June 7, 2025

Legitimidade em xeque

 

 


AS SUCESSIVAS “BOIADAS” APROVADAS PELO CONGRESSO
MINAM A CAPACIDADE DO BRASIL DE LIDERAR A AGENDA
CLIMÁTICA E DE SE FIRMAR COMO POTÊNCIA AMBIENTAL

p o r M AUR ÍCIO THUSWOHL

 Duas coisas são inf initas: o universo e a estupidez humana.”
O aforismo costuma ser atribuído a
Albert Einstein, com o irônico acrescimento
de que o pai da Teoria da Relatividade
só não estava totalmente convencido
da validade da sentença no primeiro caso.


Embora não haja comprovação histórica
da citação, essa máxima cai como luva
para explicar o atual momento do Brasil
em relação à agenda ambiental. A seis meses
de receber a 30ª Conferência das Nações
Unidas sobre Mudanças Climáticas,
o País, favorecido por seus ativos naturais
e detentor de um dos maiores potenciais
de geração de energia renovável do planeta,
revela que também é infinita a vocação
para o atraso de uma parte considerável
de suas elites, viciadas no lucro fácil
e abundante de atividades econômicas
predatórias, como se devastação fosse sinônimo
de desenvolvimento.

A contradição, explicitada de forma
contundente nos últimos dias, tem no
Congresso Nacional seu vetor principal,
mas se manifesta também em alguns setores
do próprio governo. Por ora, a procissão
segue na contramão do que pretende
o presidente Lula e pode tisnar a
imagem de líder global e protagonista
ambiental que o Brasil busca consolidar
como anfitrião da COP30. Na terça-feira
27, Dia da Mata Atlântica, no mesmo
momento em que integrantes dos ministérios
da Fazenda, do Meio Ambiente e do
Itamaraty se esforçavam, em um fórum
realizado no Rio de Janeiro, para costurar
acordos e projetos que permitam ao
País levar adiante sua proposta de criação
de um Fundo Ambiental Global de
1,3 trilhão de dólares anuais, em Brasília
parlamentares da base governista tomavam
parte em uma grotesca tentativa
de achincalhamento à ministra Marina
Silva, durante uma audiência pública na
Comissão de Infraestrutura do Senado.


Convidada para debater o projeto de
exploração de petróleo na Margem Equatorial,
tema que divide o governo, Marina
passou a ser hostilizada pelos senadores
que compõem a Comissão quando o debate
resvalou para o projeto de pavimentação
da BR–319, rodovia que liga Manaus
a Porto Velho. O asfaltamento, visto
como solução econômica pela maioria
dos deputados e senadores da região, é
apontado por ambientalistas como uma
ameaça potencial à biodiversidade e possível
pá de cal nas intenções globais de
evitar que a Amazônia brasileira atinja
o temido “ponto de não retorno” em seu

desmatamento. “São mais de 5 mil obras
paradas por entraves ambientais. A senhora
atrapalha o desenvolvimento do
País”, esbravejou o senador Omar Aziz,
do PSD, aliado do governo.


A primeira grosseria provocou a reação
da ministra e foi a senha para um vergonhoso
episódio que misturou misoginia,
racismo e intolerância política: “A mulher
merece respeito, a ministra não”, disse o
senador Plínio Valério, do PSDB – o mesmo
que já havia manifestado em plenário
o desejo de “enforcar Marina”. Mais adiante,
indignado porque a ministra lhe apontou
o dedo, o senador Marcos Rogério, do
PL, exigiu: “Ponha-se no seu lugar.” Diante
do clima hostil, Marina decidiu se retirar.
“Fui convidada como ministra, então tem
de respeitar. Ter disposição para o debate
não significa que aceitarei ser tratada como
capacho, com atitudes não condizentes
com a democracia nem com o direito das
mulheres consignados na Constituição.”


Logo após o episódio, Marina recebeu
um telefonema do presidente Lula, que
manifestou solidariedade à sua decisão,
e contou com o apoio de poucos senadores
governistas, como Jaques Wagner e
Randolfe Rodrigues. Uma nota de repúdio
foi divulgada pela bancada feminina
do Senado: “É inadmissível que um parlamentar
diga a uma mulher que ela deve
‘se colocar no seu lugar’. Essa frase, carregada
de machismo estrutural, é mais do
que um ataque pessoal, é uma tentativa
explícita de silenciamento de mulheres
que ocupam espaços de poder. Lugar de
mulher é onde ela quiser”.


Reações à parte, o fato é que a ministra,
carente de um apoio mais concreto no governo
às vésperas da COP30, incomoda
os interesses representados por aquele
grupo de senadores exatamente por estar
em seu devido lugar – o das imprescindíveis
políticas de transição energética
e sustentabilidade ambiental, estas,
sim, propulsoras de um desenvolvimento
econômico capaz de beneficiar o conjunto
da sociedade brasileira, não apenas as
oligarquias regionais. Se, no caso da Margem
Equatorial, a chegada à presidência
do Congresso do senador amapaense Davi
Alcolumbre – novo “aliado estratégico”
de Lula e entusiasta do projeto – faz tudo
se encaminhar para uma derrota da ala
ambiental do governo, outras frentes de
disputa ainda estão em aberto. O empenho
de Marina em algumas delas é o que
explica politicamente o ódio manifestado
por certos parlamentares.


Aministra age, por exemplo,
para tentar reverter
os retrocessos trazidos
pelo Projeto de Lei
que afrouxa as regras
do licenciamento ambiental, aprovado
em 21 de maio com a decisiva ajuda de
Alcolumbre, do União Brasil. Em tramitação
acelerada, conduzida pelo presidente
do Senado após mobilização liderada pela
senadora Teresa Cristina, do PP, o projeto
foi aprovado por 54 votos a 13, com o objetivo
de criar um novo marco legal para o
licenciamento de atividades econômicas
ou empreendimentos com impacto ambiental
e, nas palavras da ex-ministra da
Agricultura de Jair Bolsonaro, “destravar
as obras que o País necessita”.


Na prática, foi aprovado, com algumas
mudanças, um projeto de desmonte
que dormitava desde 2022 nas gavetas
do Senado, gestado há duas décadas pela
bancada ruralista no Congresso e aprovado
em 2021 na Câmara, no estouro das
“boiadas” do governo de Bolsonaro.


A mudança mais criticada pelo Ministério
do Meio Ambiente é o fim do licenciamento
ambiental como é realizado hoje,
em três etapas: prévia, de instalação e de
operação. Se o projeto for definitivamente

vigorar no Brasil a Licença Ambiental Única
(LAU), documento que simplificará em
uma única etapa a concessão de licenças,
sem a necessidade de realização de Estudos
de Impacto Ambiental (EIA) e similares
pelo Ibama e outros órgãos de controle.


Outra medida com provável impacto
negativo determina que empreendimentos
com potencial poluidor de pequeno
e médio porte podem prescindir
do EIA, desde que o empreendedor obtenha
uma Licença por Adesão e Compromisso,
documento autodeclaratório
e com concessão automática. Outras novidades
do PL aprovado que vão na contramão
da COP30 são a liberação da pecuária
extensiva em propriedades de pequeno
e médio porte e o fim da participação
de indígenas e quilombolas nas discussões
sobre projetos com impacto ambiental
executados em seus territórios,
com exceção das áreas já homologadas.


“O PL passa uma borracha no processo
de licenciamento da BR–319, libera a
estrada para ser asfaltada sem o mínimo
de cálculo dos prejuízos associados a essa
pavimentação, como grilagem de terra,
destruição ambiental e invasão de áreas
de comunidades tradicionais”, afirma
Marcio Astrini, coordenador do Observatório
do Clima. Segundo o ambientalista,
o simples anúncio da retomada do
projeto no governo Bolsonaro já fez com
que o desmatamento na região explodisse
nos últimos anos. “O crime organizado
já entendeu que ali é um local propício
para derrubar a floresta.”


A entidade vai apoiar Marina em seu
esforço para reverter o prejuízo. Acompanhada
por deputados de esquerda, a ministra
se reuniu, horas antes de ser hostilizada
no Senado, com o presidente da Câmara

Hugo Motta, do Republicanos, e dele
ouviu que não há nesse momento pressa
para pautar o PL do Licenciamento novamente
na Casa. Também está agendada
uma reunião para discutir os prováveis
vetos de Lula: “Esperamos que o presidente
honre os compromissos de campanha.
Sabemos da retomada que sua equipe
promoveu na área ambiental, e é exatamente
por isso que não esperamos nada
menos do que o veto”, resume Astrini.


A base para a discussão é uma nota técnica
feita pela liderança do governo no Senado,
que elenca uma série de inconstitucionalidades
do projeto. “Se o próprio governo
entende que tem trechos inconstitucionais,
o mínimo é vetá-los, mas esperamos
que Lula vete integralmente esse
projeto absurdo no conteúdo e na imagem
negativa que traz para o País e o governo.”


Para o deputado federal Nilto
Tatto, do PT, o PL aprovado
pelo Senado “representa um
dos maiores retrocessos socioambientais
da história” e desmonta as regras do licenciamento ambiental
no País. “Os impactos desse projeto
sobre a vida da população serão severos.


O Brasil retomou seu protagonismo internacional
dando o exemplo com a diminuição
do desmatamento, receberá a COP30
e tem a responsabilidade de liderar uma
agenda mais incisiva para fazer frente ao
aumento do aquecimento global.”


O petista avalia que o projeto aprovado
trará morosidade aos processos de licenciamento
por provocar mais judicializações
e que o atraso político imposto pelo
Legislativo pode enfraquecer o País junto
à comunidade internacional. “Destruir a
principal lei ambiental do Brasil deslegitima
o papel do governo brasileiro no acordo
do clima, além de prejudicar outras negociações
comerciais em curso, como o
acordo Mercosul–União Europeia.” Tatto
propõe que o governo convoque o Comitê
Interinstitucional de Gestão do Pacto
pela Transformação Ecológica e elabore
um novo texto para o licenciamento am-

biental que defina uma agenda estratégica
dos Três Poderes “para melhor aproveitamento
da oportunidade histórica que o
Brasil terá este ano com a presidência da
COP e também do encontro dos BRICS”.


Para o advogado e ambientalista Rubens
Born, diretor da Fundação Esquel
Brasil e do Fórum Brasileiro de ONGs e
Movimentos Sociais (FBOMS), a aprovação
do PL do Licenciamento revela que
“a sociedade brasileira, por meio de seus
representantes eleitos, ainda não incorporou
a questão da sustentabilidade ambiental”.
Ele aguarda a posição do governo.
“Esperamos que o presidente Lula possa
vetar aquilo que significa retrocesso, como
o licenciamento por autodeclaração,
que não funciona.” Experiente, Born faz
uma ressalva: “Sabemos que a realidade
política da Câmara e do Senado pode significar
a derrubada do veto, já que estamos
em um ano pré-eleitoral e a oposição
tem uma maioria significativa. E essa oposição
não é meramente ao governo Lula,

mas oposição às questões ambiental, climática,
indígena e de direitos humanos”.


Enfraquecer o licenciamento seria
“um retrocesso enorme às vésperas da
COP30”, avalia o ambientalista. “Embora
não tire a legitimidade de ser anfitrião,
esse desmonte revela uma contradição
de longo prazo que existe no Brasil,
mas também em outros países, que
é não conseguir alterar as políticas de
desenvolvimento econômico para incorporar
as crises climática, de perda da biodiversidade
e da poluição. Falta incorporar
a crise ambiental global às políticas
internas.” Born avalia que o cenário da
COP30 não será fácil para o Brasil, graças
a “forças políticas internas que ainda
vivem no passado e querem ganhos imediatos”.


Ele propõe que os governos federal
e estaduais, além de lideranças empresariais
da indústria, agricultura, comércio
e turismo, “comecem a separar o joio
do trigo nos seus respectivos campos, para
garantir que o Brasil possa ter condições
de produzir ambientalmente com
sustentabilidade e sem injustiças”.


Enquanto rema contra
a maré reacionária do
Congresso, o governo luta
para emplacar suas principais
propostas para a
Conferência do Clima que acontecerá
em Belém, a partir de 10 de novembro.
Durante o II Fórum de Financiamento
Climático e de Natureza, que reuniu gestores
públicos, empresários e ambientalistas
no Rio, foi debatida a proposta,
apresentada em abril pelo ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, de constituição
de um Fundo Global do Clima com
uma dotação anual de 1,3 trilhão de dólares.
Os recursos serão usados para o financiamento
de ações de adaptação às
mudanças climáticas e combate aos efeitos
do aquecimento global nos países em
desenvolvimento.


A bandeira do financiamento mobiliza,
mas sua concretização é complicada
em um cenário ambiental global adver-

so, sobretudo após o presidente Donald
Trump anunciar a retirada dos EUA do
Acordo de Paris. “O fluxo de financiamento
para os países em desenvolvimento
não é doação, não é caridade. O interesse
em mobilizar esse montante deveria
ser das nações desenvolvidas, que não
estão liberando os recursos, como EUA,
Europa e China”, afirma Ana Toni, diretora-
executiva da COP30. O governo brasileiro
trabalha para levar essa proposta
adiante: “O financiamento climático tem
de ser uma corresponsabilidade de países
desenvolvidos e em desenvolvimento,
de bancos multilaterais e privados. Sabemos
que precisamos de mais, mas 1,3 trilhão
de dólares é um bom começo.


Presidente da COP30, o embaixador
André Corrêa do Lago, também presente
no Fórum, foi outro a defender a proposta
de um fundo global vitaminado. Segundo
Corrêa do Lago, “na COP29, foi aprovado
o valor de 300 bilhões de dólares anuais,
mas também uma resolução que reconhece
que esse valor não é suficiente”. O diplomata
anunciou a formação de um colegiado
de notáveis que vai trabalhar na elaboração
de uma proposta para que se alcance
a cifra trilionária. “Criei um grupo
de 18 economistas para me apoiar nesse
esforço. Em paralelo, criamos também o
Círculo de Ministros da Fazenda.”
Marcio Astrini avalia que o governo está
testando quais são os pontos possíveis
de avançar dentro das negociações e quais
são aqueles onde poderá até tentar, mas
encontrará dificuldades. “Todo mundo
sabe que a ferida desse tema do financiamento
ainda está exposta. Houve um resultado
muito ruim em Baku, no Azerbaijão,
e dar um cavalo de pau numa decisão
recém-tomada é muito difícil de acontecer”,
pondera. Para o coordenador do Observatório
do Clima, o principal ponto da
conferência em Belém deveria ser a discussão
sobre petróleo e carvão. “A mudança
que precisamos ver acontecer é a substituição

dos combustíveis fósseis 

Já existe um acordo sobre isso, firmado na COP
de Dubai, e implementá-lo é o principal
ponto da agenda do clima. Dois terços das
emissões globais são causados por essas
fontes de energia”, explica.


Apesar dos esforços governamentais,
Rubens Born lembra que a atual
contradição ambiental do
Brasil decorre também
do Executivo e é personificada em pastas
controladas por partidos do Centrão,
como os ministérios da Agricultura e das
Minas e Energia: “Ela acontece, por exemplo,
ao se licenciar pesquisa e eventual exploração
de petróleo na costa brasileira ou
ao se expandir o uso de fósseis.” Ele acrescenta
que, apesar do desejo de captação
financeira, o Plano de Transformação
Ecológica do governo ainda não contém
elementos robustos de transição energética.


“Temos muitos desafios a enfrentar
e isso, obviamente, tira parte da força que
o Brasil poderia ter. O governo está muito
empenhado em fazer uma COP séria,
efetiva e de transição. Entretanto, essas
contradições internas vão, de fato, tirar
um pouco do respaldo técnico e político
que o Brasil precisa ter para a COP30 ser
mais ambiciosa”, prevê. •


CARTA CAPITAL  

 

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