica evidente nos preparativos para a comemoração do bicentenário.

Cada época tende a se apropriar da história, adaptando os aparatos simbólicos da nação, de maneira a melhor servir ao presente e projetar o futuro. O quadro de Pedro Américo tem se prestado a tal manipulação.

Em 1922, em plena República, a celebração da monarquia, que seria anacrônica, deu lugar ao enaltecimento da liberdade e da autonomia. Em 1972, durante a ditadura militar, o governo deflagrou uma campanha para salientar o elemento militar da pintura, como se pretendesse naturalizar a presença de fardados no comando do país.

Às vésperas do bicentenário, a história de 50 anos atrás se repete. "O Brasil vive sob o jugo de um governo autoritário e retrógrado, que tem ‘sequestrado’ não só o significado da pintura de Pedro Américo, como a história da Independência", avaliam os autores. Eles identificam na leitura oficial de hoje "um extremismo de análise do evento que foi convertido numa sorte de ato militar, no sentido de que o Exército surge como a única instituição capaz de ‘pôr as coisas em ordem’".

O livro cita um manual de instruções do governo sobre como a identidade visual da Independência deve ser utilizada. Diz um trecho: "Assim como até a espada de um príncipe se desgasta e demanda nova forja, a identidade de uma nação requer cuidados para se manter rija". E outro: "O brasileiro quer preservar a independência de seus valores, a soberania de seu lar, a liberdade de educar seus filhos. Soberania é ser livre".

Os autores notam que, no primeiro trecho, a mensagem que se quer passar é que é responsabilidade do governo "forjar, no sentido de inventar do nada, um novo Estado, sempre que necessário". No segundo, as palavras "soberania" e "liberdade" remetem à movimentação política do presidente Jair Bolsonaro, que as usa para desafiar instituições democráticas, como o Supremo Tribunal Federal.

A retórica bolsonarista é consistente com a prática de seu governo e entorno. Desde o ano passado, o Sete de Setembro tem sido usado por apoiadores do presidente como instrumento de intimidação, tanto que a hipótese de um golpe militar passou a ser monitorada e noticiada com frequência pela imprensa.

Em 2021, na abertura das comemorações do bicentenário da Independência, pela primeira vez desde a redemocratização de 1985, um presidente apoiava abertamente um ato antidemocrático, registram os autores. "Na verdade, convocava."

Ancorados em Claude Lévi-Strauss, Lima, Schwarcz e Stumpf, que já haviam testado a bem-sucedida parceria em "A Batalha do Avaí (2013), tratam o Sete de Setembro como um mito. Para o etnólogo francês, a história tem, nas sociedades ocidentais, a mesma centralidade que a mitologia em outras sociedades. Para os autores, o Sete de Setembro funciona como um mito fundacional, "aquele que permite fazer as pazes com o passado, acomodar o presente e ainda prever o futuro".

Ao dissecar a construção do mito, "O Sequestro da Independência" é leitura essencial para quem pretende, ou não, visitar o reformado Museu do Ipiranga.


FOLHA 

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