ESQUERDA RETOMOU O PULSO DAS
RUAS E RESGATOU A BANDEIRA DO BRASIL
COMO UM SÍMBOLO DO POVO, E NÃO MAIS
DA EXTREMADIREITA, AFIRMA STEDILE
MARIANA SERAFINI
Duas bandeiras, dois atos, duas formas radicalmente distintas de expressar o patriotismo.
No mesmo palco simbólico da Avenida Paulista, diante do
Masp, uma imensa bandeira do Brasil –
com 60 metros de comprimento, 40 de
largura e 112 quilos – marcou a manifestação
popular do domingo 21 de setembro.
Levada por militantes do MST,
a flâmula embalou o protesto contra a
“PEC da Blindagem” e a proposta de redução
de penas aos golpistas em discussão
no Congresso. Duas semanas antes,
nos festejos do 7 de Setembro, bolsonaristas
haviam estendido no mesmo local
uma enorme bandeira dos Estados Unidos,
durante um ato pela anistia de Jair
Bolsonaro, após sua condenação por tentativa
de golpe de Estado. Se uma imagem
vale mais que mil palavras, como
diz o adágio popular, o contraste entre
as cenas fala por si. “A extrema-direita
nos fez esse favor”, ironiza João Pedro
Stedile, fundador do MST, ao celebrar
a retomada das ruas pela esquerda e o
resgate de um símbolo nacional. Nesta
entrevista, o dirigente também avalia
os rumos da reforma agrária e comenta
as parcerias do movimento com a China
para instalação de fábricas de fertilizantes
e máquinas agrícolas no País. A íntegra,
em vídeo, está disponível no canal
de CartaCapital no YouTube.
CartaCapital: Como o senhor avalia
a mobilização popular no domingo 21?
João Pedro Stedile: As manifestações
nos lavaram a alma. Há tempos a esquerda
não ocupava as ruas com um contingente
tão expressivo. E fomos à luta com um
propósito claro: primeiro, contra a anistia
aos golpistas, uma proposta que não faz o
menor sentido, além de ser inconstitucional.
As forças populares – e a sociedade como
um todo – também estão indignadas
com a PEC da Blindagem, para proteger
parlamentares envolvidos em desvios de
emendas. Temos ainda pautas fundamentais,
como a redução da jornada de trabalho
e a taxação dos milionários. Minha expectativa
é de que esses atos representem
apenas um ponto de partida. Precisamos
ampliar a mobilização, e acredito que temos
condições de alcançar o patamar das
históricas manifestações pelas Diretas Já.
CC: O campo progressista está retomando
o pulso das ruas? Ou foi o tema, esse
pacotão de impunidades, que favoreceu
uma mobilização dessa magnitude
JPS: As duas coisas. A indignação diante
dessas iniciativas do Congresso gerou
unidade entre forças antes dispersas
na sociedade, com a adesão de artistas
e intelectuais. Parece que a esquerda
está reaprendendo a fazer mobilização
de massa com alguma mística. Não
aguentávamos mais aquelas concentrações
com carro de som e um palavrório
que ninguém presta atenção. Essas manifestações
foram marcadas pela presença
da música e da arte. Resgatamos a bandeira
do Brasil como símbolo do povo brasileiro,
e não do bolsonarismo. Ao incorporar
a bandeira dos EUA em seus atos, a extrema-
direita nos fez esse favor.
CC: Como o senhor avalia o governo
Lula até aqui e, em particular, a condução
do programa da reforma agrária?
JPS: Lula enfrenta, em seu terceiro
mandato, uma correlação de forças muito
adversa. Foi eleito por uma frente ampla
para barrar a extrema-direita, mas
essa aliança heterogênea dificulta a implementação
de reformas estruturais. No
campo, convivem hoje três modelos de
produção. O primeiro é o latifúndio predador,
que explora os bens da natureza
– como florestas, água, biodiversidade e
minérios –, transforma tudo em mercadoria
e obtém lucros extraordinários. O
segundo é o agronegócio moderno, centrado
em cinco monoculturas – soja, milho,
cana, algodão e pecuária – voltadas
à exportação. Ele abusa de agrotóxicos,
degrada o solo e envenena até as chuvas,
mas ainda assim é tratado como símbolo
de progresso e concentra lucros em poucas
empresas. Por fim, temos a agricultura
familiar, voltada à subsistência dos
produtores, com o excedente direcionado
ao mercado interno. Ela produz mais
de 300 tipos de alimentos que, de fato,
chegam à mesa dos brasileiros. Quando
defendemos a reforma agrária, estamos
questionando justamente os dois
primeiros modelos, que são inviáveis a
longo prazo. A agricultura familiar é a
única alternativa sustentável: preserva
o meio ambiente, gera mais empregos e
mantém as famílias no campo. Hoje, ela
emprega 16 milhões de pessoas, enquanto
o agronegócio ocupa apenas 4 milhões
– dos quais só metade tem trabalho o ano
inteiro. O problema é que, dentro do próprio
governo, há defensores de cada uma
dessas visões. E, num projeto de desenvolvimento
que privilegie o capital e não
os alimentos saudáveis ou a preservação
ambiental, a agenda da reforma agrária
fica em segundo plano.
CC: Os BRICS têm planos de fortalecer
os estoques reguladores de alimentos
e criar uma Bolsa de Grãos, para proteger
seus países das flutuações dos preços
e afastar o risco de desabastecimento.
Como o senhor avalia essa iniciativa?
JPS: É bem-vinda. Há uma confusão entre
segurança e soberania alimentar. O
Bolsa Família é uma típica política de segurança
alimentar, pois garante recursos
para a população comprar comida e não
passar fome. Já a soberania exige ações do
Estado para garantir que o País tenha capacidade
de produzir o que consome e, ao
mesmo tempo, manter estoques reguladores
para evitar a especulação com um
bem tão essencial. Esse é o ponto central,
e é onde estamos falhando. Infelizmente,
o governo Lula ainda está preso a uma lógica
limitada, focada apenas no acesso ao
consumo. Se cada país dos BRICS priorizar
a soberania alimentar, será possível
promover o intercâmbio de excedentes.
CC: Recentemente, o MST anunciou
parcerias com a China para instalação de
fábricas de fertilizantes orgânicos e bioinsumos.
Em que pé está esse projeto?
JPS: Temos um coletivo de pesquisadores
do MST que está na China há cinco
anos, graças a um convênio com o Consórcio
Nordeste. Nossa brigada está estudando
quais tecnologias desenvolvidas
por eles podem ser adaptadas à agricultura
familiar no Brasil, e já identificamos
algumas que serão fundamentais, especialmente
para ampliar a produção agroecológica.
Hoje, estamos no limite da nossa
capacidade produtiva – para avançar,
precisamos incorporar fertilizantes orgânicos
que praticamente não existem no
mercado brasileiro. Por isso, vamos implementar
fábricas próprias. O método
tradicional de compostagem, que usa resíduos
como folhas e serragem, leva cerca
de um ano e meio para virar adubo. Mas os
chineses desenvolveram uma espécie de
“panela de pressão” que acelera esse processo,
tornando o fertilizante pronto em
apenas sete dias. Vamos trazer essa tecnologia
e espalhar fábricas de fertilizantes
pelo Brasil. Também montaremos um laboratório
para produzir as bactérias utilizadas
na compostagem acelerada – as primeiras
virão da China, mas depois precisaremos
desenvolver cepas adaptadas ao
nosso clima. O primeiro laboratório será
instalado na Universidade de Brasília. Essa
iniciativa mostra que existe um destino
muito melhor para o lixo do que os aterros
sanitários: uma tecnologia que, ao mes
mo tempo, amplia a capacidade produtiva
e resolve um problema urbano, transformando
resíduos em adubo que volta à
natureza para produzir alimentos.
CC: Também existem parcerias para
a fabricação de máquinas agrícolas?
JPS: O Brasil tem apenas cinco fábricas
de máquinas agrícolas, todas multinacionais,
voltadas exclusivamente para o agronegócio.
Não há produção de equipamentos
menores, para a agricultura familiar.
A China, que fez sua reforma agrária nos
anos 1950, organizou seu modelo com pequenos
produtores – cada um com cerca de
um hectare – e a mecanização foi fundamental
para ampliar a produtividade nessas
áreas. Fizemos um teste com 50 máquinas
doadas por eles e identificamos
dez modelos com maior serventia para a
nossa realidade. A próxima etapa da parceria
é a instalação das fábricas no Brasil.
Os chineses vão nos vender as plantas industriais,
e a primeira está projetada para
Açailândia, no meio da Amazônia, onde será
montada uma colheitadeira de arroz. A
segunda será no Ceará, dedicada a pequenos
tratores e triciclos, e depois outra em
Mossoró, no Rio Grande do Norte. Firmamos
convênios também com o governo da
Bahia e o município de Maricá, no Rio de
Janeiro. Com esses tratores, vamos reduzir
o esforço físico no campo e aumentar a
produtividade por hectare. Em São Paulo,
será instalada a fábrica de colheitadeiras
médias, para propriedades de até 40 hectares,
e no Rio Grande do Sul planejamos a
produção de plantadeiras de arroz. Isso representará
uma verdadeira revolução tecnológica
para a agricultura familiar. Estamos
dando apenas os primeiros passos. •
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