September 30, 2018

Sopro de esperança após despejo


 CELINA CÔRTES
 
Uma luz começa a surgir no fim do túnel para o Mercadinho São José, que desde 1989 ocupa um imóvel do INSS, em Laranjeiras, na Zona Sul, e foi despejado na segunda-feira 10 de setembro, deixando na rua 60 famílias desempregadas. Uma Medida Provisória (MP), porém, publicada no Diário Oficial na última segunda-feira, pode dar novo rumo a essa história. A MP dispõe sobre a transferência de imóveis do Fundo do Regime Geral de Previdência Social para a União. Com isso, o mercadinho poderá ser transferido para o Ministério da Cultura, cujo titular, Sérgio Sá Leitão, participou de recente reunião com o presidente do INSS, Edison Garcia, e com a deputada federal Laura Carneiro (PSD.RJ), o que contribuiu para acelerar o andamento da MP e a possibilidade de resgate da vocação cultural do espaço.


Macaque in the trees
Mercadinho dias antes de sofrer a ação de despejo: Secretaria de Estado de Cultura está tentando marcar reunião com o INSS para recuperar a fachada do imóvel histórico (Foto: José Peres)

Segundo o INSS, o mercadinho está no primeiro lote da lista de 3 mil imóveis do instituto que serão repassados à União. “As tratativas estão mais adiantadas que a burocracia”, antecipou o chefe de Gabinete da presidência, o piauiense Antônio Freitas Júnior, cujos pais frequentaram o espaço de artes no período em que passavam férias no Rio de Janeiro. “Eu era pequeno para tomar chope, no entanto sabemos no INSS o que o mercadinho representa para a cidade”, afirmou, com humor.
Conforme sua assessoria de imprensa, o Ministério da Cultura já comunicou ao INSS e à Secretaria de Patrimônio da União (SPU) quais os imóveis que podem ter uso cultural, como o Mercadinho São José, e aguarda os trâmites para que haja a transferência do INSS para a (SPU) e posteriormente da SPU para o MinC: “Até lá, a forma de uso e as regras de eventual cessão a terceiros serão formuladas e definidas, de acordo com as leis vigentes e a vocação e o histórico de cada espaço”.


Macaque in the trees
Um dos 16 boxes que funcionavam no local, incluindo restaurantes e brechó (Foto: José Peres)

Quando houve o despejo, realizado por policiais federais e agentes do Núcleo de Polícia da Marinha, funcionavam no mercadinho cinco restaurantes, um estúdio de música, um centro cultural, um ateliê de arte e um grupo de capoeira. O espaço também sediava três blocos de carnaval, inclusive o Imprensa que eu Gamo, dos jornalistas, fundado em 1995.

Recuperação da fachada

O mercadinho nasceu do acordo assinado entre o INSS e a secretaria Estadual de Cultura, em 1989, que nunca previu a cobrança de aluguel dos usuários, mas apenas a sua manutenção. “Agora, queremos contribuir para recuperar a fachada do imóvel e fazer um planejamento estratégico para que as atividades culturais se tornem sustentáveis”, afirmou o subsecretário estadual de Cultura, Léo Feijó. Segundo ele, a secretaria já fez contato com o INSS em Brasília e será marcada uma reunião entre as partes para discutir o assunto, ainda sem data marcada.



Macaque in the trees
Imagem do santo que dá nome ao mercado em oratório (Foto: José Peres)

De acordo com o diretor cultural do Mercadinho, Carlos Newton, a situação do Mercadinho São José continua sub judice no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que julga o mandado de segurança impetrado pelo advogado Leonardo de Souza Teixeira em defesa dos produtores culturais do imóvel. “Ainda falta o julgamento de apelações de boxistas para o julgamento, mas se for aceito, voltamos para lá”, garante Newton. O JORNAL DO BRASIL não conseguiu contato com a presidente interina da Associação de Moradores de Laranjeiras (AMAL), Glória de Souza.

Por ter sido tombado pela Câmara Municipal e pela Prefeitura do Rio, o imóvel não pode sofrer modificações, o que reduz seu valor comercial. O espaço foi a estrebaria de uma fazenda que existia em Laranjeiras, onde eram plantados café e frutas cítricas, daí o nome do bairro. A estrabaria ficava à beira do Rio Carioca, que hoje corre subterrâneo até o Aterro do Flamengo.

September 20, 2018

A natureza do pleito


TEREZA CRUVINEL

A transferência de votos de Lula para Fernando Haddad está em pleno movimento. Se ele mantiver o ritmo de crescimento apresentado nos primeiros quatro dias de campanha, de quatro pontos percentuais segundo o Datafolha, em breve poderá isolar-se no segundo lugar. Nisso acreditam até os analistas do mercado. Se estas previsões se confirmarem, podemos ter no segundo turno mais uma eleição plebiscitária, um confronto entre o PT e o antipetismo, antes encarnado pelo PSDB, que perdeu o papel para Bolsonaro. Resumidamente, entre os que venceram em 2016 e os que foram derrubados.

Mais do que uma disputa entre esquerda e direita (no caso uma direita extremada e tosca), o segundo turno pode tomar a forma de um acerto de contas sobre o que se passou no Brasil nos últimos anos. De um lado, os que enxergam o capeta no PT, embora sabendo que a corrupção não é monopólio petista; os que aplaudiram a derrubada de Dilma com um crime de responsabilidade forçado; os que aplaudiram a prisão de Lula e sua inabilitação eleitoral, apesar das anomalias dos processos. Estes poderão votar em Alckmin, Meirelles, Amoedo, Álvaro Dias ou Bolsonaro. Mas votarão, majoritariamente, em Bolsonaro, levando-o ao segundo turno.

De outro lado, votarão majoritariamente em Haddad os que viram um golpe no impeachment, acham a prisão de Lula injusta e destinada a impedir sua candidatura e, diante da crise que se agravou sob Temer, querem de volta as políticas petistas. Darão na urna a resposta que não deram nas ruas, ou porque estavam envergonhados com a corrupção nos governos petistas, ou porque acreditaram mesmo que tudo poderia melhorar com o “Fora PT”. E também porque os mais pobres não se sentem donos das ruas como a classe média.

Haddad e Ciro estão empatados, mas o petista tem a enorme vantagem de ser “o candidato de Lula”, também chamado de Andrade e de Adauto. Nos quatro dias em que fez campanha, ele falou o nome de Lula em cada frase, definiu-se como mero substituto, prometeu a volta dos bons tempos e evocou as “perseguições” ao partido e ao ex-presidente, bem como a sabotagem parlamentar que ajudou a afundar o governo Dilma. É a sua narrativa. Cabe aos adversários contestá-la. No horário eleitoral, trechos da carta de Lula continuarão sendo lidos e dramatizados.

O discurso de Ciro, de que o PT estava levando o país para a beira do abismo (representado por Bolsonaro), deixará de fazer sentido. Poderá ele, no máximo, dizer que tem mais chances de vencer Bolsonaro no segundo turno. Assim como Alckmin alega ter mais chances de derrotar o PT. Na simulação de segundo turno do Datafolha, Ciro ganha de 45% a 38% de Bolsonaro, e Haddad perde de 41% a 40%. Mas é cedo para tomar este empate técnico como tendência.

Ciro também se opôs ao “golpe” e tem sido mais crítico de Temer que o PT. Não teve o apoio do PT porque Lula, para sua estratégia, precisava de um petista que se submetesse até mesmo ao timing do lançamento tardio da candidatura, que a tantos pareceu loucura. Foi se mantendo candidato, apesar da impugnação certa, que preservou unido o eleitorado que agora tenta transferir para Haddad. Nem Ciro nem qualquer aliado de outro partido teria feito este jogo, ou abdicaria do protagonismo para se declarar substituto.

Contra a percepção de uma eleição plebiscitária, entre o PT e o antipetismo, pode se alegar que Bolsonaro foi ator secundário nos processos que levaram aos infortúnios petistas. No impeachment, seu feito maior foi dedicar o voto ao torturador Brilhante Ulstra. Na linha de frente estavam o MDB e a turma de Temer e o PSDB liderado por Aécio. O Centrão aderiu depois, quando Dilma já estava perdida, após o Judiciário impedir Lula de se tornar ministro para articular a reação política. Mas, na ausência de candidato competitivo destas forças vitoriosas em 2016, foi Bolsonaro que assumiu a “persona” do anti-PT. Com ele será o duelo.

September 17, 2018

Fora das caixinhas



TEREZA CRUVINEL

Houve uma gritaria supostamente legalista quando, há poucos dias, o candidato Ciro Gomes afirmou que Lula só sairá da prisão se a Justiça e o Ministério público “voltarem para suas caixinhas”. Ciro já explicou dezenas de vezes que se referia aos excessos, desmandos e exorbitâncias que acontecem nesta esfera. O diretor-geral da Polícia Federal, Rogério Galoro, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, revela comportamentos da procuradora-geral da República e de dois desembargadores, no dia do “prende-solta” de Lula, bastante ilustrativos da desordem apontada por Ciro. Ontem eles tentaram justificar o que fizeram mas ficou evidente que exorbitaram.

Em nota, o presidente do TRF-4, Thompson Flores, admitiu que telefonou mesmo ao diretor-geral da PF, pedindo que não cumprisse a ordem de soltura emitida pelo desembargador Rogério Favreto, de seu próprio tribunal, que no plantão de domingo, dia 8 de julho, concedera habeas corpus a Lula. Diz ele na nota que o fez porque, em seguida, iria emitir ordem judicial anulando a decisão do plantonista.

Anota refere-se também a registro da revista “Veja”, segundo o qual o desembargador Gebran Neto teria dito, a pessoas de seu relacionamento, que “agiu fora da lei” para impedir o mal maior, que seria a soltura de Lula. Gebran, como se sabe, foi o primeiro a desautorizar o colega Favreto, invocando sua condição de relator do processo. Diz a nota que Gebran “não autoriza ninguém a falar em seu nome, nem a imputar-lhe declaração sobre fatos objeto de julgamento”. Não nega categoricamente que tenha dito o que lhe é atribuído.

A procuradora-geral Raquel Dodge, que também telefonou ao diretor-geral da PF naquele domingo, não se manifestou. Quando autoridades do sistema de Justiça “saem de suas caixinhas” tão afrontosamente, permitem discursos como o que fez ontem na Câmara o deputado petista Paulo Pimenta. Depois de afirmar que três autoridades se juntaram para burlar a Justiça, o que é um crime, e que a associação de mais de duas pessoas para cometer crimes caracteriza quadrilha, ele pergunta: “quem vai investigar esta quadrilha de togados?”

Colocar cada qual em sua caixinha, como disse Ciro, não é manietar a Justiça ou coisa assim, como se tentou vender. É restabelecer os limites que impedem ocorrência como as daquele domingo, só possíveis quando o Estado de Direito preserva a forma mas não a inteireza.
 

September 16, 2018

Nunca mais vou ver isso, pai?, perguntou Matias, 5, hipnotizado por fogo em museu


Matias não conseguia parar de olhar para a TV e chorou ao saber que havia múmias 

 

José Roberto Torero 
 

Depois disso, nem a comemoração do bicentenário do museu contou com a presença de um ministrinho sequer. Um desprezo histórico e que deve continuar, porque apenas 2 dos 13 programas presidenciais (Rede e PT) usam a palavra “museu” em seus textos. Mas achei que era informação demais.
Matias, ainda olhando as chamas, fez cara de curioso e disse: “Por que isso pegou fogo?” Essa pergunta era mais difícil. O que eu deveria responder?
Que os repasses do governo federal para o Museu Nacional caíram de R$ 1,3 milhão em 2013 para R$ 643 mil em 2017? Que de janeiro a agosto deste ano o governo gastou apenas R$ 98 mil com o museu, quando no mesmo período, em 2013, a verba foi de R$ 666 mil, uma queda de 85%? Que a UFRJ, que administra o museu, repassou à instituição R$ 709 mil em 2013, mas, no ano passado, apenas R$ 166 mil?
Talvez isso lhe desse a impressão de que faltava dinheiro. Mas não é bem assim. Com o valor gasto na reforma do Maracanã para a Copa seria possível bancar 2.000 anos de manutenção básica do Museu Nacional.
Os R$ 268,4 mil gastos pelo Museu Nacional em 2018 equivalem a dois minutos do custo da máquina judiciária. E os R$ 520 mil anuais para a manutenção básica do Museu Nacional são menos do que a Câmara dos Deputados gasta por ano para lavar seus 83 carros oficiais.
Achei que esses números seriam muito complicados, apesar de Matias já contar até mil. Então respondi apenas levantando os ombros e apertando os lábios, o que na minha língua paterna quer dizer “Não faço ideia”.

O questionário ainda não tinha acabado. Matias perguntou o que tinha dentro daquele prédio. Falei que havia coisas espetaculares, como o Dino Prata, um fóssil de dinossauro com esqueleto de 13 metros de comprimento, e tinha muitas relíquias de índios, de africanos e de egípcios.
“De egípcios?!”, ele perguntou e exclamou ao mesmo tempo. Aí eu percebi que teria um problema. É que Matias é apaixonado pelo Egito Antigo. Não sei explicar como isso começou, mas ele torceu pela seleção egípcia na Copa, prefere Salah a Neymar e o tema de sua festa de cinco anos não foi um super-herói da Marvel nem personagens da Disney, mas múmias, faraós e pirâmides. Tenho fotos para provar.
Quando percebi que me movia em terreno movediço, preferi não contar que o Museu Nacional abrigava a maior coleção de arte egípcia da América Latina, boa parte arrematada por Dom Pedro 1º em um leilão de 1826, numa época em que o comércio de antiguidades do Egito ainda era legal.
Não contei que a coleção egípcia possuía 700 itens, nem que uma das principais peças era o sarcófago de Sha-Amun-em-su, uma cantora do santuário do deus Amun, presente do vice-rei do Egito ao imperador D. Pedro 2º durante sua viagem ao país, em 1876.
Mas tive que contar que havia múmias.
Foi o que bastou. Matias começou a chorar. Um choro triste, decepcionado, daqueles que não adianta assoprar nem prometer chocolate. Aí ele me perguntou: “Eu nunca mais vou ver isso, pai?”
E eu respondi: “Nunca mais, Matias.”

 

September 11, 2018

Desafio de pacificar

TEREZA CRUVINEL


Nos dias que precederam o impeachment da ex-presidente Dilma, justificando a medida que lhe presentearia com o governo, a pretexto de punir corriqueiras pedaladas fiscais, o presidente Temer fez pregação correta que não teria capacidade de cumprir. “Alguém precisar ser capaz de pacificar e reunificar o país”. Se ela não foi, ele, muito menos. Mas já não importa, porque será de todos, e sobretudo do futuro presidente, o desafio de pacificar um pais que, tal como indicado pelo atentado contra o candidato Bolsonaro, segue marchando para a radicalização e a cisão, vizinhas da barbárie.

O tom moderador prevaleceu nas últimas horas mas ainda que a fervura da campana baixe, as brasas continuarão ardendo sob as cinzas, a divisão que os candidatos expressam continuará existindo no interior da sociedade, os rios de ódio continuarão correndo, se não forem contidos na fonte. Para o próximo presidente, pacificar o país será uma tarefa tão importante como a superação da crise fiscal e da estagnação da economia, com todas as suas consequências, como o desemprego, a queda na renda e a precarização de serviços públicos essenciais, como saúde e educação.

Do hospital, Bolsonaro recomendou moderação aos dirigentes da campanha e que transmitam seu pedido à militância. Pediu um tom mais ameno nos comentários sobre o próprio ataque. Seu vice, general Mourão, na primeira hora declarou não ter dúvidas de que o PT era o autor do atentado. Ontem, ele foi um dos encarregados de transmitir o pedido de moderação, que não garante a reação dos seguidores de quem chamam “mito”. A temperatura é alta nas redes sociais. Eles acusam o PT enquanto ativistas de esquerda questionam a autenticidade do atentado. Praticado por um esquizofrênico, eleitoralmente ele favorece a vítima e mais prejudica Alckmin (concorrente no campo da direita) e o PT, que mesmo sem Lula tem grandes chances de levar Fernando Haddad ao segundo turno.

Os concorrentes já estão ajustando seus discursos e agendas ao ambiente traumático, que infunde temor e exige cuidado. E quem mais teve que se adequar foi Alckmin, que vinha movendo campanha negativa contra o ex-capitão. Agora, vai apenas questionar o preparo dele para governar. Uma campanha mais suave, entretanto, não significará a pacificação.

A divisão, a intolerância e o sectarismo já existiam antes, mas se acentuaram depois da eleição de 2014, quando o senador Aécio Neves não aceitou a vitória de Dilma. Presidindo o PSDB, contetou o resultado no TSE e estimulou a pregação do impeachment antes mesmo da segunda posse dela. A pacificação, agora, começará pela aceitação do resultado. Ainda mais se o segundo turno for entre as forças mais antagônicas, vale dizer, entre Bolsonaro e o petista Fernando Haddad. Se não formos um país capaz de respeitar a regra da alternância no poder, não estaremos preparados para a democracia. E se conciliação foi impossível quando a polarização era entre PT e PSDB, mais difícil será agora, com o espectro ideológico mais fragmentado e o surgimento de uma extrema-direita raivosa. O desafio será de todos, não só do futuro presidente. Este será, por sinal, tema do discurso de posse do ministro Dias Toffoli na presidência do STF, no dia 13. O Judiciário, assim como o MPF, têm parte da culpa. Deixaram a Lava Jato virar inquisição e ajudaram a demonizar a política.

A herança de Temer tudo dificultará. A briga sempre aumenta quando falta pão. Além do déficit primário de R$ 139 bilhões, o orçamento proposto para 2019 traz buracos enormes na área social; os recursos da Previdência são suficientes para bancar aposentadorias apenas até agosto. Faltam R$ 200 bilhões, além de outros R$ 30 bilhões para o BPC, o benefício continuado para idosos sem renda e deficientes. E dos R$ 30 bilhões necessários à continuidade da Bolsa-Família, só estão garantidos R$ 15 bilhões. Pacificar um pais quebrado, empobrecido e disposto à guerra é um grande desafio. É preciso pensar nisso.

September 10, 2018

O país dos hidrantes secos


Sérgio Rodrigues

 Bombeiro em escombros do Museu Nacional, destruído por incêndio

O hidrante seco é um símbolo do Brasil. Primo-irmão da privada seca, mais conhecida como penico, emblema do “país do futuro” em que metade da população não tem acesso a redes de esgoto, o baixinho notável conheceu mais um momento de brilho na noite de domingo.
Aliado do terrível fogo, o Grande Fogo Purificador que mora dentro das armas que levam seu nome, o hidrante seco —ou meia bomba, dá no mesmo— ajuda a limpar o mundo de toda frescura,
toda sutileza, todo verniz civilizatório com suas relíquias, pesquisas, memórias e apego a coisas inúteis.
Implacável na busca da essência, o GFP reduz nossa confusa realidade ao que importa —primeiro ao esqueleto carbonizado, depois a cinza, a pó, de onde nos restará a tarefa de reconstruir um país livre de história e purgado de desvios humanistas.
Ou será coincidência que o meteorito do Bendegó tenha resistido ao holocausto enquanto dos artefatos toscos urdidos por povos incapazes de sobreviver ao progresso já não há bulhufas? Sobre qual pedra ergueremos o futuro?
Deus nos livre de hidrantes com água, santuários abarrotados de peças insubstituíveis com sistema antifogo, museus modernos e acolhedores frequentados por multidões, multidões que saem da escola sabendo ler o que está escrito nas plaquetas de identificação das peças.

Soldadinho do fogo impalpável, seu anjo de ferro entre os mortais, o hidrante seco é de sublime inutilidade, como o gesto estético que funda toda arte, mas nela ancora uma função superior: a de nos negar a menor ilusão de luta. Não é pouco.
Vejamos. Talvez não houvesse mesmo nada a fazer aquela noite. A precária força humana chega a ser ridícula quando se defronta com tantas décadas de descaso acumulado num só lugar: desinteresse, desinvestimento, fios expostos, tábuas rangendo, escadas bambas, salas fechadas, público arisco.
Como impedir que arda o cipoal ressequido de culpas entrecruzadas entre administrações universitárias, gerações de governantes de mão fechada e cabecinha também, público indiferente? Mas, ah, como teríamos lutado mesmo assim!
Isto é, se o hidrante seco deixasse. Mas não deixou, nunca deixa. É uma obra-prima. Uma peça de Duchamp. Um dedo médio vermelho erguido na esquina, convidando todo mundo a nele pousar
o traseiro e relaxar.
Rendidos ao seu poder, bombeiros borboletearam inúteis ao redor da hecatombe e diante das câmeras de TV, coçando a cabeça. Alguns verteram lágrimas, mas estas, embora sinceras e hídricas, jamais teriam volume para inflar as mangueiras impotentes. Mandou-se buscar água, operação trabalhosa que leva tempo. E tempo é a matéria que o GFP queima primeiro, às gargalhadas.
Importamos a palavra “hidrante” dos EUA há um século. Os ingleses não gostam do original “hydrant”, dizem que não passa de um americanismo e que sua formação a partir do elemento grego
“hydor” é irregular.
Pode ser, não convém discutir com o dicionário Oxford. Mas parece que no país de John Orr —bombeiro de Los Angeles que em 1991 foi preso e condenado como o piromaníaco responsável por 2.000 incêndios— hidrantes compensam a morfologia plebeia com o fato de que funcionam.
Com isso quero dizer o seguinte: jorram água! Sim, em catadupas. A menos que sejam forjadas aquelas fotos antigas, clichês jornalísticos de verão, em que crianças brincam risonhas diante de hidrantes abertos. Mas não, é claro que as fotos não são forjadas. Que país mais sem imaginação.


September 7, 2018

Como sumir com Lula


TEREZA CRUVINEL

A cassação da candidatura do ex-presidente Lula pelo TSE, na madrugada de sábado, não o tirou de cena nem fez cessar o zumbido de seu nome na campanha. Quem acreditou que seria assim agora estranha que o assunto não tenha sido liquidado. Recorrendo à ONU e ao STF, o PT cumpre a promessa de levar a candidatura ao limite extremo. Já o alarido em torno da propaganda eleitoral e de suposta desobediência à Justiça Eleitoral, pode ter um segundo objetivo: levar o TSE a proibir completamente as aparições de Lula nos programas de seu substituto, um golpe que poderia não ser letal, mas muito prejudicial à transferência de votos.

A primeira peça da propaganda eleitoral no rádio, no sábado, saiu mesmo em desacordo com a orientação do TSE, pois nela Lula foi identificado como candidato. Segundo o partido, o próprio tribunal sabia que seria impossível, dada a hora de encerramento da sessão (depois da uma da manhã de sábado), impedir a veiculação. O Partido Novo protestou e o TSE proibiu a peça, que não mais foi exibida. Já no programa de TV de sábado Lula não figurou como candidato, embora tenha aparecido em gravação. Haddad foi apresentado como vice mas não se falou de quem. Algumas das 60 emissoras geradoras podem não ter conseguido trocar o programa, mas a edição foi feita e distribuída, garantem os petistas. O Novo voltou a acionar o TSE e a peça também foi vetada. A multa para cada transgressão foi fixada em R$ 500 mil.

Análise de conteúdo

Aqui está o pulo do gato. Em seu voto, o ministro Horbach entendeu que a peça não diz mas sugere que Lula é candidato, com blocos “que confundem o eleitor e criam estado emocional de dúvida não só quanto à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, mas também em relação à autoridade desta Justiça especializada para conduzir o pleito em curso...” Temos aí um tribunal melindrado. Ele fez uma análise de conteúdo do programa e decidiu segundo sua interpretação.

Se Horbach ou outro ministro do TSE utilizar-se deste método sempre que Lula aparecer e alguém reclamar, estará criada uma situação de censura. O PT pretende usar Lula como apoiador de Haddad, no limite de 25% do tempo, como previsto em lei. Mais grave será a situação se Lula for banido mas outros candidatos puderem se valer dos apoiados. Meirelles, por exemplo, cita Lula em seu programa, gabando-se de tê-lo ajudado a consertar a economia. Nenhuma lei veta a participação de um inelegível ficha suja como apoiador.

Trata-se de uma legítima preocupação com a liberdade de expressão e a isonomia eleitoral. Por ora, o Novo, partido de uma direita refinada, que não se confunde com Bolsonaro, está fazendo o papel de ponta de lança deste movimento para banir Lula, que se der certo será benéfico aos concorrentes.
Para o TSE, que carrega o ônus de ter tirado o candidato favorito da disputa, o banimento de Lula, de sua voz e imagem, elevará o desgaste e o descrédito no sistema. Foi este mesmo tribunal que, em nome da estabilidade política, deixou de condenar a chapa Dilma-Temer, o que derrubaria também o vice empossado com o impeachment. Dizer que agiu com Lula segundo a lei não impedirá a população de se lembrar que outros investigados pela Lava Jato, como Aécio Neves, Geraldo Alckmin e dezenas de congressistas estão aí, concorrendo a cargos diversos.

O tempo todo

O outro alarido é sobre a demora do PT em substituir Lula. É gente aliada e gente inimiga argumentando que o partido precisa indicar logo Haddad, antes que seja tarde para ele se tornar conhecido e começar a crescer com os votos do patrono. Errando ou acertando, Lula e o PT estão indo às “últimas consequências”, como sempre disseram que fariam. Anteontem, Lula ouviu os advogados antes de bater o martelo com Haddad sobre os recursos à ONU e ao STF. Se não derem resultado até o dia 11, haverá a troca. Até lá, quanto mais ruído em torno de Lula, melhor para Haddad. Aliás, Lula deve continuar pairando sobre a campanha o tempo todo, como candidato que será sem poder ser.

September 4, 2018

SOS museus


JAN THEOPHILO

Na semana que passou, a coluna abordou a crise pela qual passam os museus do estado do Rio. Na verdade, hoje reduzidos a um museu e meio onde, em vez de excelência, se vêem práticas, no mínimo, estranhas. Só que a situação é bem mais grave. Dos museus municipais, costumava-se dizer que o MAR e o Museu do Amanhã eram exemplos de excelência administrativa, graças à parceria com a Fundação Roberto Marinho. Mas, estranhamente, no começo da semana o Bispo Crivella remanejou R$ 2,75 milhões de recursos das lonas culturais e projetos de fomento para....aplicar esse recursos no Museu do Amanhã e no MAR. Intrigada, a coluna tentou ouvir o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, que fez a egípcia. O silêncio não foi por acaso. Os museus federais do Rio também não estão em situação melhor. O Museu Histórico Nacional sobrevive alugando seu espaço para eventos. E o Museu Nacional de Belas Artes, que tinha tudo para ser uma National Gallery brasileira, vive às traças. A culpa, dizem todos, é da crise econômica. Mas é justamente em momentos como este que sociedades decidem o que querem de suas vidas. Dizem que, certa vez, perguntaram a Winston Churchill se não era mais adequado direcionar o orçamento dos museus britânicos para os esforços militares da 2º Guerra. O velho buldogue deu um trago no charuto, tomou um gole de uísque e respondeu: “se é para fechar os museus, porque entramos em guerra?”

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O vereador Renato Cinco foi o único a protestar contra o remanejamento de verbas do Bispo Crivella. “Este remanejamento é absurdo”, diz o edil. “Colocar dinheiro em algo já contemplado pelo mercado em detrimento das lonas culturais é, para dizer o mínimo, perverso.”

September 3, 2018

maio de 2018: Bicentenário Museu Nacional, o mais antigo do país, tem problemas de manutenção


Instituição faz vaquinha virtual para reabrir sala de dinossauro e espera verba pública para restauro

Marco Aurélio Canônico 



Sentado atrás de sua mesa, num cômodo que já serviu de quarto para d. Pedro 1º, em frente a uma parede detonada por uma infiltração que vai do teto ao chão, Alexander Kellner, 56, diretor do Museu Nacional, explica por que decidiu instalar seu gabinete ali.

"Essa sala reflete o que o museu é: grandeza, com problemas. Eu a reabri pelo simbolismo, a gente deixa claro que não oculta os problemas, mas temos uma grandeza que ninguém tem, conquistada ao longo de dois séculos."

É nessa dicotomia entre grandiosidade e decadência que o primeiro museu do país, instalado num palácio imperial na Quinta da Boa Vista, zona norte do Rio, chega aos 200 anos, no próximo dia 6.

Criado por d. João 6º em 1818, como Museu Real —e em outro local—, o maior museu de história natural e antropológica da América Latina está subordinado desde 1946 à UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Com os seguidos cortes no orçamento da instituição, o Museu Nacional não recebe integralmente, desde 2014, a verba de R$ 520 mil anuais que bancam sua manutenção.
Para reabrir a sala, interditada há cinco meses após um ataque de cupins, o museu armou uma campanha de financiamento coletivo na internet, no ar até 4 de junho (benfeitoria.com/maxakalisaurus), que arrecadou R$ 40 mil até agora (a meta é de R$ 50 mil).
A reabertura, no entanto, não deve acontecer até a data do aniversário. É apenas um dos muitos projetos pensados para a efeméride que não se concretizarão.
Menos de 1% do acervo —que tem cerca de 20 milhões de objetos— está exposto. Entre os principais itens, o meteorito do Bendegó, o maior já encontrado no país, e a coleção de múmias egípcias, a primeira das Américas.
"O maior acervo é este prédio, um palácio de 200 anos em que morou d. João 6º, d. Pedro 1º, onde foi assinada a Independência", diz Kellner. "A princesa Isabel brincava aqui, no jardim das princesas, que não está aberto ao público porque não tenho condições."
A decadência física do prédio que abriga o museu desde 1892 é visível para os visitantes, que pagam R$ 8 pelo ingresso inteiro. Muitas de suas paredes estão descascadas, há fios elétricos expostos e má conservação generalizada.
O anacronismo das exposições, que não usam nenhum recurso tecnológico, também é evidente —e reconhecido pelo diretor.
"Não dá para ser um museu de cem anos atrás. A área expositiva tem de se adaptar, e a nossa está longe do que se espera de um museu de grande qualidade. Hoje tem de ter interatividade ou não alcança público nenhum." Seu modelo, diz, é o Museu de História Natural de Nova York, onde fez doutorado em paleontologia.
O ambiente pouco convidativo ajuda a explicar a queda de público desde 2013, que atingiu seu piso em 2016 (menos de 118 mil visitantes). Naquele ano, a UFRJ ficou sem dinheiro para pagar os terceirizados, o que levou ao fechamento temporário do museu.
"Até hoje as pessoas pensam que ele está fechado", diz seu diretor. O encerramento das atividades do zoológico, vizinho na Quinta da Boa Vista, e a inauguração do Museu do Amanhã completam a explicação para a queda de visitantes.

Contrato com BNDES garantirá R$ 21,7 mi para restauração

A falta de verba para fazer uma celebração à altura dos 200 anos —haverá uma pequena festa no dia do aniversário, além da abertura de uma nova exposição, sobre corais— faz com que a direção do Museu Nacional trate o 6 de junho como o início de um ano de comemorações.
Ao longo dele, espera avançar na reforma de ao menos parte do prédio. Um primeiro passo nesse sentido deve ser dado na própria data do aniversário, quando a instituição celebra com o BNDES um contrato de R$ 21,7 milhões para investir em sua restauração.
Há outra negociação milionária encaminhada para bancar uma grande exposição e a expectativa de que cinco das principais salas sejam reabertas até 2019.
Como qualquer prédio histórico tombado, o palácio não demanda simples reforma, mas restauração —muito mais custosa e demorada.
Alexander Kellner diz serem necessários R$ 300 milhões, investidos ao longo de pelo menos uma década, para executar o Plano Diretor do museu.
Ele prevê a transferência da parte administrativa para prédios que seriam construídos em uma área vizinha, do governo federal, deixando o palácio livre para as mostras.
Para conseguir a doação do terreno, o diretor diz que vem tentando audiência com a Presidência da República, mas que não passou "do cara do cafezinho".
O último presidente a visitar o museu foi Juscelino Kubitschek (1956-1961), lembra ele. "O Brasil não sabe da grandeza, da riqueza disso aqui. Se soubesse, não deixaria chegar neste estado."


  • September 1, 2018

    Morrer de véspera


    TEREZA CRUVINEL

    “Pressões enormes” atuaram, entre a noite de quinta-feira e a tarde de ontem, para que o TSE antecipasse o julgamento dos pedidos de impugnação da candidatura do ex-presidente Lula, barrando, por tabela, seu acesso ao horário eleitoral de hoje. Com a degola antecipada de Lula, antes dos cinco dias de prazo para as alegações finais dos impugnantes, o TSE atingiu em cheio a estratégia eleitoral petista da transferência de votos, ao impedir a aparição de Lula no programa eleitoral de hoje. Essa foi a razão da pressa e das pressões.

    Na noite de quinta, o tribunal chegou a divulgar uma pauta para a sessão de ontem, que não continha qualquer matéria relacionada a Lula. Ontem a presidente da corte, Rosa Weber, atendeu aos apelos do relator, ministro Roberto Barroso, para incluir as impugnações na pauta. A candidatura de Lula seria impugnado mais cedo ou mais tarde, mas o TSE aceitou o risco de desgastar-se, atropelando a lei e os prazos, para impedir que ele falasse como candidato, hoje, no rádio e na TV. Seriam aparições provisórias, mas poderiam ser fortemente indutoras de voto no substituto. A decisão antecipada pode aumentar as desconfianças internas e externas sobre o Judiciário brasileiro e também fortalecer a narrativa do Lula perseguido, favorecendo o novo candidato do PT.

    De pressões falavam até os corredores do TSE antes do início do julgamento. Quem garantiu que fossem atendidas foi Barroso, ao convencer Rosa a incluir o caso na pauta, de última hora. Dificilmente os ministros terão tido tempo para ler a defesa de 200 páginas, apresentada pelos advogados de Lula perto da meia noite de quinta-feira. Rosa baixou os olhos quando um deles, Luiz Fernando Pereira, recordou o que ela disse ao refugar, há algumas semanas, o pedido de impugnação antecipada do MBL: “Vamos observar os ritos e os prazos. O direito tem seu tempo”. Ontem ela mudou de ideia.
    Dois alvos

    A lei sempre garantiu aos candidatos sub judice o acesso ao horário eleitoral e o direito de praticar atos de campanha enquanto o tribunal não decidisse sobre suas candidaturas. Barrar previamente o acesso de Lula à TV seria, portanto, uma ilegalidade e um casuísmo gritantes demais. O jeito foi antecipar o julgamento da própria inelegibilidade, queimando o prazo que ainda havia pela frente.

    A defesa fez sustentações brilhantes porém inúteis. Barroso foi um verdugo frio e preciso. Sapateou sobre a determinação do Comitê de Direitos Humanos da ONU, negando-lhe o efeito vinculante. E desculpou-se, antes de enfiar a faca e torcer: não se movia por razões pessoais, políticas ou ideológicas. Pensava nas instituições, na Constituição e na democracia. Queria garantir que o eleitorado conhecesse logo o quadro definitivo de candidatos e não via razões para aguardar mais cinco dias para apresentar seu voto. A decisão devia acontecer antes do início do horário eleitoral, para evitar a situação em que “no meio do caminho haja uma substituição”.

    Exatamente a situação desejada pelo PT. Com esta ultima frase, Barroso explicitou cristalinamente que tinha um duplo alvo: antecipar a degola de Lula e também impedir que o PT tirasse proveito de seu favoritismo em favor do candidato substituto.

    Surpreendente foi o voto do ministro Luiz Fachin, ao votar pelo acolhimento da recomendação do comitê da ONU, até que Lula tenha esgotados os recursos contra sua condenação penal. Se houver recurso ao STF, haverá lá outros ministros que pensam como ele? Mas depois dele, votaram com o relator os ministros Jorge Mussi, Og Fernandes e Admar Gonzaga, perfazendo a maioria de 4 a 1, a favor da impugnação.

    O PT agora terá que reajustar sua estratégia. Nada será decidido antes da reunião que Haddad e outros terão com Lula na segunda-feira. A transferência de votos talvez ocorra do mesmo modo. Talvez seja mais complicado agora executá-la. Já a sessão de ontem do TSE ficará na história como um rasgado exercício do casuísmo eleitoral.

    Mestre dos quadrinhos brasileiros, Quintanilha lança 'caixa de tesouros'

    por
    O GLOBO




    Em 1988, o jovem niteroiense Gaú foi pela primeira vez à sede da Bloch Editores, na Glória. Entrou com uma pasta de desenhos e saiu com uma missão: transformar o roteiro de “Mestre Kim e os dragões de Bali” em uma história em quadrinhos (sua primeira). Começava a carreira do ilustrador e quadrinista Marcelo Quintanilha, autor de obras premiadas como “Fealdade de Fabiano Gorila” (1999), “Sábado dos meus amores” (2009) e “Tungstênio” (2014) — que este ano virou filme de Heitor Dhalia — e “Talco de vidro” (2015).

    Vivendo em Barcelona desde 2002, Quintanilha se destaca pelos temas e personagens brasileiríssimos: suas cenas em subúrbios e botecos povoados por tipos de ocupação incerta e moral ambígua já fizeram com que Aldir Blanc o chamasse de “Rosselini tupiniquim”. Detalhe: ao longo desses 30 anos, o “cineasta” fez vários “curtas-metragens” muito comentados e pouco vistos — que agora são reunidos em um só volume. “Todos os santos”, da editora Veneta, apresenta ilustrações, tiras, colaborações para títulos estrangeiros e até trechos daquelas aventuras de artes marciais que ele fez adolescente — e das quais tem muito orgulho.





    — Assim como hoje, dei o máximo que eu podia naqueles desenhos. Mesmo que os enredos não fossem meus, colocava algo de mim naquelas histórias. Eu ainda sou aquele garoto de 16 anos fã de John Buscema — diz o quadrinista, citando o lendário desenhista dos super-heróis da Marvel.


    Filho de um ex-jogador de futebol e uma professora primária, o pequeno Gaú cresceu no Barreto, em Niterói, bairro de classe média baixa que ele já conheceu decadente. Ele conta que sua infância e adolescência foi entre fábricas fechando portas, campinhos de várzea sendo loteados, vilas operárias sendo descaracterizadas ou abandonadas e eventos locais esvaziando-se ano após ano.

    — Crescer nesse ambiente me incutiu desde cedo um sentimento de nostalgia. Era um mundo se desfazendo, mas que permanecia nas pessoas e coisas em minha volta, e eu sempre estive atento a essa memória — conta Quintanilha, que nas duas semanas que passou no Brasil reservou algumas tardes para flanar pelo Centro do Rio e de Niterói e garimpar sebos — “infelizmente, cada vez mais raros”, diz o quadrinista.


    “Não me afastei nem 10 centímetros”

    Essa conexão com o passado e o cotidiano aos poucos foi surgindo nos quadrinhos de Quintanilha, como em “Acomodados!! Acomodados!!”, história em que surgem as ruas cariocas do começo do século XX. Premiada em 1991 na Bienal Internacional de Histórias em Quadrinhos do Rio de Janeiro, ela é publicada em livro pela primeira vez em “Todos os santos”. Também estão presentes as tiras que fez para o jornal “O Estado de S. Paulo” em 2010 e narrativas curtas publicadas na imprensa francesa, italiana e britânica.

    Mesmo vivendo há 16 anos na Catalunha com sua esposa, Luciana, o niteroiense diz que sua conexão com o Brasil permanece intacta.



    No percurso de carro entre Copacabana, onde ontem foi feita a foto desta página, e o SESC Tijuca, onde o artista participaria de uma sessão especial de “Tungstênio”, Quintanilha foi comentando a paisagem que passava. Como um guia turístico particular, aponta a rua onde comeu “uma tapioca incrível”, um sobrado histórico em Botafogo, o local de um antigo restaurante na Praça da Bandeira e o casario desaparecido da Avenida Presidente Vargas — que ele recorda da abertura do filme “Toda nudez será castigada” (1972).

    — Vivo a milhares de quilômetros, mas não me afastei nem 10 centímetros das minhas referências. Carrego o Brasil dentro de mim.

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    TODOS OS SANTOS
    Autor: Marcello Quintanilha. Editora: Veneta. Páginas: 112. Preço: R$ 84,90.