March 28, 2010

Livro foca vida de mulheres vítimas do regime militar



Governo publica histórias de 27 sobreviventes e de 45 mortas ou desaparecidas

Publicação será lançada hoje, seis dias antes de o golpe completar 46 anos, e é a terceira da série "Direito à Memória e à Verdade"

ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

Em meio à tensão gerada dentro do próprio governo com a criação da comissão da verdade para investigar torturas, mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar (1964-1985), as secretarias de Direitos Humanos e de Políticas para as Mulheres lançam hoje o terceiro livro da série "Direito à Memória e à Verdade", desta vez focado nas mulheres vítimas do regime.

Sob o título "Luta, Substantivo Feminino", a publicação intercala as histórias de 45 mulheres mortas ou desaparecidas e os relatos de 27 sobreviventes de diferentes organizações de resistência à ditadura, armadas ou não. Algumas estavam grávidas, outras amamentavam, todas foram torturadas e, não raro, estupradas.



O primeiro livro da série era sobre as vítimas em geral e foi lançado pelo presidente Lula no Planalto, em agosto de 2007, gerando reações nas Forças Armadas. O atual será divulgado na PUC-SP, seis dias antes de o golpe de 31 de março de 1964 completar 46 anos.

Entre os depoimentos, não consta o da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, que também foi militante da esquerda armada, presa e torturada e hoje é candidata à Presidência pelo PT. A explicação é que os autores quiseram dar um caráter suprapartidário ao trabalho, sobretudo em ano eleitoral.



Na apresentação, o ministro Paulo Vannuchi (Direitos Humanos), que é o principal responsável pelo 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, faz um apelo velado às Forças Armadas, ao dizer que a publicação "pode mudar opiniões de quem ainda resiste à elucidação profunda de todos esses episódios como passo necessário a uma reconciliação nacional".

Em seguida, a ministra Nilcéa Freire (Mulheres) defende ampla apuração da verdade: "A superação dos fantasmas que ainda assombram nossa história recente exige confrontá-los. Para exorcizá-los, será preciso retirá-los dos lugares onde estão escondidos, nomeá-los, olhá-los nos olhos e compreender os mecanismos que os permitem surgir".



As mortas e desaparecidas são divididas em três grupos: de 1964 a 1974, incluindo o período agudo da repressão; de 1974 a 1985, já no processo classificado de "distensão"; e a Guerrilha do Araguaia, no final da década de 1960 e início da de 1970, na região do rio Araguaia.

Todas são acompanhadas de fotos mostrando rostos jovens, alguns quase infantis, como o de Aurora Maria Nascimento Furtado (1946-1972), que estudava Psicologia na USP e militava na UNE (União Nacional dos Estudantes) e na ALN (Ação Libertadora Nacional).

Conforme o livro, "Aurora foi submetida a pau de arara, choques elétricos, espancamentos, afogamentos e queimaduras, além da "coroa de Cristo", fita de aço que vai sendo apertada aos poucos e esmaga o crânio. Morreu no dia seguinte". Seu corpo, porém, foi encontrado no subúrbio do Rio crivado de balas.

Entre os depoimentos de sobreviventes, há o de Damaris Lucena, que hoje vive em São Paulo. Era feirante e militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Foi presa quando seu marido foi morto a tiros à queima-roupa, em 1970.

"Minha boca ficou toda inchada, cheia de dentes quebrados (...). Minha vagina ficou toda arrebentada por causa dos choques. Meu útero e minha bexiga ficaram para fora. Eu tive de fazer operação em Cuba, levei 90 pontos e estou viva por milagre", relata.

O livro é mais um esforço para apuração e divulgação da verdadeira história da repressão política na ditadura, enquanto o governo expande a procura de restos mortais de desaparecidos para além da região do Araguaia.



Folha, 25 de março de 2010
 

'Tô pensano...' - Uma reflexão sobre as drogas e o Daime

 ARNALDO BLOCH

E stive pensando em como a questão das drogas, por si só, provoca distorções de percepção, por mais careta que seja, ou esteja, a pessoa que se envolve em discussões sobre o assunto. Por exemplo, o Jojó entorna uns chopes, dá dois num baseado e passa uma cantada grosseira numa senhora de boa família. A grande maioria dos observadores dirá que o Jojó agiu assim por causa do bagulho e da gelada. Só uns gatos pingados dirão que o Jojó é assim mesmo, inconveniente, que o goró tem pouco, ou nada, a ver com o caso.

Se, por outro lado, o Jojó for para casa e, antes de puxar um ronco, telefonar para o Retiro dos Artistas anunciando uma doação gorda para a Páscoa dos velhinhos, os que souberem de seu ato dirão que o Jojó é generoso, um cara legal, um santo. Poucos atribuirão seu impulso à maconha e ao álcool, a não ser, é claro, que o Jojó seja um tremendo mão-deporco que só coça o bolso quando bebe e fuma.

Assim caminha o senso comum.

E o senso comum é ótimo quando não exclui a inteligência. Quando manipulado para criar verdades absolutas sem reflexão, tornase uma arma perigosa. Difundir em massa, por exemplo, que a morte do cartunista Glauco é uma evidência incontestável de que o Daime produz assassinos impiedosos é manipular o senso comum. Quantos assassinos os círculos que tomam o chá “produziram” nas últimas décadas? Há outros casos suspeitos relatados? Por outro lado, quantas são, comparativamente, as mortes provocadas por uso indevido de remédios e álcool? Alguém já investigou a influência de surtos de ansiedade por ingestão de litros de café por jornada de trabalho num comportamento criminoso? Dizer que o ayahuasca (a bebida indígena utilizada pelo Daime e outras congregações, a maior parte religiosas) agrava surtos de esquizofrenia (doença da qual o assassino de Glauco sofria) é chover no molhado. A ingestão de qualquer substância que amplie os sentidos pode agravar uma psicose.

Um indivíduo diagnosticado como esquizofrênico deve ser resguardado de ingerir qualquer coisa que não sejam as drogas receitadas por seu psiquiatra. Se, contudo, a família decide que ele pode frequentar cultos de Daime e seus líderes o recebem com o propósito de curá-lo, é um risco calculado por todos. Isto, é claro, não garante, nem de longe, que o ato que levou à morte de Glauco esteja associado ao processo que ele viveu naquela comunidade, inclusive porque o assassino, usuário de cocaína e crack, drogas que consumiu a caminho do local da tragédia. Usar tais correlações categóricas para questionar o fato de o ayahuasca ser hoje uma bebida legalmente utilizada é tão irresponsável quanto o eventual mau uso da substância.

Já tomei o chá em dois âmbitos. Da primeira vez, com uma tribo no Acre, durante uma noite inteira, no meio da floresta, sem qualquer ligação com o culto do Santo Daime. Interessavame mais beber com os índios, num ambiente dissociado do caráter sincrético-religioso que em muito desvirtua o sentido de seu uso original. Da segunda vez, no Rio, participei de uma celebração do Daime com quase trinta pessoas. Não experimentei, nas duas ocasiões, nem êxtase nem desespero. Não senti alterações na noção do tempo. O que vivi, ao contrário, foi um longo percurso de exame existencial em estado de alta consciência, e, em paralelo, um conjunto de visões que, entre si, formavam uma lógica de integração dessas percepções individuais com o que estava à minha volta (sobretudo na Amazônia, embalado pelos sons e o céu da floresta).

Nas duas experiências, só vi, no comportamento dos outros, ímpetos de comunhão e busca de paz. A culpa que havia ali estava na consciência de cada um, confrontada com um sentido ampliado do inconsciente e da ancestralidade.

O que chamo de ancestralidade, independentemente de estar ou não relacionada com espíritos ou entidades (como creem os índios) ou com Jesus e Maria (como creem os cultores do Daime) integra o conjunto de símbolos que constroem a psique humana em sua marcha civilizacional, transmitida de geração em geração. Símbolos que, estimulados pela bebida, desfilam ante o pensamento, que traduz as metáforas num léxico que muito ensina sobre o que somos, o que fomos e o que podemos vir a ser. A maioria de pessoas que tomaram o chá com quem conversei relatam, em essência, a mesma coisa. Algumas creem que divindades estão presentes. Outras, como eu, pensam que isso nada tem de sobrenatural.

E que tem tudo a ver com evolução.

Foi a experiência mais significativa que vivi.

Se eu morrer hoje, já terei visto aquilo que precisava ver. Sou judeu e tenho uma tendência ao agnosticismo que inclui ciclos de maior e menor aproximação com a ideia de Deus.

Bem sei das mazelas que a religião, com ou sem chá, podem provocar. Bem sei, também, que o ayahuasca pode precipitar, em alguns casos, problemas psíquicos ainda não manifestos num indivíduo, como outros estímulos, químicos ou emocionais, podem fazer.

Sei também que, embora entorpeça e provoque vivências dolorosas dentro desse exame que uns chamam de “trabalho”, não intoxica, não pesa no fígado, e, na maior parte das vezes só traz boas emanações, num espectro coletivo. Por incrível que pareça, não conheço relato de alguém que tenha burlado a proibição de se vender o ayahuasca, o que é um tanto misterioso. E raríssimos relatos de uso individual, sem assistência, desta poderosa poção que se populariza mundo afora.

Glauco, certamente, sabia disso. A infelicidade que se abateu sobre sua família e sua comunidade não justifica invalidar-se, com meia dúzia de loquazes fórmulas preconceituosas, tudo de bom que se acumulou através do uso de um chá milenar, já conhecido de civilizações pré-colombianas de alto saber, e que tem muito mais história que as vozes desejosas de parar o tempo através da amplificação consciente do medo e da ignorância.

O Globo, 27 demarço de 2010

 

March 11, 2010

Abaixo a repressão

JOSÉ GERALDO COUTO



A firula, mesmo quando "desnecessária", faz parte do futebol como espetáculo e como disputa moral


HÁ QUEM CONDENE a jogada de efeito "desnecessária". Perguntam: para que essa pedalada que não sai do lugar? Esse chapéu no meio de campo? Esse toque entre as canetas perto da lateral?

Discordo radicalmente. Entre a firula e sua repressão, fico com a firula. Por dois motivos. Primeiro: quem define o que é necessário ou não?
Dirão: necessária é a jogada que redunda em situação de gol. Ora, que pobreza de espírito.

O futebol é não apenas um confronto de técnica e estratégia mas também uma disputa, digamos, moral (no sentido amplo da palavra). Os fatores psicológicos ou emocionais contam muito na definição da supremacia de um jogador ou de um time sobre seu adversário.

Sempre me lembro de uma história contada por Djalma Santos. Já em fim de carreira, o grande lateral do Palmeiras tinha de vez em quando pela frente o então jovem e endiabrado ponta Edu, do Santos.

Quando isso acontecia, Djalma, logo nos primeiros minutos, tratava de aplicar um drible humilhante sobre o rapaz, para "aquietá-lo". Era como se dissesse: "Sabe com quem você está falando?". A tática, segundo ele, dava certo. Outros laterais, mais limitados, tentavam em vão parar Edu na porrada.

Gostei da resposta de Neymar quando o zagueiro Chicão, no último Santos x Corinthians, disse que ia "quebrá-lo no meio". O atrevido atacante respondeu: "Vem. Se você me achar...".
E olhe que Chicão não é nenhum brucutu. Como diria o Neto, é um baita jogador. Por sorte, não "achou" Neymar naquela tarde. Sorte de quem? De Neymar e dos santistas, claro, mas também de todo mundo que gosta de futebol bonito.

E aqui entramos no segundo motivo pelo qual defendo a chamada firula. Entre muitas outras coisas, futebol é diversão. O público quer ver coisas espetaculares, surpreendentes, desconcertantes. O torcedor pode até se irritar momentaneamente quando o drible é contra o seu time, mas é essa promessa de encantamento que faz a gente ir ao estádio.

Será que o torcedor corintiano não se diverte ao rever hoje, oito anos passados, a série de pedaladas que Robinho deu sobre Rogério no Brasileirão de 2002? Na hora doeu, mas hoje é possível contemplar com deleite aquela explosão de talento e ousadia.

Fico assustado ao ver a reação castradora de atletas, técnicos e boa parte da crônica esportiva diante de lances de irreverência e habilidade.
Garrincha, se atuasse hoje, seria executado em praça pública.

Será que esse impulso repressivo não faz parte, de algum modo, da onda de moralismo que assola o esporte, em termos mundiais? Assim como a condenação pública dos atletas que "pulam a cerca", a censura ao drible expressa, a meu ver, uma nada saudável aversão ao prazer.

Folha, 6 de março de 2010