September 24, 2022

Luto e catarse

 

Despedida. A multidão espera resignada. Muitos falam em captar o “clima” da nação, como se bastasse um termômetro. A morte de Elizabeth se segue à pandemia - Imagem: Loic Venance/AFP e The Royal Family Official  
 
Por Rachel Cooke ... 
O camarote da imprensa pa-
ra o velório da rainha é
uma construção discreta
de madeira, pintada para
combinar perfeitamente
com as antigas paredes de Westminster
Hall. Embora estivesse a uma distância
discreta do catafalco em que repousava
seu caixão, o local oferece um ponto de
vista único, semelhante a estar nos bas-
tidores de um teatro. Aqui pudemos ob-
servar tanto a plateia, quero dizer, o pú-
blico, que desfila silenciosamente, quan-
to os atores, na forma da guarda que
mantém vigília ininterrupta.
 
Os jornalistas não precisaram fazer fi-
la para o velório de corpo presente da rai-
nha, mas as vagas disponíveis são difíceis
de encontrar, e por isso estava ali às 11 ho-
ras da noite. Achei que poderia me inco-
modar com isso, mas vejo que não. De al-
guma forma, a hora tardia só reforçou a
atmosfera, ao mesmo tempo eletrizante
e inefavelmente pacífica. Como explicá-
-la? Como colocar em palavras?
 
Em casa, é fácil ser cínico: as multi-
dões, a fila, a enjoada sensação de teatra-
lidade. Mas, no silêncio, tudo desapareceu.
O mais chocante, ao menos para mim, não
é o fato de a soberana estar deitada ali em
um caixão. É que foi preciso ela morrer
para impedir que as pessoas – ou ao me-
nos essas pessoas – olhassem para suas te-
las. Os celulares são proibidos. Os visitan-
tes devem olhar com os olhos e não com
os antebraços levantados, e olhar com os
olhos estimula o pensamento. Sentimen-
tos se precipitam, emoções às quais não
sou mais imune do que qualquer outro.
O que todas elas estavam pensando?
 
São de todas as cores e credos, idades e
classes possíveis. Algumas lutam para
andar, apoiam-se pesadamente em ben-
galas e muletas. Outras, apesar de terem
esperado horas para chegar a esse ponto,
olham como se estivessem no retorno do
escritório para casa. Algumas carregam
Louis Vuittons e algumas M&S de plásti-
co. Algumas usam ternos escuros e saltos
altos, e algumas, agasalhos e tênis.
Era difícil prever quem parecerá emo-
cionado. Do homem de sobretudo preto,
chapéu-coco e medalhas, e o de camise-
ta dos Sex Pistols, é o fã de Johnny Rotten
quem parece prestes a chorar, com o rosto
franzido como o de um menino. Ninguém
fala. Nem sussurra. Uma tosse perdida, no
vasto espaço sob o maior telhado de ma-
deira medieval do Norte da Europa, é tão
alta quanto um tiro.
 
Depois de meia hora, saímos em fila.
Mais uma vez, aquela sensação de basti-
dores: garrafas de água nos parapeitos,
meio bebidas pelos porteiros ressequi-
dos do Palácio de Westminster. Um poli-
cial cuidadosamente a vestir luvas bran-
cas. A atividade é intensa nesta colmeia
cerimonial, responsabilidade assumida
por dezenas de voluntários e funcioná-
rios. Billy, o jovem que me guiou na ho-
ra marcada, trabalha em comunicações
para comitês selecionados. Mas segurar
minha mão esta noite não tem nada a ver
com o trabalho dele. “É ótimo fazer parte
disso”, ele me diz. A que horas ele vai dor-
mir? “Vou terminar às 7 da manhã”, res-
ponde com perfeito entusiasmo.
 
Sinto-me como me senti no início da
semana ao assistir às várias cerimônias e
desfiles. A organização implacável, a pre-
cisão requintada, a beleza transcenden-
tal. Como essas coisas são possíveis num 
país onde nenhum trem parece estar no
horário? Onde há tanta coisa quebrada,
feia e negligenciada?
 
As ruas próximas do Palácio de
Westminster estão fechadas ao trânsi-
to e, lá fora, caminho um pouco. É quase
meia-noite. Sem carros, há um espírito de
festival, gente circula, estranhos conver-
sam. Encontro a fila. Ela move-se a uma
velocidade surpreendente. Os presentes
acenam com suas pulseiras para os segu-
ranças como se exibissem uma nova joia:
um balanço de mão agora tão praticado
que é quase régio. O clima é sorridente e
gracioso. Ela avança sobre salgadinhos
com sabor de carne.
 
Ao caminhar pela ponte de Westminster,
começo a conversar com um policial,
seus antebraços nus no calor fora de
época desta noite de setembro. Ele é de
Humberside. Quando chegou? “No do-
mingo. Fomos avisados duas horas an-
tes. Estou num hotel em Hammersmi-
th.” Gosta de sua mobilização histórica?
Ele sorri. “Sim.” Ele olha para o Big Ben,
a torre magnífica contra o céu azul-ma-
rinho e nuvens cuja fofura sedosa me faz
pensar, apropriadamente nas circuns-
tâncias, em traveller’s joy (a erva daninha
conhecida como barba-de-velho). “Que-
ro dizer, você não tem isso em Hull, tem?”
 
O clima da nação. Os britânicos falam
em medi-lo, como se bastasse usar um ter-
mômetro. Mas não é tão fácil, claro. So-
mos um país de 67 milhões de almas. Te-
mos razão em desconfiar daqueles reman-
sos da mídia que insistem em uma univer-
salidade de sentimento, em desconfiar dos
comentaristas admoestadores que falam
autoritariamente sobre “a população”. A
história nos ensina que há sempre uma
lacuna entre o dito e o feito e visto. Nos-
sos ancestrais não eram mais fáceis de ler
do que nós, e menos homogêneos do que
poderíamos imaginar, quando se tratava
da questão do luto público. “Esta manhã,
vi o que pude, sobre as cabeças do corte-
jo fúnebre da rainha”, escreveu Arnold
Bennett em seu diário em 2 de feverei-
ro de 1901 (a rainha Vitória morreu em
22 de janeiro). “As pessoas não estavam,
em geral, profundamente comovidas, por
mais que digam os jornalistas, e sim sere-
nas e alegres.” Pode ser que nós mesmos
estejamos divididos. Vejo a vitrine da lo-
ja Marie Curie local, os manequins ago-
ra usam vestidos pretos e pérolas, e isso
me causa um nó na garganta. Leio o e-mail
da Ryman’s, que descreve roboticamente
o respeito da papelaria pela falecida mo-
narca, e sinto-me intensamente irritada.
 
Mas o ritual é importante, e não há
como descontar a necessidade de alguns
britânicos agora. A fila serpenteante,
com seus 8 quilômetros, fala de nossos
impulsos mais rudimentares, quase ins-
tintos, que no século XXI pagão têm ca-
da vez menos canais de expressão. As ge-
rações passadas sabiam chorar: as viúvas
se vestiam de preto, joias feitas de azevi-
che e mechas do cabelo do morto. Os ho-
mens usavam chapéus pretos e braçadei-
ras. Eles entendiam que essas coisas não
eram apenas uma questão de forma, mas
também úteis: um sinal, para os não enlu-
tados, da condição agonizante de alguém
e um purgante para o sofrimento. Muito
antes de conhecer a palavra “catarse”, eu
tinha uma ideia do seu significado. Quan-
do eu era muito pequena, meus avós, em
Sunderland, seguiam a tradição e manti-
nham as cortinas fechadas na manhã do
funeral de um vizinho. “Pense como será
bom quando as abrirmos mais tarde”, vo-
vó me disse quando expressei frustração.
Na tarde de segunda-feira, quando o fune-
ral da rainha finalmente terminar, mui-
tos na Grã-Bretanha experimentarão al-
go semelhante: uma libertação, uma sen-
sação de sol após a escuridão.
 
Quando olho para a fila, lembro-me
de outra. Em 1954, quando os arqueólo-
gos começaram a escavar o templo roma-
no de Mitra na cidade de Londres, cerca
de 400 mil homens, mulheres e crianças
acorreram em um período de duas sema-
nas para ver o que se passava. A multidão
era tão grande que a polícia foi obrigada
a controlá-la. Por quê? Parece óbvio ago-
ra que, por maior que fosse seu interesse
por mosaicos, os curiosos estavam incons-
cientemente a aceitar a horrível estripação
de suas cidades. Eles haviam suportado
a Blitz, viviam em ruas cheias de crateras.
A morte da rainha se segue à pande-
mia. Não deve haver um único indivíduo
na fila do velório que não perdeu, ou co-
nhece alguém que perdeu, um amigo, um
colega ou um parente para a Covid, e que
também teve de renunciar, por causa das
restrições, a um funeral adequado, o con-
forto de coros e rezas.
 
É da natureza humana tentar dar
sentido às coisas que fazem menos sentido,
e a morte é a maior delas: a “coisa distin-
ta”, como disse Henry James, e a coisa in-
sondável. Quando alguns falam sobre a sua
rejeição confusa às massas que depositam
flores diante de nossos palácios reais – tu-
do isso para uma mulher que não conhe-
ciam? –, seu tom, aos meus ouvidos, é se-
melhante ao modo como às vezes se fala
daqueles que votaram no Brexit. Acho is-
so imprudente, mas também acho que eles
querem empatia. É natural olhar para uma
família enlutada e pensar em suas próprias
perdas. É natural preocupar-se com o que
uma morte como esta significa Acima de
tudo, é natural emocionar-se com a histó-
ria, a música e a poesia. Com a arquitetu-
ra que eleva os olhos aos céus e com as pa-
lavras que queimam e acalmam a alma.


CARTA CAPITAL 

 

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