Ataques mais frequentes são de que quadrinhos naturalizam violência como forma de resolver problemas
Rogério de Campos
RESUMO Publicado pela primeira vez há 80 anos e chegando ao número mil, o Super-Homem sempre foi acusado de ser fascista ou nazista.
Os ataques mais frequentes são de que os quadrinhos naturalizam a
violência como forma de resolver problemas e sugerem a necessidade de um
homem forte para botar ordem na sociedade.
O editor Harry Donenfeld já subira muito na vida: décadas antes,
ninguém teria dado nada por aquele malandro, membro de uma das tantas
gangues juvenis do Lower East Side, em Nova York. Graças à amizade com o
mafioso Frank Costello, ele ganhou bastante dinheiro com um esquema de
distribuição de revistas que também servia para bebidas alcoólicas
durante a Lei Seca (1920-33).
No final dos anos 1930, de olho no interesse crescente por histórias em quadrinhos —cujo mercado, à época, se restringia a coletâneas de tiras publicadas nos jornais—, Donenfeld usou sua editora, a National (que depois passou a se chamar DC Comics), para publicar o abundante (e barato) material rejeitado pelos periódicos.
Ele provavelmente nem ficou sabendo quando, em março de 1938, a editora comprou os direitos de uma HQ criada por dois nerds de Cleveland. Chamava-se “Superman” e custou US$ 130 (cerca de US$ 2.300 hoje em dia, ou R$ 7.800).
No final dos anos 1930, de olho no interesse crescente por histórias em quadrinhos —cujo mercado, à época, se restringia a coletâneas de tiras publicadas nos jornais—, Donenfeld usou sua editora, a National (que depois passou a se chamar DC Comics), para publicar o abundante (e barato) material rejeitado pelos periódicos.
Ele provavelmente nem ficou sabendo quando, em março de 1938, a editora comprou os direitos de uma HQ criada por dois nerds de Cleveland. Chamava-se “Superman” e custou US$ 130 (cerca de US$ 2.300 hoje em dia, ou R$ 7.800).
Assim como vários editores que haviam visto aquilo antes, Donenfeld
achou a ideia tosca e ridícula demais até para o público
infanto-juvenil. Antes de conseguirem espaço na editora National, o
roteirista Jerry Siegel e o desenhista Joe Shuster colecionaram inúmeras
cartas de recusa.
Para surpresa de quase todos, o sucesso foi estrondoso e duradouro. Passados 80 anos de seu lançamento, os gibis do Super-Homem ainda são produzidos; neste mês, a revista comemora seu número mil com uma edição especial.
Como uma subcultura juvenil que parecia condenada ao desaparecimento transforma-se na cultura dominante do nosso tempo?
“Na minha opinião, essa adoção de personagens inequivocamente infantis do início do século 20 parece indicar uma fuga das opressivas complexidades da existência moderna”, disse Alan Moore, muito provavelmente o maior roteirista do gênero de super-heróis.
Publicada em 2014, a entrevista ao escritor irlandês Pádraig Ó Méalóid anunciava a intenção de Moore de abandonar os quadrinhos.
“Parece que uma parte significativa do público, tendo desistido de tentar entender a realidade em que está vivendo, chegou à conclusão de que poderia, pelo menos, compreender os universos sem sentido, extensos, mas pelo menos limitados, oferecidos pela DC ou Marvel.”
Moore continua: “É catastrófico que criações do século passado, que nasceram para ser efêmeras, ocupem o palco cultural e se recusem a permitir que esta nossa era, certamente sem precedentes, desenvolva uma cultura própria, relevante e que dê conta das questões de nosso tempo”.
Mas houve intelectuais católicos que estudaram o Superman sob outra perspectiva. Marshall McLuhan, por exemplo, no livro “The Mechanical Bride: Folklore of Industrial Man” (a noiva mecânica: folclore do homem industrial, 1951), compara os super-heróis a anjos.
“Poderíamos dizer que o Super-Homem é o irmão em forma de quadrinhos dos anjos medievais. Porque os anjos, como explica Tomás de Aquino, estão acima do tempo e do espaço, mas podem agir no mundo com uma energia material sobre-humana. Como o Super-Homem, eles não precisam de educação nem de experiência, porque possuem, sem esforço, uma inteligência perfeita sobre todas as coisas.”
Por sua vez, o padre jesuíta Walter J. Ong, amigo e aluno de McLuhan, questionado pela revista Time, em 1945, foi categórico: “O Super-Homem é nazista”.
O debate estava na ordem do dia. O folclorista Gershon Legman, que não era nada católico, considerava que os problemas dos EUA eram a repressão sexual e o peso na consciência pelo massacre dos índios.
Especialista em erotismo, suposto inventor do vibrador e do slogan “faça amor, não faça a guerra”, ele via os gibis de super-heróis como uma válvula de escape, mas para o excesso de repressão sexual.
Para ele, o Super-Homem é uma apoteose provinciana do “Übermensch nazi” (super-homem nazista), e os gibis do personagem davam “a cada criança americana um curso completo de megalomania paranoica, como nenhuma criança já teve, uma convicção total na moralidade do uso da força como nenhum nazista poderia sonhar”.
O psiquiatra Fredric Wertham, autor do infame “Seduction of the Innocent” (a sedução dos inocentes, 1954) —livro que deu a base teórica para a campanha de censura aos quadrinhos nos anos 1950—, insistia que os gibis do Super-Homem e de super-heróis em geral eram aulas de fascismo para as crianças.
Garantiu que suas pesquisas haviam provado que as crianças expostas àquele tipo de publicação demonstravam “um embotamento da sensibilidade à crueldade exatamente igual àquele que caracterizou toda uma geração de jovens da Europa Central alimentada pelo mito Nietzsche-nazi do homem excepcional que está além do bem e do mal”. Wertham criou o termo “complexo de Superman” para descrever “fantasias de prazer sádico em ver outras pessoas sendo punidas várias e várias vezes enquanto você fica imune”.
A literatura antissuperfascista é ampla. As acusações mais constantes aos quadrinhos são de que naturalizam a violência como melhor forma de resolver problemas, inclusive os sociais, e, claro, de que há um autoritarismo intrínseco na ideia de ser preciso um homem forte para botar ordem na sociedade.
Como escreveu o inglês China Miéville a respeito de “Batman - O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller: “A ideia subjacente é que as pessoas são ovelhas que precisam de um pastor forte”.
Também se apontou o desprezo pelas instituições criadas em torno do voto, o elogio das autoridades não eleitas (militares, policiais, juízes), uma rebeldia juvenil contra a desordem e a promoção de novas elites.
A própria escolha de Clark Kent como contraponto ao homem de aço diz muito: fraco, covarde, intelectual incapaz da ação, alguém que jamais resolveria qualquer problema, um homem comum.
Pior que isso, Clark Kent é um homem que se submete à mulher.
Mesmo a crítica ao Estado em várias dessas HQs seria de extrema direita: o Estado surge como vilão porque, dominado por fracos e covardes, impede os seres superiores de exercer seu poder livremente.
Tais acusações não têm afetado as vendas dos gibis desse gênero. Talvez por isso não tenha havido muito esforço da indústria em respondê-las. Em geral, quando a discussão a respeito do assunto toma maiores proporções, a solução preferida é lançar ou promover super-heróis negros, ou gays, ou latinos, ou super-heroínas. Assim, enquanto responde às demandas da correção política, avança sobre um novo público consumidor. Um marketing autossustentável.
Costuma-se lembrar também que Hitler e Mussolini proibiram os gibis de super-heróis. Na verdade, a legislação fascista banindo da Itália os quadrinhos americanos é de 1938, anterior à publicação dos quadrinhos do tipo.
Foi repetida mais de mil vezes a história de que Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista, teria demonstrado sua fúria contra o personagem em uma reunião no seu gabinete, batendo a mão na mesa e gritando: “Super-Homem é judeu!”.
Não há registro desse suposto gesto irascível, mas existe um texto, na edição de abril de 1940, que salta aos olhos dentre o lixo antissemita habitual do semanário “Das Schwarze Korps” (o corpo negro), da SS, a milícia nazista.
“Jerry [Siegel, coinventor do Super-Homem] olhou o mundo e viu as coisas acontecendo à distância, algumas que o alarmaram. Ele ouviu o despertar da Alemanha, a revitalização da Itália, em resumo, o ressurgimento das virtudes masculinas de Roma e Grécia. ‘Tudo bem’, pensou Jerry, que decidiu importar a ideia da virtude masculina e espalhá-la entre os jovens americanos. E assim nasceu esse ‘Superman’.”
Ou seja, a SS via o Superman como uma imitação do nazismo.
O americano Chris Gavaler, pesquisador de histórias em quadrinhos, escreveu: “O super-herói surge por causa do fascismo. Sem Adolf Hitler, jamais o Super-Homem teria conseguido chegar à capa do Action Comics em 1938. [...] Os super-heróis, paradoxalmente, defendiam a democracia com métodos antidemocráticos. Eram fascistas lutando contra fascistas”.
Para muitos, a violência e a seriedade das novas HQs de super-heróis provam o amadurecimento do gênero, mas me vem à mente a pergunta de Federico Fellini: “O que é o fascismo se não a adolescência prolongada para muito além de seu tempo?”.
É tentador analisar a espetacular popularidade dos super-heróis entre adultos hoje em dia como componente da onda conservadora que começou a engolir o mundo a partir dos anos 80. Mas e se chegarmos à conclusão de que gibis e filmes de super-heróis, mais que mero reflexo de um mundo cada vez mais autoritário e obscurantista, exercem um papel para a manutenção desse estado de coisas?
Os fanáticos religiosos e a extrema direita têm a solução deles para a literatura que consideram perigosa: as fogueiras (podem ou não incluir os autores).
As fogueiras e a censura servem à barbárie. Nossa tarefa é desfazer o triste encanto que tomou o mundo. Um encanto que nos impede de lembrar que a vida pode ser melhor do que ela é e que nós, pessoas comuns, podemos fazer a vida ser melhor do que ela é. Quando conseguirmos isso, não precisaremos mais do Super-Homem.
Para surpresa de quase todos, o sucesso foi estrondoso e duradouro. Passados 80 anos de seu lançamento, os gibis do Super-Homem ainda são produzidos; neste mês, a revista comemora seu número mil com uma edição especial.
Como uma subcultura juvenil que parecia condenada ao desaparecimento transforma-se na cultura dominante do nosso tempo?
“Na minha opinião, essa adoção de personagens inequivocamente infantis do início do século 20 parece indicar uma fuga das opressivas complexidades da existência moderna”, disse Alan Moore, muito provavelmente o maior roteirista do gênero de super-heróis.
Publicada em 2014, a entrevista ao escritor irlandês Pádraig Ó Méalóid anunciava a intenção de Moore de abandonar os quadrinhos.
“Parece que uma parte significativa do público, tendo desistido de tentar entender a realidade em que está vivendo, chegou à conclusão de que poderia, pelo menos, compreender os universos sem sentido, extensos, mas pelo menos limitados, oferecidos pela DC ou Marvel.”
Moore continua: “É catastrófico que criações do século passado, que nasceram para ser efêmeras, ocupem o palco cultural e se recusem a permitir que esta nossa era, certamente sem precedentes, desenvolva uma cultura própria, relevante e que dê conta das questões de nosso tempo”.
ATAQUES
Assim que foi criado, o Super-Homem foi condenado pela Igreja Católica, que odiou o personagem implausível, vindo do espaço para salvar os terráqueos. Num clima de pré-Segunda Guerra Mundial, a acusação inicial de paganismo logo deu lugar à pecha de fascista.Mas houve intelectuais católicos que estudaram o Superman sob outra perspectiva. Marshall McLuhan, por exemplo, no livro “The Mechanical Bride: Folklore of Industrial Man” (a noiva mecânica: folclore do homem industrial, 1951), compara os super-heróis a anjos.
“Poderíamos dizer que o Super-Homem é o irmão em forma de quadrinhos dos anjos medievais. Porque os anjos, como explica Tomás de Aquino, estão acima do tempo e do espaço, mas podem agir no mundo com uma energia material sobre-humana. Como o Super-Homem, eles não precisam de educação nem de experiência, porque possuem, sem esforço, uma inteligência perfeita sobre todas as coisas.”
Por sua vez, o padre jesuíta Walter J. Ong, amigo e aluno de McLuhan, questionado pela revista Time, em 1945, foi categórico: “O Super-Homem é nazista”.
O debate estava na ordem do dia. O folclorista Gershon Legman, que não era nada católico, considerava que os problemas dos EUA eram a repressão sexual e o peso na consciência pelo massacre dos índios.
Especialista em erotismo, suposto inventor do vibrador e do slogan “faça amor, não faça a guerra”, ele via os gibis de super-heróis como uma válvula de escape, mas para o excesso de repressão sexual.
Para ele, o Super-Homem é uma apoteose provinciana do “Übermensch nazi” (super-homem nazista), e os gibis do personagem davam “a cada criança americana um curso completo de megalomania paranoica, como nenhuma criança já teve, uma convicção total na moralidade do uso da força como nenhum nazista poderia sonhar”.
O psiquiatra Fredric Wertham, autor do infame “Seduction of the Innocent” (a sedução dos inocentes, 1954) —livro que deu a base teórica para a campanha de censura aos quadrinhos nos anos 1950—, insistia que os gibis do Super-Homem e de super-heróis em geral eram aulas de fascismo para as crianças.
Garantiu que suas pesquisas haviam provado que as crianças expostas àquele tipo de publicação demonstravam “um embotamento da sensibilidade à crueldade exatamente igual àquele que caracterizou toda uma geração de jovens da Europa Central alimentada pelo mito Nietzsche-nazi do homem excepcional que está além do bem e do mal”. Wertham criou o termo “complexo de Superman” para descrever “fantasias de prazer sádico em ver outras pessoas sendo punidas várias e várias vezes enquanto você fica imune”.
A literatura antissuperfascista é ampla. As acusações mais constantes aos quadrinhos são de que naturalizam a violência como melhor forma de resolver problemas, inclusive os sociais, e, claro, de que há um autoritarismo intrínseco na ideia de ser preciso um homem forte para botar ordem na sociedade.
Como escreveu o inglês China Miéville a respeito de “Batman - O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller: “A ideia subjacente é que as pessoas são ovelhas que precisam de um pastor forte”.
Também se apontou o desprezo pelas instituições criadas em torno do voto, o elogio das autoridades não eleitas (militares, policiais, juízes), uma rebeldia juvenil contra a desordem e a promoção de novas elites.
A própria escolha de Clark Kent como contraponto ao homem de aço diz muito: fraco, covarde, intelectual incapaz da ação, alguém que jamais resolveria qualquer problema, um homem comum.
Pior que isso, Clark Kent é um homem que se submete à mulher.
Mesmo a crítica ao Estado em várias dessas HQs seria de extrema direita: o Estado surge como vilão porque, dominado por fracos e covardes, impede os seres superiores de exercer seu poder livremente.
Tais acusações não têm afetado as vendas dos gibis desse gênero. Talvez por isso não tenha havido muito esforço da indústria em respondê-las. Em geral, quando a discussão a respeito do assunto toma maiores proporções, a solução preferida é lançar ou promover super-heróis negros, ou gays, ou latinos, ou super-heroínas. Assim, enquanto responde às demandas da correção política, avança sobre um novo público consumidor. Um marketing autossustentável.
NAZISMO
De resto, os porta-vozes da indústria apenas observam que, como o Super-Homem foi criado por dois garotos judeus, não pode ser nazista. E, dado que é uma criação americana, não pode ser fascista.Costuma-se lembrar também que Hitler e Mussolini proibiram os gibis de super-heróis. Na verdade, a legislação fascista banindo da Itália os quadrinhos americanos é de 1938, anterior à publicação dos quadrinhos do tipo.
Foi repetida mais de mil vezes a história de que Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista, teria demonstrado sua fúria contra o personagem em uma reunião no seu gabinete, batendo a mão na mesa e gritando: “Super-Homem é judeu!”.
Não há registro desse suposto gesto irascível, mas existe um texto, na edição de abril de 1940, que salta aos olhos dentre o lixo antissemita habitual do semanário “Das Schwarze Korps” (o corpo negro), da SS, a milícia nazista.
“Jerry [Siegel, coinventor do Super-Homem] olhou o mundo e viu as coisas acontecendo à distância, algumas que o alarmaram. Ele ouviu o despertar da Alemanha, a revitalização da Itália, em resumo, o ressurgimento das virtudes masculinas de Roma e Grécia. ‘Tudo bem’, pensou Jerry, que decidiu importar a ideia da virtude masculina e espalhá-la entre os jovens americanos. E assim nasceu esse ‘Superman’.”
Ou seja, a SS via o Superman como uma imitação do nazismo.
O americano Chris Gavaler, pesquisador de histórias em quadrinhos, escreveu: “O super-herói surge por causa do fascismo. Sem Adolf Hitler, jamais o Super-Homem teria conseguido chegar à capa do Action Comics em 1938. [...] Os super-heróis, paradoxalmente, defendiam a democracia com métodos antidemocráticos. Eram fascistas lutando contra fascistas”.
Para muitos, a violência e a seriedade das novas HQs de super-heróis provam o amadurecimento do gênero, mas me vem à mente a pergunta de Federico Fellini: “O que é o fascismo se não a adolescência prolongada para muito além de seu tempo?”.
É tentador analisar a espetacular popularidade dos super-heróis entre adultos hoje em dia como componente da onda conservadora que começou a engolir o mundo a partir dos anos 80. Mas e se chegarmos à conclusão de que gibis e filmes de super-heróis, mais que mero reflexo de um mundo cada vez mais autoritário e obscurantista, exercem um papel para a manutenção desse estado de coisas?
Os fanáticos religiosos e a extrema direita têm a solução deles para a literatura que consideram perigosa: as fogueiras (podem ou não incluir os autores).
As fogueiras e a censura servem à barbárie. Nossa tarefa é desfazer o triste encanto que tomou o mundo. Um encanto que nos impede de lembrar que a vida pode ser melhor do que ela é e que nós, pessoas comuns, podemos fazer a vida ser melhor do que ela é. Quando conseguirmos isso, não precisaremos mais do Super-Homem.
Rogério de Campos, 56, é diretor
editorial da Veneta e autor de "Super-Homem e o Romantismo de Aço" (que
será lançado em maio pela Ugra Press) e "Imageria - O Nascimento das
Histórias em Quadrinhos" (Veneta).