A esta altura, é difícil não concluir que Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, é enrolado com milícias. O jornal O Globo descobriu que, quando o escândalo dos depósitos suspeitos veio à luz, Queiroz se escondeu na comunidade do Rio das Pedras, berço das milícias cariocas, onde sua família operaria um negócio de transporte alternativo (atividade tipicamente controlada por milicianos).
A jornalista Malu Gaspar, da revista piauí, apurou que Queiroz foi colega de batalhão de Adriano da Nóbrega, foragido da polícia e acusado de liderar a milícia Escritório do Crime, sob o comando de um coronel envolvido com a máfia dos caça-níqueis (outra atividade típica de milícia).
A polícia e o Ministério Público cariocas suspeitam que o Escritório do Crime matou Marielle Franco, a da placa que os bolsonaristas volta e meia rasgam às gargalhadas. Adriano da Nóbrega é foragido da polícia.
E, antes que os bolsonaristas digam que não acreditam em polícia, Ministério Público ou imprensa que não entreviste Bolsonaro de joelhos, lembrem-se do que disse Flávio Bolsonaro, o zero-um: Fabrício Queiroz, segundo o filho do presidente da República, lhe indicou a mãe e a mulher de Adriano da Nóbrega para cargos de assessoria em seu gabinete.
Repetindo: essa é a versão oficial, em que o único pecado da família presidencial foi amar demais o Queiroz.
A versão oficial confessa, portanto, o seguinte: o presidente da República emprestou R$ 40 mil para um enrolado com milícias cuja filha, Nathalia Queiroz, era funcionária fantasma de seu gabinete. Sim, fantasma: Nathalia trabalhava como personal trainer no Rio de Janeiro enquanto seu ponto era assinado no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro.
O empréstimo foi pago pelo enrolado com milícias por meio de um depósito na conta da primeira-dama.
Mesmo na versão oficial, é um PowerPoint do Dallagnol bem curto: três círculos, duas linhas, milícia-Queiroz-Bolsonaro.
Com base só na versão oficial, portanto, pode-se dizer, sem medo de errar: se o Coaf não tivesse feito seu trabalho, já teríamos milicianos fazendo churrasco no Palácio da Alvorada, brindando com os generais, escolhendo Moro para zagueiro do time na pelada.
Se essa é a versão oficial, imagine o que deve ser a versão verdadeira.
Temos algumas pistas.
A família Bolsonaro já defendeu as milícias publicamente repetidas vezes. E conhecia muito bem Adriano da Nóbrega muito antes da suposta indicação de Queiroz. Jair Bolsonaro defendeu o sujeito no plenário da Câmara já em 2005.
Flávio Bolsonaro foi mais longe: já homenageou o suposto líder do Escritório do Crime na Assembleia Legislativa duas vezes, nas duas ocasiões elogiando-o com entusiasmo. Concedeu-lhe a Medalha Tiradentes, maior honraria oferecida pelo legislativo estadual fluminense. Na ocasião, Nóbrega estava preso por assassinato. Recebeu a medalha na cadeia.
Vamos ver se novas pistas aparecem. Mas o quadro já é bem feio
.
É como disse na última coluna antes das eleições: Bolsonaro é o herdeiro ideológico da facção das Forças Armadas ligada aos torturadores, que não aceitou a abertura democrática e partiu para o crime: esquadrão da morte, garimpo, jogo do bicho. É a mesma linhagem que nos deu as milícias.
Essa herança agora ronda o Planalto.
O vereador Carlos Bolsonaro, chamado
gentilmente pelo pai de pitbull, declarou que se a empresária Elaine
Caparroz tivesse uma arma em casa a história da agressão homicida de
Vinicius Serra teria sido diferente. Só na cabeça dele que a vida deve
ser este faroeste intimo em que pessoas, durante um suposto ato de amor
estejam armadas. Nem em "Game of Thrones" isso acontece.
Quem marca
um encontro depois de uma longa troca de mensagens ( troca de mensagens
é uma coisa que o vereador não gosta muito) está esperando gestos
carinhosos e amorosos, não um constante estado de alerta. Armas não são
objetos eróticos. Armas matam, ou seja, o oposto do objetivo do
encontro. Julgar também Elaine por ter ido para a cama com o Vinícius no
primeiro encontro beira o machismo mais retrógrado e preconceituoso.
Passa a ser mais importante esse fato do que a agressão durante 4 horas
sobre a vítima. O fato de uma pessoa querer transar com outra não abre a
prerrogativa do crime que virá a seguir. O crime acontece por outros
motivos. Nesse caso, motivos torpes alimentados pelo machismo, pela
impunidade e pela violência institucionalizada. O Vinicius me parece ser
uma pessoa perturbada e agressiva, educada com esses valores
distorcidos. O que ele tem contra as mulheres explica o que ele deve ter
contra tudo o que é civilizado e saudável.
Lidar com o feminicídio
dizendo que uma arma resolveria e tratar o agressor como covarde é
tirar da frente o problema. Não é só uma questão de covardia, é um gesto
de opressão contra as mulheres e de arrogância violenta masculina..
Agredi-la dormindo é uma traição às expectativas dela e jamais uma
distração. Se ela tivesse uma arma em casa poderia ser ainda mais grave.
Quem agride assim alguém não tem pudores em matar. Elaine poderia estar
morta e aí sim a história ser outra.
Vivemos um momento no país
totalmente hostil que pode até não resultar em nenhuma mudança concreta
na legislação mas vai dar um trabalho enorme e dispendioso no combate à
essas distorções. Parece que abrimos a porta de um lugar onde as
palavras são rudes, os termos agressivos, a compreensão da vida
limitada. Governantes se tratam de mentirosos, e podem até ser, mas
lavam a roupa suja na rua sem o menor pudor. E sem o menor pudor
continuamos a viver assistindo a esse espetáculo dantesco para o qual
não fui convidado.
Não sabemos nem contra o quê lutar. Não há
programa, não há projetos, não há ideologia precisa. O que há é um
desgoverno que vai tateando feito cego em tiroteio até o próximo degrau.
Como temos um Congresso imprevisível, tudo pode acontecer até casos
como esse de violência serem esquecidos nos corredores escuros do novo
poder. Quem é machista nas declarações, é machista em tudo. Tratar o
agressor de Elaine como covarde é um julgamento primário que não leva em
conta a opressão dos homens sobre as mulheres há séculos. Enquanto tudo
for tratado como covardia ou falta de armas para reagir nada mudará. A
própria criminalização da homofobia se não for acompanhada de mudanças
profundas na educação ( e isso está longe de acontecer) vai ser mais uma
lei a ser driblada diante do número de assassinatos que acontecem todos
os dias.
O Brasil não precisa de armas e sim de educação. Parece chavão mas é verdade. Só assim não vamos dar tiros n'água.
Já escrevi uns três textos, e descartei. No momento em
que escrevo este, já meio que desistindo de tentar, estou olhando pra
minha conta bancária. Não é animador, e, dessa vez, parece me bater um
tipo de desespero que só tive quando me cortaram a luz, no tempo em que
morei no bairro da Piedade, no subúrbio do Rio.
Já tinham cortado minha luz outras vezes, antes. A
diferença é que, na Vila Aliança, favela vizinha a Vila Kennedy, onde
morei alguns anos e tive luz cortada algumas vezes, era só chamar um
eletricista que tinha a manha do gato, e ele religava pra mim. Ou puxava
um fio do poste mesmo.
Em Piedade, bairro onde fui morar logo depois que saí
da Vila Aliança, já não tinha mais essa possibilidade. Os caras da Light
vinham com o caminhão, cortavam, lacravam, iam embora sem nem dar boa
noite isso na sexta-feira, ou seja, ia passar o final de semana sem
ventilador, geladeira, "RJ TV". O sistema tem uma peculiar crueldade. O
sistema é mau.
Escrever esse texto, anos depois, é como voltar para o
mesmo ponto, o momento em que a Light cortava a minha luz. Só que agora
eu estou num bairro chamado Ramada, uma região fora do distrito de
Lisboa. Eu brinco dizendo que Ramada é a Nova Iguaçu daqui.
Tudo fica longe. Todo mundo aqui é quieto, fala pouco.
Eu não conheço os vizinhos, ninguém senta na calçada. Num frio de 10
graus, não tem criança na rua empinando pipa. Tem nem sol direito. Aqui,
duas da tarde se parece com 9 da manhã de um inverno em São Paulo.
Aquele sol que sai, mas devagar. Diferente do sol que nasce em
Cascadura, que já chega cantando Alcione. Meus dias, há dois meses e
meio, tem sido explicar como vim parar aqui.
Apesar de escrever nas redes sociais e alcançar
milhões de pessoas por mês, tem gente que não faz ideia que eu, escritor
e educador popular, vindo da periferia e dos subúrbios do Rio, tô
fazendo em Ramada, a Nova Iguaçu lusitana, olhando o saldo no banco dar o
último suspiro, sem família, sem redes de amigos, sem abraço, logo eu,
que estava no Brasil há pouco tempo, trabalhando com gente que considero
muito importante. Gente que me abriu oportunidades. Lázaro Ramos, com
quem trabalhei, inclusive em reuniões em sua casa, escrevendo roteiros.
Marina Silva, que tive o prazer de acompanhar e trabalhar como consultor
político para assuntos relacionados a periferia na última campanha
presidencial. Minha esposa tinha conseguido abrir uma cozinha. Era chef,
tinha planos de futuro. Eu chegava em casa, no bairro do Cachambi,
cumprimentando dona Cida, que nos alugou o imóvel onde moramos por
felizes cinco anos. Lá, dei aula pros meus alunos da Universidade da
Correria. Lá, dei entrevista pra imprensa de muitos países, falando do
Rio, da violência, de empreendedorismo, de crônicas que eu escrevia.
Minhas cachorrinhas, Madureira e Tijuca, ainda estão no Rio. Deixamos
tudo, viemos com cinco malas.
Eu sou um expatriado. Me tornei exilado, em 6 de
dezembro de 2018. Após dois meses de planejamento e conversas com
pessoas, que incluíram a Embaixada de Portugal e o Consulado em São
Paulo, com a ajuda da própria Marina, organizei minha saída, em sigilo,
do país, para Lisboa.
Durante dois meses, troquei números, telefones, usei
softwares de rastreamento, deixei de sair de casa em vários horários e
dias, vendi coisas que comprei com muito sacrifício, fiz os últimos
exames médicos, pois me trato do diabetes tipo 2 desde janeiro de 2018,
respirei fundo, me desfiz de tudo, me despedi de Cavalcante, bairro da
minha infância, morei 15 dias em São Paulo no mais absoluto sigilo e sem
localização definida, peguei o primeiro avião, desci em Paris, com
medo, fui recebido em Lisboa, por uma família de portugueses militantes,
e aqui fiquei.
Só tornei pública a minha saída depois que vim pra
Portugal, e entendi que o ambiente já estava seguro. Assisti à posse de
Bolsonaro da TV de um bar, em Lisboa. Muitos portugueses não entendiam
como ele se tornara presidente. Nem eu. Nem você.
Quando Jean Wyllys anunciou a saída, eu estava numa
reunião. A notícia chegou pelo celular. Meu telefone não parou de tocar
por quase duas horas. A sensação tem sido dupla: de terror, a cada dia,
diante da espiral de tragédias que não tem fim, e de desterro. Aqui, eu
não tenho um RG. Um cartão-cidadão, como chamam. Portugal não vai
conceder asilo político a brasileiros. O presidente, Marcelo Costa,
chamou Bolsonaro de "irmão". Aqui, a direita cresce, e tem Bolsonaro
como referência. É Hitler no céu, Bolsonaro na terra. De vez em quando
eu supero o medo de ir na rua trabalhar nas aulas que comecei a dar
aqui, e vejo uns cartazes gigantes onde está escrito "Europa para os
europeus". O sangue gela.
Quero voltar, mas não tenho mais para onde voltar.
Preciso aceitar essa realidade, e você talvez não saiba mas, no ano de
2012, eu já escrevia nas redes sociais, e usei minha voz, ainda pequena e
pouco conhecida, para denunciar o major Edson, preso e condenado por
torturar e matar Amarildo. Eu visitei a esposa de Amarildo, na Rocinha,
com o pastor Antonio Carlos, da ONG Rio de Paz, num domingo a tarde.
Desde então, recebi ameaças de policiais e milicianos que, em 2015,
invadiram minha casa no Cachambi. Fiz o primeiro B.O.. A jornalista
Roberta Trindade teve uma grande participação nisso. Ela publicou, nas
suas redes, que "quem defende bandido, é bandido também", se referindo a
mim. Como boa parte de seus leitores pertencem a essa instituição
imaculada chamada Polícia Militar do Rio de Janeiro, as ameaças foram
diretas. Mas o caos estava instalado no país, não era um privilégio meu,
queridos.
Em 2017, me tornei alvo da quadrilha que há anos
ameaçava diariamente a ativista, escritora e feminista Lola Aronovich.
Ao defender uma estudante vítima de racismo na UniCarioca, o grupo,
liderado por Marcelo Mello, preso em maio de 2018, me ameaçou por meses,
chegando a oferecer 45 mil reais pela minha morte na FLIP de 2017. A TV
Globo comprou a briga e realizou o debate onde eu deveria estar, mas
por videoconferência. Numa sala, no Leblon, Rafael Dragaud e Carlos
Alberto Ferreira, ambos da emissora, e meus amigos, acompanharam o
debate e a minha fala, que contou com a presença de Edney Silvestre, em
Paraty. Edney, jornalista que aprendi a amar, fez comigo uma das mais
incríveis entrevistas que dei na vida, uma tarde de afeto e aprendizado
na Praia do Leblon, bairro que tanto critiquei no meu livro, "Rio em
Shamas", indicado a um Jabuti em 2017.
As ameaças ganharam contornos mais graves, e registrei
na Delegacia de Crimes Virtuais do Rio, na Cidade da Polícia. Os
criminosos invadiram meu e-mail, descobriram meus contatos, ameaçaram a
todos, inclusive outros jornalistas. Até a delegada que cuidava do caso
foi ameaçada e exposta por eles. Enquanto isso, o Brasil seguia em queda
livre para o resultado mais assustador das urnas, depois da volta da
democracia.
No dia 28 de outubro, com a vitória dos milicianos na
Zona Norte do Rio, porque é isso que Bolsonaro e Witzel representam, eu
decidi com a minha esposa que nosso tempo no Brasil tinha acabado.
Perdemos a favela. Perdemos o povo. A favela votou em Bolsonaro. A
esquerda abandonou a favela. Tudo está perdido. Por todos os lados.
Faz meses. Parece que foi ontem. Escrevo esse texto,
minha última tentativa de me fazer entender, dessa vez aos leitores do
JORNAL DO BRASIL. Ao ouvir muitos depoimentos de amigos e colegas de
trabalho de Ricardo Boechat, o JB surge, citado como um dos grandes
lugares onde ele brilhou no mundo. Na minha agenda pessoal, todo dia
tinha um lembrete, pra ouvir Boechat pela manhã. Na segunda-feira, tomei
café sozinho. Reproduzi, na minha página, a voz de Boechat me dando bom
dia. Mas dessa vez era eu, falando pra mim mesmo, percebendo agora
quanto espaço ele ocupava dentro da minha alma. Era o último resquício
de normalidade que eu ainda tinha. Todas as manhãs, desde 2010, eu ouvia
Boechat.
Falei com o Miguel Paiva. Perguntei se aceitavam
publicar um relato no jornal, para o qual já havia sido chamado para
escrever e colaborar. Veja bem: como escritor, vindo da periferia, ser
chamado para escrever no JB é um Jabuti por dia. Nada contra o Jornal
dos Securitários da Grande Araçatuba. Mas o JB é o JB. Boechat passou
aqui. Explicar isso é uma forma de dizer a ele: "Estou tocando o barco,
Boechat". Já conto como um dos três exilados em razão de ameaças e por
medo de viver no governo de Bolsonaro. Saiu, antes de mim, a professora
Débora Diniz depois de mim, o deputado federal Jean Wyllys. Outros
virão. Organizei um grupo para receber brasileiros. Já nos preparamos
para trazer um.
Deixo aqui um abraço a todos vocês que estão chocados,
diariamente, com o momento que vivemos. Das mortes e a suspeita de
mutilação e execução pelo Bope de 13 pessoas no Fallet, a festa da
diretora da Vogue: o Brasil perdeu o controle. Mas, como brasileiro,
agora fora da minha terra, não podendo voltar e inseguro quanto ao que
na prática vou fazer aqui,digo: precisamos superar as dores, vencer o
ódio, nos abraçar nas ruas, usar o Carnaval para resistir, cantar nosso
destino, nosso destino como povo, nosso destino traçado, no samba, no
sol da Presidente Vargas, nos blocos, nos trios, no frevo, nós somos
maiores que isso tudo que está aí, não somos uma geração perversa e
corrompida, não fizemos nada para merecer isso, fomos sequestrados pelos
que só enxergam ódio e sandices, nosso destino, meu irmão, é ser o povo
brasileiro. E não há nada mais maravilhoso do que ser brasileiro. Seja
na praia, seja distante, no frio, num bairro no meio do nada, em Lisboa,
sozinho.
Desejo que todos nós possamos retomar nossa utopia de
volta. Nós somos mais que isso. Tenho saudade de vocês todos. Do meu
chão. Viva Boechat. Viva aos que continuam com esperança. Viva o povo
brasileiro.
* Anderson França, exilado, desde 6 de dezembro de 2018.
Não há justiça hoje para quem está submetido às condições encontradas nos presídios brasileiros, segundo o que definiu o STF
João Bernardo Kappen
É preocupante, embora sintomático, que o Ministério da Justiça não tenha
qualquer projeto de implementação de medidas que tenham por objetivo
diminuir as injustiças no país. Nos presídios, por exemplo, onde
diariamente milhares de presos têm seus direitos básicos violados, a
começar pela superlotação. O Supremo Tribunal Federal recentemente
declarou que há nos presídios brasileiros um estado de coisas
inconstitucional, no sentido de que a situação que lá se encontra viola
direitos e garantias individuais estabelecidos pela Constituição. Não há
justiça hoje para quem está submetido às condições encontradas nos
presídios brasileiros, segundo o que definiu o STF.
E qual é a proposta do Ministério da Justiça para acabar com a falta de
justiça dentro dos presídios, nos termos do que definiu o Supremo
Tribunal? Ao que tudo indica, prender mais gente e mantê-las mais tempo
presas. Nesse estado de coisas inconstitucional.
Na contramão do mundo, aliás. Dos quatro países com as maiores
populações carcerárias, o Brasil é o único que vem aumentando seu número
de presos e o que proporcionalmente mais prendeu gente nos últimos 20
anos. Apesar do discurso recorrente de impunidade, nenhum país do mundo
prendeu tanto como o Brasil vem prendendo ultimamente. O Congresso dos
Estados Unidos, o país com a maior população carcerária do mundo,
aprovou recentemente com o apoio de Donald Trump e dos partidos
Republicano e Democrata uma lei para desencarcerar os presos federais.
Vão soltar os presos que legalmente não precisam estar presos e passar a
prender menos. China e Rússia caminham no mesmo sentido.
Por aqui, o que estamos vendo ser implementado no Ministério da Justiça é
o sintoma que revela a ideia que se tem do que seja justiça e do papel
de cada um no sistema criminal. Nesse sentido, em estados democráticos
de direito as atribuições de cada um dos atores da Justiça são bem
definidas. No Brasil da Constituição de 1988, a polícia investiga, o
Ministério Público fiscaliza a investigação, formula acusações, e os
juízes julgam os casos que lhe são apresentados, garantindo aos acusados
que o Estado não vai violar seus direitos fundamentais. Esse é o
desenho constitucional atual do nosso sistema de Justiça criminal. E há
uma razão para isso. Historicamente, o Ministério Público surge
justamente para tirar das mãos dos juízes uma função que antes eles
exerciam, a de promoção de investigações e acusações — o que lhes
tornava absolutamente parciais diante da necessidade de julgar os
indivíduos que haviam investigado e acusado. Assim, hoje, já não é papel
do juiz combater o crime.
Há, no entanto, ainda, quem advogue abertamente no Brasil a ideia de que
os juízes são sim combatentes do crime. Talvez isso explique o discurso
monotemático do novo ministro da Justiça de combate ao crime. Como se
justiça fosse sinônimo de prisão.
A ideia de justiça passa pelo entendimento de que políticas de prevenção
do crime e de desencarceramento têm muito mais efeito sobre a
criminalidade e a redução da violência urbana do que políticas de
repressão e de encarceramento em massa. Até Trump e o Partido
Republicano entenderam isso.
Com efeito, um dos significados de ministério, segundo o dicionário, é
trabalho. Ou seja, quem vai trabalhar pela justiça precisa entender que
onde direitos e garantias são violados não há justiça, que promover
justiça não se resume a combater o crime, que cada um dos atores do
sistema de Justiça criminal no Brasil tem um papel histórica e
constitucionalmente bem definido, e que o mundo já entendeu que o
encarceramento em massa não vai resolver os problemas da criminalidade.
No triste fim de semana passado, lembrei-me de um texto de George
Santayana, filósofo e poeta espanhol. Uma das frases é instigante:
“...quando a experiência não é retida, como acontece entre os selvagens,
a infância é perpétua.”
De fato, três anos após a tragédia de Mariana, apesar das inúmeras
advertências da academia, dos ambientalistas e do Ministério Público, o
que aprendemos?
Foram 19 mortos e nenhuma condenação; empresas envolvidas em
desastres ambientais quitaram apenas 3,4% dos R$ 785 milhões aplicados
em multas; das 24.092 barragens cadastradas no país apenas 3% foram
vistoriadas em 2017 e, dentre essas, 723 apresentam riscos de acidentes e
danos potenciais altos; famílias que tiveram suas vidas destruídas pelo
rompimento da barragem do Fundão (2015) ainda aguardam indenizações,
pois o acordo entre a promotoria e as mineradoras foi fechado apenas em
outubro do ano passado, quase três anos após a tragédia.
Na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, somente um dos
três projetos de lei apresentados pela Comissão Extraordinária de
Barragens foi aprovado. Dormem em gavetas os outros dois, que preveem
restrições para a construção de barragens e direitos para os atingidos.
No Senado, projeto que endurecia a política a de segurança de barragens
foi arquivado.
Muitas perguntas objetivas continuam sem respostas consistentes: O
que foi feito para recuperar o Rio Doce? Quais as medidas adotadas para
aprimorar a fiscalização das barragens?
Nesse marasmo irresponsável, lamentavelmente a história se repetiu em
Brumadinho. A impunidade em relação ao que ocorreu na barragem do
Fundão, em Mariana, é certamente uma das causas da tragédia de
Brumadinho. O rompimento da barragem da Vale na Mina do Feijão, não foi
obviamente um acidente ocasional. Em Mariana e Brumadinho o que ocorreu
foram crimes, praticados pelas empresas que negligenciam na construção,
manutenção e monitoramento desses empreendimentos e pela leniência do
Estado na concessão de licenciamentos e na fiscalização. Dessa forma,
além da indignação e da vergonha que sentimos como brasileiros,
precisamos cobrar as punições dos agentes privados e públicos.
O enredo e o filme são conhecidos. As autoridades sobrevoam a área
devastada, declararam estado de calamidade e prometem providências e
recursos. Os dados orçamentários, porém, também espelham o descaso do
poder público.
Conforme dados pesquisados pela Associação Contas Abertas, com base
em critérios de um estudo de técnicos do Senado, nos últimos 19 anos
(2000 a 2018) dos R$ 444,4 milhões autorizados no orçamento da União
para ações destinadas às barragens, efetivadas pelos ministérios da
Integração, Minas e Energia e Meio Ambiente, somente R$ 167,3 milhões
(37,6%) foram realmente pagos. Logo após o maior acidente ambiental do
país, em Mariana, em 2015, no auge da consternação, o orçamento conjunto
das Pastas destinado às barragens praticamente dobrou, passando de R$
62,3 milhões para R$ 121,9 milhões (2016). No entanto, no fim de 2016 o
valor efetivamente gasto somou apenas R$ 22,7 milhões, praticamente o
mesmo de 2015. Em 2017, o gasto efetivo ficou no mesmo patamar, tendo
aumentado para a casa dos R$ 32,8 milhões em 2018. Para 2019, pasmem, o
valor autorizado é de apenas R$ 67,9 milhões praticamente o mesmo de
2015, o ano da tragédia de Mariana!
Para que o leitor tenha uma ideia de quanto são insignificantes esses
dispêndios, o valor pago no ano passado (R$ 32,8 milhões) é inferior às
despesas da União com festividades e homenagens (R$ 40,4 milhões).
O minguado orçamento para ações relacionadas às barragens é mais uma
evidência de que não absorvemos as experiências passadas. Assim, vale a
pena reler as frases finais de um parágrafo do texto do espanhol George
Santayana, publicado em “A Vida da Razão” (1905): “...quando a
experiência não é retida, como acontece entre os selvagens, a infância é
perpétua. Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a
repeti-lo”. Quando irá acontecer a próxima tragédia?
Ciro Gomes vai à guerra. Terceiro colocado na corrida presidencial,
ele pretende liderar a oposição ao governo Bolsonaro. Não está disposto a
dividir espaço com o PT, que agora descreve como adversário direto.
Na quinta-feira, o pedetista reapareceu em Salvador, onde bateu boca
com militantes que defendiam o ex-presidente Lula. Foi um aviso. Daqui
para a frente, ele quer distância dos ex-aliados, mesmo que isso
signifique manter a esquerda fragmentada.
“Para a cúpula do PT, o inimigo não é o Bolsonaro. Sou eu”,
justifica. “A disputa agora não é de projeto, é de hegemonia. Eles
envelheceram. A tática do PT é me empurrar para a direita, como fizeram
com o Brizola e com o Arraes. Só que eu não vou”, desafia.
Ciro se considera rompido com o ex-presidente, que foi condenado pela
segunda vez nesta semana. “O Lula continua conspirando de dentro da
cadeia, na politicagem mais rasteira. Nós temos que tratá-lo como ele é:
como um adversário”, afirma.
Ele diz que “não comemora” a situação do petista, mas se recusa a
endossar sua defesa incondicional. “Lula não é um preso político. É um
político preso. Preso político é o Mujica, que nunca foi acusado de
corrupção”, provoca. “Vamos olhar a realidade ou ficar navegando na
maionese?”.
Para o ex-ministro, o PT se deixou aprisionar com seu líder em
Curitiba. “A tese do ‘Lula Livre’ foi derrotada. Se continuarem
insistindo nisso, vão ser derrotados de novo”, avisa.
Ciro diz que a estratégia dos petistas está errada. “Conhecendo o
Judiciário, acho uma aberração pensar que vão ajudar o Lula com campanha
de rua. Isso funciona pelo oposto”.
Ele não se arrepende de ter virado as costas para Fernando Haddad no
segundo turno. O petista ficou esperando seu apoio, mas o ex-ministro
escolheu viajar de férias para a Europa.
“O que é que eu devo para eles? O Haddad teve 71% dos votos no Ceará.
Em São Paulo, o estado dele, teve 32%”, afirma. “Não sou obrigado a
votar nessa gente de novo. Nunca mais”.
Ciro promete uma oposição “propositiva” a Bolsonaro. No próximo dia
20, vai apresentar um projeto alternativo de reforma da Previdência. Ele
quer centrar fogo na agenda econômica e no que vê como um desmonte das
políticas sociais. Prefere ignorar as pautas de comportamento, que têm
dominado o debate nas redes.
“Não vou ficar comentando declaração de maluquete sobre cor de roupa
de menino”, diz, referindo-se à ministra Damares Alves e sua polêmica do
rosa e do azul. “Isso é irrelevante. A agenda identitária não pode
substituir a luta da esquerda”, afirma.
Na disputa pelo comando da Câmara e do Senado, Ciro travou o primeiro
embate do ano com o PT. Ele apoiou Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre,
enquanto os petistas ficaram com Marcelo Freixo e Renan Calheiros. Os
candidatos do DEM venceram, e agora prometem facilitar a vida de
Bolsonaro.
“Aquilo não era um terceiro turno da eleição”, diz Ciro, rejeitando a
crítica por ter se juntado aos governistas. “Nós sofremos uma derrota
fragorosa no ano passado. O lutador tem que entender sua posição no
tablado, e o PT ainda não entendeu”, rebate.
UM grande painel da sociedade brasileira no século XX através da ótica social, política e de costumes de três dos mais geniais artistas do traço é a proposta da 3º Bienal da Caricatura, em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal (Rio). O evento engloba cinco mostras, sendo duas dedicadas a Lan , o italiano mais carioca de que se tem notícia. Além dele, são homenageados Alvarus e Luiz Sá.
"Lan é uma lenda da caricatura, o decano dos caricaturistas brasileiros. A obra dele é um patrimônio artístico de nosso país", justifica o curador Luciano Magno. Os originais do artista, em sua fase como colaborador do Jornal do Brasil, são destaques nas mostras "Lan - Traço Carioca" e "Lan no traço dos caricaturistas", em que o desenhista é retratado por colegas - está última está sediada no Centro Cultural Solar de Botafogo, onde também estão expostas caricaturas de astros do cinema.
Na sua primeira estadia no Brasil, ainda criança, Lan entrou em contato
com a miscigenação de raças. A diversidade que viu durante os dois anos
em que viveu no país resultou em um grande fascínio, acessado nas
memórias da infância quando, em 1952, em visita ao Rio de Janeiro,
deslumbrou-se com a geografia carioca, com a alegria do povo, mas
principalmente com as mulheres. Não raro, os desenhos têm as formas do
corpo feminino misturadas às dos morros da cidade. Grande parte da obra
de Lan é destinada a elas, a mais conhecida temática do caricaturista.
"Alvarus e seus bonecos" é o módulo da bienal que
apresenta originais e vasta memorabilia sobre a história da Álvaro
Cotrim, caricaturista que é apontado como o pai da escola brasileira no
estilo. Estão em sua obra, além da típica carioquice, a leveza e
economia de traços. "Uma tendência a sintetizar o caricaturado, em busca
do que o próprio Alvarus chamava da busca da máscara psicológica",
destaca Luciano Magno, que divide a curadoria da exposição com Guilherme
Rodrigues, referindo-se ao artista que marcou época nas páginas de
publicações como O Malho, Fon-Fon e Careta.
O caricaturista, que viveu entre 1904 e 1985, era dono
de uma famosa biblioteca ligada ao tema caricatura. Mestre na técnica
das caricaturas pessoais, foi um estudioso obstinado do gênero. Sua
biografia sobre J. Carlos é uma obra de referência. dos melhores
exemplares do gênero. "Pode se dizer, pela sua importância, que o
artista foi a própria história da caricatura brasileira", defende o
curador da bienal.
Alvarus colaborou para as publicações Granada,
Para-Todos, A Noite, Carioca e Vamos Ler, entre outras. Trabalhou nos
jornais A Manhã, Crítica, A Noite, onde atuou de 1929 até sua extinção,
em 1954. Em 1960 decide abandonar a produção de caricaturas para se
dedicar exclusivamente aos estudos e artigos - publicados no JB e nas
revistas adultas Fair Play e Ele & Ela.
O outro caricaturista celebrado no evento é o cearense
Luiz Sá (1907 - 1979), criador dos personagens Reco-Reco, Bolão e
Azeitona que, durante anos, foram publicados na revista infantil O
Tico-Tico. Mudou-se para o Rio em 1928, quando expôs bicos-de-pena
aquarelados que retratavam costumes de sua terra.
Ligado ao cinema, produziu desenhos humorísticos para
jornais cinematográficos. Foi o criador do Bonequinho, personagem usado
até hoje na seção de crítica de cinema do jornal O Globo. Seu desenho é
caracterizado pelo uso quase exclusivo de linhas curvas, tendo quase
todos os seus personagens os rostos arredondados.
Sergio Moro lapidou o discurso desconexo de defesa de lei e da ordem que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República. Para listar apenas alguns aspectos do pacote do ministro, homicida ficará trancado por, pelo menos, três quintos da duração da sentença; condenados na segunda instância irão para a tranca e caixa dois passará a ser crime.
A repressão aos crimes de colarinho-branco será tão dura quanto aquela que habitualmente atinge pessoas de pele negra. Essas propostas serão festejadas nos balcões das lanchonetes, por onde passam pessoas que têm medo de andar na rua à noite.
Moro quer trazer para o direito brasileiro a instituição saxônica das "soluções negociadas". Na essência, elas permitem um acordo entre réu e a Promotoria. O cidadão reconhece sua culpa, negocia a redução da pena com o promotor e com isso descongestiona-se o Judiciário.
Na teoria, faz sentido. Na prática, toda importação de regras do direito saxônico equivale a tentar calçar um par de stilettos de Christian Louboutin nos pés de um jogador de futebol.
O calo resultante da divulgação por Moro, no meio da campanha eleitoral, de um anexo irrelevante e inconclusivo da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci está na memória política do país.
Felizmente, Moro fala agora em "soluções negociadas". Até há pouco falava em "plea bargain", talvez para evitar uma das traduções possíveis e evitando a palavra "barganha".
No Judiciário americano todas as delações protegidas pela teoria curitibana da "bosta seca" teriam sido mandadas ao lixo. Lá, se um delator diz uma coisa e outro diz o contrário, mexe-se na bosta seca, empesteia-se a sala e anula-se uma delas, ou as duas.
A solução negociada entre o réu e o Ministério Público pode ser um sonho de consumo. Contudo, no Brasil, leis suecas convivem com uma realidade haitiana. No que vai dar, não se pode saber. Afinal de contas, o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, da PM do Rio, jamais faria um acordo com a Promotoria.
O "Caveira", senhor da milícia de Rio das Pedras, era amigo de Fabrício Queiroz. Sua mãe e sua mulher foram empregadas por ele no gabinete de Flávio Bolsonaro porque, nas palavras do colega, "a família passava por grande dificuldade, pois à época ele estava injustamente preso." Libertado, "Caveira" foi absolvido. Não se sabe por quê, está foragido. Na outra ponta, qualquer preso que está apanhando numa delegacia faz qualquer acordo.
Num ponto o projeto de Moro parece um jabuti. Quando ele diz que um juiz poderá deixar de impor uma pena ao agente público se "o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".
Falta definir "medo" e "violenta emoção". Os policiais cariocas que mataram um cidadão que empunhava uma furadeira e outro que carregava um guarda-chuva tiveram medo, foram surpreendidos ou estavam emocionados?
A proposta de Moro acertou no atacado. Contém apenas lombadas no varejo, mas o Congresso terá tempo para aperfeiçoar o projeto e pode-se acreditar que senadores e deputados não tentarão proteger o instituto do caixa dois.
O surgimento de uma bancada com toques de demagogia haitiana será um contraponto à demagogia sueca. Nesse sentido Moro desviou-se das duas.
O ministro passou a vida no gabinete de juiz, onde sua caneta mudava a realidade. Na nova cadeira, fez tudo direito com a caneta, mas a realidade continuará a assombrá-lo. As milícias do Rio e as quadrilhas do Ceará expuseram-se logo que ele chegou a Brasília, e continuam lá.
José Miguel Wisnik revisita críticas de Carlos Drummond de Andrade à Vale
Autor de livro sobre as relações do poeta com a atividade mineradora, ensaísta comenta catástrofe em Brumadinho
Marcos Augusto Gonçalves
No ano passado, o crítico e ensaísta José Miguel Wisnik lançou um livro revelador acerca das relações entre a poética de Carlos Drummond de Andrade e a atividade mineradora em Itabira (MG), cidade natal do escritor.
Nas páginas de “Maquinação do Mundo” (Companhia das Letras, R$ 64,90,
328 págs.), Wisnik deu um passo ambicioso na interpretação da obra
drummondiana, lançando novas leituras sobre alguns de seus pontos
fundamentais, como o célebre poema “A Máquina do Mundo”.
A empreitada veio na sequência de uma visita a Itabira, o que
provocou no crítico uma espécie de epifania a respeito das relações
profundas da exploração mineral e a poesia do autor mineiro. Drummond
manteve com a então estatal Vale do Rio Doce relações conflituosas.
Escreveu artigos e levantou polêmicas em torno do papel deletério da
atividade e das responsabilidades da mineradora.
Com a recente catástrofe de Brumadinho, três anos depois do crime ambiental de Mariana, o tema ressurge mais atual do que nunca.
Na entrevista que se segue, feita por email, Wisnik rememora o percurso do capital minerador em Minas, revisita as críticas de Drummond
à Vale e comenta as barragens que também ameaçam Itabira, em especial a
do Pontal, em área da fazenda da família do poeta. Ali, a casa-sede
histórica foi transferida para o alto de um morro onde está preservada e
reconstituída peça por peça, fazendo parte “de um estranho belvedere
turístico-literário voltado para a ruína”.
Você lançou um livro recentemente que revela a profunda ligação
da poesia de Drummond com o tema da mineração, que o assombra e fustiga
desde sempre. Nesse percurso, a Vale é uma presença constante. Você
poderia traçar um breve histórico da chegada do capital minerador a Itabira? Todas
as janelas do casarão onde Drummond viveu a infância davam para o pico
do Cauê, colosso de ferro que dominava a paisagem de Itabira (“cada um
de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”, diz o primeiro verso de seu
primeiro poema sobre a cidade). A Companhia Vale do Rio Doce, por sua
vez, foi criada exatamente para extrair e exportar o ferro do pico do
Cauê, em 1942. Em poucas décadas a montanha tornou-se uma cratera e a
companhia, uma das maiores empresas de mineração do mundo.
Carlos Drummond de Andrade acompanhou esse processo ao longo da vida,
mesmo que à distância, e lutou contra a tremenda desigualdade das
forças envolvidas e a dos ganhos e das perdas entre as partes.
Drummond e a Vale tinham em comum as suas respectivas relações
umbilicais com a cidade, embora de perspectivas opostas: o poeta, com os
seus “oitenta por cento de ferro” na alma, nasceu em Itabira e tinha em
Itabira o tesouro de sua memória poética; a Vale nasceu e cresceu da
exploração das reservas ferríferas de Itabira, convertendo suas
montanhas pulverizadas em “bilhões de lascas” e submetendo a cidade a um
crescimento desordenado cuja extraordinária feiura é o resultado
correspondente aos danos ambientais que impôs a ela.
Em seus artigos polêmicos escritos nos anos 1950, Drummond cobrava
que a companhia cumprisse seu estatuto de fundação e transferisse sua
sede para Itabira do Mato Dentro (lembrando aqui o nome original da
cidade), em vez de administrá-la à distância, do Rio de Janeiro.
Em outras palavras, é como se desafiasse a Vale a tornar-se itabirana
de dentro, itabirana por dentro, isto é, a comprometer sua própria
existência com a existência do lugar que explorava, a assumir o ponto de
vista da cidade, a merecer “seu pedaço no pico do Cauê”, que ao final
eram todos os pedaços.
Olhado de hoje, não deixa de ser espantoso o acaso que fez com que o
mais poderoso e abrangente poeta brasileiro tenha crescido “de frente
pro crime”, como diz a canção de João Bosco e Aldir Blanc, isto é, com
as janelas abertas para o cenário inaugural da tragédia mineral
brasileira.
Quando o menino Carlos tinha sete ou oito anos de idade, em 1910, o
Cauê, juntamente com outras jazidas itabiranas, foi comprado a preço
irrisório por empresários ingleses que, associados a norte-americanos,
constituíram a Itabira Iron Ore Company, voltada para a extração e
exportação do minério bruto.
A ação da companhia ficou travada, no entanto, dos anos 1910 ao
começo dos anos 1940, por um longo e acirrado “braço de ferro” de âmbito
nacional entre correntes liberais e nacionalistas, que debatiam o
destino do ferro de Itabira: representantes dos interesses do mercado,
favoráveis à livre exportação investida no projeto da Itabira Iron Ore,
por um lado, e defensores do vínculo obrigatório da exploração do
minério brasileiro com a implantação de uma siderurgia local e o
compromisso com um projeto nacional. Drummond alinhou-se a essa segunda
posição, contrária às pretensões da Itabira Iron e de seus adeptos.
O nó foi desatado com a criação da Companhia Vale do Rio Doce,
durante a Segunda Guerra Mundial, depois de manobra diplomática do
governo varguista. Obedecendo aos Acordos de Washington, celebrados
entre Inglaterra, Estados Unidos e Brasil, os ingleses se encarregaram
de ressarcir a companhia anglo-saxã, os norte-americanos entraram com um
polpudo empréstimo ao Brasil, que permitiu a criação da Vale em
substituição à Itabira Iron, e o Brasil entrou com o pico do Cauê, cujo
ferro barato se destinaria à indústria bélica aliada no esforço de
guerra.
Passada a guerra, a Vale do Rio Doce cresceu para o mercado mundial,
expandiu-se para muito além de Itabira, foi privatizada em 1997, jogou
fora o Rio Doce do nome, tornando-se, ao longo de tudo isso, essa
máquina mundial e essa potência que conhecemos.
Para Drummond, a companhia fazia questão de ignorar a sua dívida de
origem com o lugar que explorava. Em poemas, crônicas e artigos
polêmicos (aliás nunca publicados em livro), dizia que a Vale primava
por ignorar programaticamente os danos que provocava. Trazendo Itabira e
o pico do Cauê na fotografia de uma memória dolorosa, Drummond lutará a
vida inteira, direta ou surdamente, contra isso.
A Vale chegou a utilizar a poesia de Drummond para fazer
publicidade. Drummond reagiu e atacou a empresa em várias ocasiões. Como
foi esse embate? De fato, talvez seja um
caso único de embate direto de um poeta com potências geoeconômicas de
vulto. Mas, cronologicamente, a coisa aconteceu ao contrário: foi a Vale
que, em 1970, reagiu a críticas anteriores do poeta publicando no
jornal O Globo um anúncio provocativo com o título “Há uma pedra no
caminho do desenvolvimento brasileiro”, em que usava a seu favor
palavras do famigerado poema “No Meio do Caminho”.
O reclame dizia: “Nosso caminho sempre esteve cheio de pedras. Mas
essa tem um significado todo particular. Com ela, alcançamos esta semana
a marca de 20 milhões de toneladas de minério de ferro exportados. Nós e
as companhias associadas. Mais 2,5 milhões do que todo o ano passado. O
que representa a entrada no país de divisas na ordem de 150 milhões de
dólares. É a comprovação de que nossos objetivos de desenvolvimento
estão sendo atingidos. Somos especialistas em transformar pedras em
lucros para a nação. É de mais pedras como essa que o Brasil precisa”.
Os atritos tinham começado em 1955, quando Drummond escreveu uma
série de artigos no Correio da Manhã e mais tarde no Jornal do Brasil em
que dizia que os lucros crescentes da empresa em plena expansão não
retornavam minimamente em benefício da cidade. Que, se a companhia era
responsável por 70% dos empregos de Itabira, as jazidas de Itabira eram
responsáveis por 100 % da riqueza da Vale.
Que a mineração, além de destruir modos de vida, era uma “indústria
ladra” que tira sem repor, que devasta e abandona os lugares que
explora, partindo sempre para novos alvos num processo incessante de
“destruição criativa da terra” (empresto aqui um conceito desenvolvido
pelo geógrafo britânico David Harvey). E que seus responsáveis primavam
por desconversar, quando interpelados sobre os problemas, dando lugar a
uma espécie de “comédia embromatória” contínua. Com isso, o poeta
granjeou na cidade natal a fama de inimigo de Itabira e avesso ao
“progresso”.
Progresso é, aliás, a tecla martelada implicitamente pelo anúncio
publicitário da Vale em 1970, invocando euforicamente uma avalanche de
pedras, de milhões de toneladas e de dólares. Já temos recuo suficiente,
no entanto, para ver essa mesma avalanche se converter, hoje, em
milhões de metros cúbicos de lama.
Não posso deixar de dizer, ainda, que o viés mais desafiador de tudo
isso é o poema “A Máquina do Mundo”, cujos sentidos são múltiplos e
inesgotáveis, mas que não é mais possível desconhecer que foi escrito
nesse contexto, em 1949, depois de o poeta ter ido pela primeira vez a
Itabira num pequeno avião (da Vale, que funcionava como táxi-aéreo), de
ter vislumbrado a grandiosidade de Minas do alto, como nunca vira, e as
dinamitações no pico do Cauê, que o fazem antever o choque da sua
desaparição e um novo estado de coisas no mundo do pós-guerra.
Itabira também abriga barragens de rejeitos. Uma delas ocupa
área que era da fazenda da família do poeta. Quais são as perspectivas
da cidade? Esses problemas vêm sendo denunciados pelo editor do
jornal O Trem Itabirano, Marcos Caldeira, que prossegue quase
solitariamente nos trilhos das batalhas que Drummond, a certa altura da
vida, deu por perdidas.
Contra o silêncio das autoridades, e interpelando continuamente a
Vale, sem resposta, ele trouxe recentemente à tona o fato de que os
estoques minerais de Itabira estarão à beira do esgotamento em poucos
anos, deixando em suspenso o destino econômico da cidade (e confirmando o
roteiro de exploração e abandono previsto por Drummond).
Poucas horas antes do desabamento em Brumadinho, Caldeira postou um
texto chamando a atenção para o fato de que há em Itabira quatro
barragens de rejeitos —de Itabiruçu, do Pontal, de Conceição e de Rio de
Peixe— que acumulam mais de 400 milhões de metros cúbicos (pelo menos
oito vezes o total de Mariana, no conjunto).
Entre elas, a barragem do Pontal ocupa o lugar da antiga fazenda
pertencente à família do poeta. Considerado o seu significado histórico e
simbólico, optou-se, ao se implantar a barragem, por transportar a
casa-sede da fazenda, inteira, para o alto de um morro onde está
preservada e reconstituída peça por peça. Faz parte de um estranho
belvedere turístico-literário voltado para a ruína —a lama dos
rejeitos.
A situação faz lembrar, bem ou mal comparando, e claro que sem
querer, o quinto ato do “Fausto” de Goethe, quando, destruído o último
reduto de resistência à obra colonizadora da maquinação fáustica, com a
eliminação física dos últimos resistentes pelos sicários de
Mefistófeles, o herói projeta um belvedere ao lado da destruição para
que se tenha “ilimitada vista” da sua própria obra, isto é, dos
“recursos da terra dominados” (usando palavras, aqui, d’ “A Máquina do
Mundo” de Drummond).
É uma mistura curiosa de proeza de engenharia com esboço turístico e
destruição consumada, numa sintomática espetacularização em falso dos
efeitos da mineração.
Minas tem essa característica de uma natureza potente e de
uma cultura igualmente forte. O cerrado de Rosa e a montanha pulverizada
de Drummond de certa forma se encontraram na tragédia de Mariana, que
agora se repete. Que recado Minas está dando para o Brasil? Sim,
em Minas Gerais natureza e cultura estão intimamente entranhadas, ali
geografia física é geografia humana. As montanhas falam em silêncio,
n’"O Recado do Morro” de Rosa e n’"A Máquina do Mundo” de Drummond,
porque estão investidas de experiência coletiva imemorial.
A escrita de Rosa é o canto do cisne do cerrado, sua biodiversidade
convertida em diversidade linguística, os meandros de um relevo maleável
de calcário cheio de grutas e águas subterrâneas, tudo permeado pelos
elos fluviais.
A escrita de Drummond se embate com a dureza do limite, do obstáculo e
do relevo ferrífero. Um é a “pedra no meio do caminho”, o outro, “a
terceira margem do rio”. Drummond via nos profetas do Aleijadinho essa
dimensão de confabulação silenciosa com as montanhas, com a qual se
identificava. Mas as estátuas estão sofrendo hoje um processo de
corrosão pela poluição mineral, rondadas também por barragem de rejeitos
e cercadas de feiura.
A mineração destruidora vivida por Drummond contracena com o cerrado
destruído de Rosa. A catástrofe socioambiental de Mariana ligou os dois,
fazendo a mineração drummondiana desabar no mundo rosiano do rio
(embora o rio Doce não seja um rio rosiano); em Brumadinho essa
associação se repete, com a lama escorrendo pelo Paraopeba na direção do
São Francisco (este, o grande rio rosiano).
O recado em Rosa dá conta da mistura de truculência e doçura que
enforma o sertão mineiro, da violência patriarcal redimida às vezes,
quase milagrosamente, por inimagináveis matizes da sensibilidade e do
encantamento. Em Minas, uma graça inefável comparece na melodia das
vozes, na riqueza dos cantos e dos fazeres populares, na generosidade da
comida, na discrição e no acolhimento, nas figuras de seus seres
meditativos e seus lunáticos louquinhos.
Quando uma montanha de lama se derrama sobre o ambiente e a
população, em Bento Rodrigues ou em Brumadinho, ela arrasa mundos de
singeleza rural e de vidas ainda bafejadas por certa simplicidade
pastoral. Tudo fica parecendo de fato uma versão, ainda mais pungente e
arrasadora, do episódio do "Fausto" a que nos referimos antes.
Ocorre que esse riquíssimo campo de bens materiais e imateriais foi
ocupado ao longo das décadas por uma mineração voraz e predadora na
base. Um poeta disse isso até a exaustão, há mais de 60 anos.
Barragens de alteamento a montante, em que barreiras de rejeitos se
apoiam em barreiras de rejeitos que se apoiam em barreiras de rejeitos,
são como castelos de cartas sempre sujeitos a cair. Um laudo, nesse
caso, é autodemonstrativo: serve muitas vezes mais para assegurar a si
mesmo do que para garantir a segurança das barragens, que são muitas.
Essa ocupação predatória se deu historicamente com a instalação
abundante de dispositivos de extração garantidos por expedientes de
manipulação, servindo sempre para dissolver, desativar e dissuadir
resistências, reivindicações de segurança, garantias necessárias e
demais obstáculos. Nos últimos dias, vários desses expedientes, que
envolvem burocratas e políticos comprometidos com uma mineração sem
peias, vieram à tona.
O recado que Minas está nos dando é o vômito da terra provocado pelos
homens brancos que a escarafuncham, disse um índio da região de
Brumadinho. Ricochete inominável de uma história de práticas
sistemáticas de imediatismo irresponsável, de “incompetência cósmica” (a
expressão é de Oswald de Andrade), de oportunismo dirigido pela
otimização dos lucros e de uma mistura explosiva de cegueira com má-fé. É
a volta real e telúrica da “golfada hedionda” que, segundo Nelson
Rodrigues (ao falar d’“Os Sertões” de Euclides da Cunha), é a forma com
que o Brasil se expressa.
O Brasil ainda parece não se dar conta do papel que poderia
assumir como referência para um novo tipo de relação com a economia e a
natureza. Continuamos a destruir o ambiente e a desprezar os índios. O
atual governo chegou ao poder com esse discurso. Agora depara-se com
essa catástrofe. O que surgirá desse embate? O
discurso alardeado de flexibilização das licenças ambientais e de
desqualificação da questão ecológica sofre um revés concreto com a
repetição do acontecimento de Mariana em Brumadinho. Esse discurso
aponta, aliás, para a adoção assumida e ostensiva, sem o entrave da lei,
de práticas que já existem oficiosamente, e que são desastrosas.
Toda estratégia de negação da realidade, como a negação das ameaças
socioambientais, tende a passar por desmentidos concretos mais cedo ou
mais tarde, e o que estamos vivendo é um duro golpe de realidade,
presto, difícil de disfarçar, de escamotear e de digerir.
Sabemos o quanto os procedimentos reparatórios e punitivos do crime
socioambiental em Mariana, depois de três anos, padecem dos efeitos da
“comédia embromatória” de que já falava Drummond. Mas se torna muito
mais difícil sustentar a comédia da postergação infinita quando a
tragédia insiste em dar de novo o seu recado.
A força das evidências é um trunfo para o enfrentamento realista e
generoso dos problemas complexos que envolvem a mineração e a vida das
cidades, das povoações, dos viventes humanos e dos animais, da natureza,
dos índios. Mas sobram sempre, é claro, muitos recursos embromatórios: o
discurso do “gerenciamento de risco” quando apenas arranha a superfície
da lama, uma multa aqui ou ali, manobras diversionistas enquanto tudo
silencia e acaba de escoar pelo ralo da mídia (o censor volátil da vida
brasileira).
Precisamos de história e de poesia. Algumas pessoas se perguntam como
reagiria o poeta no momento presente. Mas a questão é como reagimos
nós, hoje, à sua poesia. Ao “Relógio do Rosário”, por exemplo, que
acompanha “A Máquina do Mundo” no livro “Claro Enigma”, maravilhoso
poema sobre a dor de existir como dor coletiva (inspirado no som do sino
da matriz do Rosário, que ficava colada à sua casa em Itabira, e que
ruiu com as dinamitações do Cauê).
A “E Agora, José?”, pergunta que é a marca do nosso tempo, na leitura
vivaz e comovente de Vitor, menino negro baiano, numa rua de Salvador
(encontrável em vídeo na internet). Muito das esperanças esgarçadas
estão nas forças de expressão e articulação que ganharam as periferias
no Brasil. Ou então, em última instância, na frase do pensador português
Agostinho da Silva, que passará por prova definitiva: “O (futuro do)
Brasil é tão grande que não há abismo onde caiba”.
Em uma das imagens icônicas da tragédia de Brumadinho mostrando o resgate por helicóptero de vítimas da lama, o Brasil Velho é retratado ao lado do Brasil Novo.
No Brasil Velho, onde mulheres “não sabem dirigir” e seu trabalho se
resume a “cuidar da casa”, a preocupação ambiental é uma firula; a
palavra de ordem é primeiro desenvolver para depois se preocupar com o meio ambiente. A questão ambiental não é problema relevante.
Na mesma imagem, o Brasil Novo paga com dor profunda a conta
cara deixada pelo Brasil Velho, e a piloto major Karla Lessa realiza uma
manobra de alta perícia e risco para salvar vidas. A pergunta que nos
assombra é como o Brasil Velho ainda tem tanta força e poder, apesar das
evidências da sua obsolescência.
Os indícios de que a tragédia de Brumadinho era anunciada estão muito
próximos. O rompimento da barragem de Córrego do Feijão, operada pela
Vale, foi precedido pela fatídica tragédia de Mariana (MG) que, em 2015,
deixou 19 mortos e uma grande extensão de danos ao ambiente e a
diversas comunidades.
Em 2014, o rompimento da barragem de Herculano, em Itabirito (MG),
deixou três mortos. Na também mineira cidade de Congonhas, conhecida
pelos profetas esculpidos em pedra-sabão pelo mestre Aleijadinho, 40
famílias ficaram desalojadas quando uma barragem da CSN se rompeu em
2008.
Em 2007, 4.000 pessoas perderam seus lares nos municípios de Miraí e
Muriaé, também em Minas Gerais, vítimas de mais uma barragem da
indústria da mineração. Essa lista se estende no tempo e no espaço —em
Minas Gerais e no Brasil.
Por que, então, todas essas tragédias anunciadas continuam a ocorrer?
Para entendermos isso, precisamos olhar para nossas instituições de
proteção ambiental e social e para os incentivos que elas dão a agentes
públicos e privados.
A receita clássica para coibir crimes de qualquer natureza é aumentar
a chance de o infrator ser pego e/ou aumentar a severidade da pena
aplicada no caso da infração. A chance de apreensão e severidade de
punição, por sua vez, depende de instituições formais e informais
manifestadas em três pilares.
O primeiro pilar são as regras claras de conduta, como leis e
regulamentos formais ou códigos de ética informais. O segundo pilar é o
monitoramento de atividades com potencial impacto na sociedade e no
ambiente, como a fiscalização por parte de órgãos públicos e da
sociedade civil.
Por fim, o terceiro pilar é a punição por danos causados. No conjunto
de punições formais destacam-se as multas efetivamente pagas e o
encarceramento, ao passo que boicotes a produtos e publicidade negativa
promovidos pela sociedade civil são exemplos de punições informais.
Em diversas regiões do mundo onde recursos naturais geram grandes
receitas, tornou-se comum a predominância de instituições fracas de
proteção ambiental. Leis são vagas ou têm aprovação lenta, os
monitoramentos formal e informal são deficientes e a punição por danos é
branda ou ineficaz.
A força motriz por trás de instituições frágeis, nesse contexto, é o
desejo pela diminuição de custos (aumento de lucros) para empresas e
pelo aumento de receitas tributárias para o Estado, ignorando na conta
de ganhos e perdas os danos para o restante da sociedade. Em ambientes
em que a falta de transparência de lobbies e a corrupção abundam, a
situação agrava-se ainda mais.
No Brasil, o monitoramento deficiente sinaliza uma baixa
probabilidade de apreensão de infrações. Após a tragédia de Brumadinho, a
imprensa tem relatado um reduzido número de fiscais de barragens no país.
Penas brandas ou ineficazes, por sua vez, indicam que punições não
são severas. Para ilustrar esse ponto, cabe lembrar que o governo do
estado de Minas Gerais perdoou, através da lei nº 21.735, de 3 de agosto
de 2015, diversas multas ambientais emitidas entre 2011 e 2014.
Como justificativa, argumentou que os custos do processo de cobrança
eram superiores ao valor dessas multas. Similarmente, o novo Código
Florestal perdoou várias ações classificadas como crimes e, por fim, a
esmagadora maioria das multas ambientais no país terminam não sendo
pagas.
Nesse cenário de monitoramento deficiente e punição branda tanto por
parte do poder público como da sociedade civil, empresas privadas,
estatais e mistas passam a ter o incentivo de relaxar na prevenção de
danos à sociedade e ao ambiente.
Como as tragédias de Brumadinho e Mariana bem ilustram, alguém na
sociedade acaba por pagar a conta dos lucros mais altos, das receitas
tributárias adicionais e dos menores preços de bens de consumo.
Quando me refiro ao pagamento dessa conta, incluo além das perdas
materiais alguns custos elevados, mas difíceis de mensurar. Custos como a
dor da perda de vidas humanas, o sofrimento de pessoas afetadas e o
sabor amargo de convivermos com o martírio de animais e a degradação de
paisagens e ecossistemas.
A fragilidade das nossas instituições formais e informais de proteção
da sociedade e do meio ambiente viabiliza a captura de bens da
coletividade por parte de grupos de interesse, a fim de garantir seus ganhos privados em detrimento da sociedade como um todo.
Por exemplo, a sociedade brasileira cobra agora o esclarecimento
sobre a ilegitimidade ou a ilegalidade de diversos processos de
licenciamento ambiental. Quando essa suspeita se confirma, empresas e
indústrias poderosas aumentam a probabilidade de danos ao meio ambiente,
apropriando-se assim de ativos ambientais da coletividade. Convido o
leitor a uma reflexão antes de se convencer de que não pertence a nenhum
desses grupos —seja como produtor, consumidor ou cidadão.
A teoria econômica e a evidência empírica apontam para o papel
fundamental das instituições no desenvolvimento da economia. Países em
que predomina a captura da riqueza nacional por grupos de interesse, no
lugar de instituições que promovem ganhos coletivos, encontram sérias
dificuldades para se desenvolverem.
Por instituições que promovem ganhos coletivos, refiro-me a
atividades e práticas geradoras de benefícios que vão além do lucro
privado de indivíduos, firmas, governos e organizações.
Essas práticas incluem a defesa da concorrência entre produtores e
consumidores, regulação do mercado quando ele falha em prover bens
públicos como a proteção ambiental, transparência na gestão de recursos
públicos, diminuição da desigualdade de oportunidades, defesa do Estado
de Direito e da democracia, acesso a educação básica e saúde, proteção a
liberdades individuais e geração e difusão do conhecimento.
Quando pensamos em crescimento econômico, as repetidas experiências
de danos ao meio ambiente nos ensinam que o desenvolvimento não pode
estar descolado da proteção ambiental. A ideia de desenvolvimento nos
remete ao bem-estar da sociedade e a habilidade de sustentá-lo. As
tragédias recentes, por sua vez, expõem tanto o dano ao bem-estar social
propiciado pela negligência ao meio ambiente quanto a viabilidade do
modelo vigente de produção e consumo ao longo do tempo.
A garantia do desenvolvimento de longo prazo não requer
necessariamente sacrifícios do crescimento econômico, mas sim a
incorporação da proteção ambiental na forma como produzimos e consumimos
bens e serviços que colaboram para o nosso bem-estar.
Adicionalmente, no caso específico da contribuição para o
desenvolvimento econômico pela extração de recursos naturais não
renováveis, como minérios e petróleo, é fundamental desenharmos uma
estratégia de longo prazo. Pela sua própria natureza, recursos naturais
não renováveis serão exauridos em algum ponto do tempo, e as receitas
advindas da sua extração cessarão. Neste momento, regiões extrativas
correm o risco de entrar em colapso econômico.
A fragilidade de instituições de proteção dos interesses da
coletividade em regiões produtoras de recursos naturais combinada ao
colapso econômico advindo da exaustão caracterizam o que economistas
chamam de “maldição dos recursos naturais”. Apesar de dotadas de
riquezas, essas regiões não são capazes de se desenvolver e ainda
convivem com um passivo ambiental que reduz o bem-estar da coletividade.
No entanto, a maldição não é inescapável. A saída viável passa por
reconhecer nos recursos naturais um tipo de capital que, ao ser
extraído, é transformado em outro capital capaz de sustentar o
desenvolvimento de longo prazo. Para que isso ocorra, mais uma vez são
necessárias instituições a garantir que a renda gerada pela extração
seja canalizada para investimentos, após a cobertura dos custos
econômicos da atividade extrativa.
Alguns países e regiões têm sido bem-sucedidos em criar instituições
que convertem rendas de recursos naturais em investimentos de longo
prazo. Por exemplo, na Noruega, não mais do que 4% das receitas advindas
de impostos, royalties e licenças de extração de petróleo podem ser
adicionadas ao orçamento anual do governo.
O restante das receitas vai para um fundo soberano em benefício das
gerações futuras e presente. Outros países e estados norte-americanos
constituem fundos similares com saques restritos a investimentos
geradores de renda ou investimentos em motores do crescimento econômico
de longo prazo, como capital humano (educação) e desenvolvimento da
ciência e de novas tecnologias.
O Brasil Velho, constituído por indivíduos de todas as idades,
consolida muitas das suas instituições de captura dos recursos da
sociedade por parte de grupos de interesse. No entanto, este Brasil
Velho deixa uma conta altíssima e insustentável para a geração presente e
para as vindouras. A tragédia de Brumadinho nos traz, mais uma vez,
para frente do espelho e nos chama para pensarmos em um novo modelo de
governança dos nossos recursos humanos e naturais.
A história nos ensina que instituições e costumes mudam lentamente.
No entanto, a história também nos ensina que momentos de catástrofe e
dor coletiva podem apresentar oportunidades únicas para realizarmos
mudanças importantes na sociedade.
A tragédia de Brumadinho manda um recado poderoso para o Brasil e o
mundo: se não refletirmos a respeito de instituições e incentivos que
integrem o desenvolvimento econômico, o bem-estar social e o meio
ambiente, corremos o risco de pagar um preço alto pela nossa inércia.
Minimizar a importância de problemas ambientais e postergar a solução
dos mesmos vai nos custar caro.
Rotular a preocupação ambiental como uma farsa ou conspiração
ideológica é uma tentativa desesperada e na contramão da história de um
mundo moribundo tentando se agarrar a seus velhos privilégios.
Ariaster Chimeli é professor associado do Departamento de Economia da FEA-USP.
Tanumakaru, avó de Lulu, conta que criava a pequena índia com dificuldades. Um tratamento dentário na cidade grande teria sido a razão
da viagem da neta, que nunca mais voltou Foto: Jorge William / Agência O
Globo
Natália Portinari e Vinicius Sassine
Desde que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
Damares Alves, assumiu uma cadeira no primeiro escalão do governo do
presidente Jair Bolsonaro, uma ferida de 15 anos atrás voltou a arder no
Xingu. A aldeia Kamayurá, no centro da reserva indígena no norte de
Mato Grosso, é o berço de Kajutiti Lulu Kamayurá, de 20 anos. Damares a
apresenta como sua filha adotiva. A adoção, porém, nunca foi formalizada
legalmente. A condição em que a menina, então com 6 anos de idade, foi
retirada da aldeia é motivo de polêmica entre os índios.
Em depoimentos registrados em vídeo por ÉPOCA, os kamayurás afirmam que
Damares levou a menina irregularmente da tribo. Alguns detalhes se
perdem na memória dos índios, mas há um fio condutor que une o relato de
todos eles. Lulu deixou a aldeia sob pretexto de fazer um tratamento
dentário na cidade e nunca mais voltou. A história de Lulu é lembrada no
Xingu de diferentes formas. Os kamayurás não têm a mesma relação com o
calendário do homem branco. Contam que Lulu deixou a aldeia “há muito
tempo”, mas não sabem o ano. A maioria indica a altura da menina com a
mão para marcar sua idade. Lembram que estava “grandinha”. Contam que
Damares e Márcia Suzuki, amiga e braço direito da ministra, se
apresentaram como missionárias na aldeia. Disseram-se preocupadas com a
saúde bucal da menina. “Márcia veio no Kuarup (
festa tradicional em homenagem aos mortos
), olhou os dentes todos estragados e falou que ia levar para tratar”, contou Mapulu, pajé kamayurá e irmã do cacique.
Lulu nasceu em 20 de maio de 1998, segundo seu registro. Na história
contada pelos kamayurás, sua mãe biológica, Parawairu, não tinha
condições de criá-la. Foi Piracumã, tio da menina, quem teve a ideia de
deixar a criança aos cuidados da avó paterna, Tanumakaru, uma senhora de
pele craquelada, cega de um olho. Lulu cresceu nos braços da anciã. A
avó, que virou mãe afetiva, não tinha leite no peito. Eram tempos
difíceis. A aldeia sofria com escassez de remédios e alimentos, e a
menina chegou a ficar desnutrida. Os kamayurás lembram que a avó
atravessava as madrugadas cozinhando polvilho para tentar matar a fome
da neta.
Os indígenas se referem a Piracumã como pai de Lulu. Sua mulher,
Kamaiulá, é tida como mãe “oficial” de Lulu no registro. Kamaiulá estava
longe da aldeia fazendo um tratamento médico quando ÉPOCA a procurou na
semana passada. Piracumã acompanhou a mulher na viagem. A reportagem
tentou fazer contato com os pais de Lulu por intermédio de outros
membros da aldeia, mas não obteve resposta. Na quarta-feira, depois de
já ter avisado a ministra sobre o teor da reportagem, ÉPOCA recebeu a
informação de que o casal estava a caminho de Brasília. Eles não se
manifestaram até a conclusão desta edição.
“Nessas comunidades, as irmãs de sua mãe são meio sua mãe, e os irmãos
do pai são meio que o pai também”, explicou a antropóloga Marina
Vanzolini, professora da Universidade de São Paulo (USP) especializada
em índios do Xingu. “As crianças sabem quem é o pai e quem é tio, claro,
mas é uma passagem tranquila. Também é muito comum que avós peguem
filhos rejeitados para criar e levem para outra aldeia, como foi feito,
mesmo quando a mãe não está de acordo.”
Hoje quase octogenária, com a saúde frágil, Tanumakaru não consegue
enxergar nem andar sem ajuda. No fim de uma tarde nublada, na semana
passada, surgiu na porta da oca apoiada em uma bengala, auxiliada por
uma de suas netas, para se sentar em frente à oca do cacique, onde
estava a reportagem de ÉPOCA. Falava em tupi, com pouca articulação, e
era traduzida pelos demais índios familiarizados com o português. Contou
que a única menina que criou como se fosse sua filha foi Lulu. Era uma
recém-nascida frágil e magra que chegou a ser levada de avião para um
tratamento pelos servidores que cuidam da saúde dos indígenas na região.
Um desses funcionários, que não quis se identificar, disse à reportagem
que a criança “fechava a boca”, não conseguia comer e teve de receber
soro. Atendida por profissionais, a menina superou a fragilidade dos
primeiros anos. Pelo uso regular de mamadeira, porém, acabou crescendo
com os dentes tortos. Foram esses problemas de dentição que uniram os
destinos de Lulu, Damares e os kamayurás, lembra a anciã, mudando de
semblante. “Chorei, e Lulu estava chorando também por deixar a avó.
Márcia levou na marra. Disse que ia mandar de volta, que quando entrasse
de férias ia mandar aqui. Cadê?” Questionada sobre se sabia, no momento
da partida de Lulu, que ela não mais retornaria, foi direta: “Nunca”.
Ela é a “verdadeira” mãe de Lulu, afirmaram os índios.
No início da década passada, a então assessora parlamentar Damares Alves
e sua amiga Márcia Suzuki, da Igreja Metodista, fundaram a organização
não governamental Atini, declaradamente voltada para assistência a
populações indígenas. Quando foi escolhida para ser ministra, Damares
descreveu sua filha como uma “sobrevivente” e contou que adotou Lulu com
6 anos de idade. Damares sempre se definiu como uma amiga dos índios
que criaram a menina.
Ao contar sua história com Lulu, porém, em diversas ocasiões descreveu
de forma sombria os índios. “Minha filha foi salva do sacrifício”, disse
a um canal evangélico no YouTube. “No povo dela, quando Lulu nasceu,
mãe solteira não podia criar filhos e tinha de matar o bebê.” Lulu
acabou “sendo abandonada”. A família que havia pegado Lulu para criar
“não estava dando conta”, o que, embora ela não conclua, teria
justificado a adoção. “Lulu tinha muitas dores físicas e emocionais”,
disse na gravação.
Em 2013, em um culto, Damares fez um relato ainda mais dramático da
infância de sua filha. Além de ter sido salva do infanticídio e
maltratada pela miséria dos kamayurás, a menina seria escrava do próprio
povo. “Quero mostrar para vocês uma menina de 6 anos, que foi
escravizada em sua aldeia e tem uma história terrível. Mas eu não vou
contar a história, não, porque esta é minha filha. Eu quero mostrar como
está minha filha hoje: a cara da mãe”, disse, projetando fotos de Lulu,
depois de enumerar diversos casos de crianças que teriam sido salvas do
sacrifício.
O Parque do Xingu é um território de 26.400 quilômetros quadrados, cerca
de 17 vezes o tamanho do município de São Paulo. Encravado no norte de
Mato Grosso, hoje é cercado por extensas plantações de soja que avançam
cada vez mais sobre a área de floresta. O desenho da demarcação atual,
que protege a mata e a população de milhares de indígenas de diferentes
etnias, existe desde 1978. É preciso andar ao menos duas horas de carro e
mais 20 minutos de barco, trazendo combustível da cidade em galões,
para chegar à aldeia Kamayurá, à beira de uma enorme lagoa.
Os kamayurás, que se reúnem todas as noites para assistir ao
Jornal Nacional
na televisão instalada na oca central da aldeia, ficaram a par da série
de polêmicas que marcaram as primeiras semanas de Damares no ministério.
Frases como “O Estado é laico, mas essa ministra é terrivelmente
cristã” e “É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste
rosa” movimentaram as redes sociais e também as conversas na aldeia. No
Fantástico
, Damares disse que sua filha visita a família kamayurá regularmente, o que os indígenas ouvidos por ÉPOCA negaram.
A primeira visita de Lulu à aldeia, relataram os indígenas, só aconteceu
há cerca de dois anos. Tainá, prima de Lulu, contou que não conseguiram
conversar porque a menina disse ter esquecido o tupi. Se a filha
adotiva de Damares não aparecia no Xingu, um dia a aldeia tentou ir até a
cidade, relataram novamente os indígenas. Prima de Lulu, Kuéku disse
que, há alguns anos, tentaram fazer contato com Damares para visitar
Lulu em Brasília. “Damares mandou a menina para São Paulo, para não ter
como ver a mãe”, disse Kuéku.
As acusações de maus-tratos e infanticídio feitas pela ministra são
rebatidas com veemência pelos kamayurás. “Quem sofreu mesmo, quem ficava
acordada fazendo mingau era a vovó Tanumakaru, não a Damares. Ajudei a
buscar leite nessa época. Lulu dormia com a vovó na rede”, disse a pajé
Mapulu. “Chegou aqui a notícia de que estavam dizendo que tentaram
enterrar a Lulu, que ela não podia mais voltar para a aldeia porque
estava ameaçada. Tudo mentira. Damares cometeu um grande erro. É mentira
dizer que Lulu foi resgatada. Se Damares tivesse visto Lulu em um
buraco no chão e pegado ela de lá, podia dizer isso”, complementou a
pajé.
Os kamayurás não negam seu passado de sacrifícios. No caso de Lulu, foi
Piracumã, o tio da criança, quem insistiu para que a mãe não enterrasse o
bebê. O costume, segundo os índios, ainda era muito comum,
especialmente em casos de mães solteiras. A pajé Mapulu, porém, negou
que eles hoje ainda pratiquem infanticídio. “Antigamente, tinha o
costume de enterrar. Hoje, a lei mudou”, contou Mapulu. “Se a mulher
fica grávida, outro pega. Eu tenho três filhos sem pai. Antigamente, não
aceitava. Hoje mudou, a gente é brasileiro, tem cartão
(de identidade)
.” Para ilustrar, ela apontou para trás: “Todas essas aí? Sem pai”. São cinco meninas.
A adoção entre familiares é comum na aldeia. Os pais biológicos não são,
necessariamente, os que criam o bebê na fase de amamentação. Quem cria o
neném, no entanto, tem um vínculo com ele pelo resto da vida. Quando
crescem, as crianças têm certas obrigações, como cozinhar a tapioca e o
peixe para os familiares mais velhos. É para cuidar de Tanumakaru que os
indígenas pedem o retorno de Lulu. Para quem mora numa metrópole, a
razão pode parecer esdrúxula. Mas, na tribo — onde ela nasceu e de onde
foi levada —, as tarefas são vistas como uma retribuição do cuidado que a
menina recebeu dela, sua “verdadeira” mãe.
A família negou que tenha rancor da menina. “Só tem eu de filha para
cuidar da minha avó, levar ela no banheiro, cozinhar”, disse Kuéku. “Meu
pai sempre fala, quando a vovó quer comer biju: ‘Cadê Lulu? Por que a
branca levou?’”, contou Kuéku.
Apesar das acusações contra Damares, kamayurás que moram em Brasília
defendem a ministra. Ali, vive uma comunidade de cerca de 30 kamayurás —
a maioria ligada à ONG de Damares. Na última terça-feira, após saber da
visita da reportagem à aldeia, no Xingu, Makal, o pai de uma menina
indígena com uma doença degenerativa atendida na capital pela ONG,
procurou ÉPOCA para contar uma história positiva sobre Damares. A
ministra tinha acabado de receber perguntas da revista sobre o conteúdo
da apuração.
Segundo o kamayurá, Damares teria, “há mais ou menos dois anos”,
procurado os familiares de Lulu e comunicado a decisão de devolver a
garota, já com 18 anos, à aldeia. Teriam sido os familiares, segundo
Makal, que se recusaram a receber Lulu, alegando que ela deveria ficar
em Brasília e estudar: “Eles é que quiseram que ela ficasse”, disse.
Além de isentar Damares, o indígena acusou os kamayurás do Xingu de
tentarem prejudicar a ministra. “As pessoas mentem. Estão querendo se
aproveitar da situação para criticar a ministra.” Para Makal, a Atini é
sua “segunda aldeia”. Se não fosse pela assistência da ONG de Damares,
sua filha, Sheila, não teria sobrevivido. “A intenção da Damares é que
Lulu volte para a comunidade”, disse.
Em outubro do ano passado, Damares encaminhou Lulu para um cargo
comissionado, com salário entre R$ 2.389 e R$ 4.779 — a depender de
gratificações —, no gabinete do deputado Erivelton Santana
(Patriota-BA). “Não tive oportunidade de conversar muitas vezes com a
Lulu. Ela é esperta, expedia documentos, atendia o telefone, fazia
atendimento para o pessoal”, disse o deputado a ÉPOCA. Questionado sobre
se Damares havia indicado a filha, disse que foi “um amigo em comum”. A
carreira de assessora parlamentar, no entanto, durou pouco. Foi
encerrada em 6 de dezembro, mesma data em que a mãe foi anunciada
ministra por Bolsonaro.
Mapulu, a pajé, disse que toda a comunidade quer o retorno dos kamayurás
ao Xingu. Existe um conflito entre quem defende a preservação da aldeia
e o desejo de alguns indígenas de viver na cidade, o que afeta também
crianças. É isso que explica o discurso dissonante entre os índios no
Xingu e quem mora em Brasília e conhece Damares.
“Acabou essa ideia de dar criança para o branco criar. A gente entrou na
lei do branco. Se você levar um menino, chega a Funai na sua casa e
pergunta ‘Cadê menino de volta?’.” Amanuá Kamayurá, servidor da Fundação
Nacional do Índio (Funai) que atende o Xingu, concorda. “Todo índio que
sai daqui tem de passar pela Funai. Acordo verbal não tem valor nenhum.
Tem de ter acordo judicial, tem de ter ação, tem de ter autorização.”
Para estar de acordo com a lei, a adoção de uma criança indígena precisa
passar pelo crivo da Justiça Federal e da Justiça comum. A adoção, ou
mesmo apenas a guarda ou tutela, depende de um aval da Funai, que
analisa se a identidade cultural, os costumes e as tradições da criança
serão minimamente respeitados. Neste caminho, o Ministério Público
Federal também analisa casos em que uma criança indígena passa para o
poder de uma família de não índios. Esse procedimento foi formalizado no
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 2009, mas já era exigido
pela Funai e pelo Judiciário antes disso.
A partir do momento em que alguém abriga uma criança de outra família,
mesmo na comum prática de “pegar para criar”, é necessário procurar a
Vara da Infância e da Juventude para regularizar a situação legal. Caso
contrário, pode haver empecilhos na matrícula da criança na escola ou no
atendimento no sistema de saúde. Esse tipo de procedimento envolvendo
indígenas é raro na Justiça local em Brasília, por exemplo. Nos últimos
15 anos, os profissionais que atuam na área, ouvidos por ÉPOCA, se
recordam apenas de uma adoção e de uma guarda desse tipo.
A própria Damares, antecipando-se a eventuais questionamentos a respeito
da “adoção” de Lulu, afirmou ao programa Fantástico, da TV Globo, que a
menina não era formalmente adotada, mas que via a família biológica com
frequência. Damares reconheceu que nunca procurou a Justiça para
regularizar a adoção ou a guarda da menina. No processo, uma equipe de
estudos psicossociais deve analisar se há vínculos entre a criança e os
adotantes e se a família mais extensa — tios, avós, primos — corroboram a
adoção. No caso dos indígenas, deve ser ouvida a aldeia. Uma lei de
2009 obriga que os novos pais façam um curso de preparação psíquica e
social. Profissionais que atuam na área lembraram que nenhuma criança
pode ser “transferida” para outra família sem autorização judicial. Isso
vale, inclusive, para crianças criadas por avós.
Maristela Basso, professora de Direito Internacional e Privado da USP,
explicou que, no processo de adoção, “o antropólogo verifica se a
criança vai encontrar no lar que a abriga condições de manter sua
memória, sua tradição, sua cultura”. É preciso que ela tenha condições,
no novo lar, de manter seus hábitos e de se adaptar gradualmente. A
adoção costuma ser permitida quando o menor é rejeitado pela aldeia ou
tem problemas de saúde. “Se a criança é muito pequena, a adaptação no
mundo do branco é mais rápida”, disse a advogada. Não foi o caso de
Lulu, cujos parentes a criaram bem.
O crime surge apenas quando se configura um rapto, um sequestro de
incapaz, ou mesmo os chamados consentimentos viciados, em que os pais
são induzidos a entregar suas crianças. Há julgados no Superior Tribunal
de Justiça (STJ) de casos em que os pais não acreditam se tratar de um
rapto e são induzidos a erro. “O instituto da adoção é de elevada
magnitude e revestido de nobreza, ética, verdade e afeto, e isso não
combina com atos ilícitos”, afirmou Walter Gomes de Sousa, supervisor da
Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância do
Distrito Federal.
A “adoção” feita por Damares tem quase 15 anos. Assim, mesmo que a
Justiça considerasse que houve algum tipo de crime, ele poderia estar
prescrito. Um maior de idade pode ser adotado por qualquer um que tenha
mais de 16 anos de diferença e queira adotá-lo, disse Maristela Basso.
“Se for um menor, aconselharia devolver à aldeia e requerer a adoção
pela via judicial imediatamente. Mas um maior de idade não é mais
indígena para esse fim.”
Na quarta-feira, a blogueria indígena Ysani Kalapalo publicou um vídeo
em que afirma que ÉPOCA entrou no Xingu de forma ilegal para prejudicar
Damares. O vídeo foi reproduzido por bolsonaristas nas redes sociais,
mas a informação é mentirosa. A autorização para a entrada da reportagem
foi cedida por Kumaré Txicão, coordenador regional da Funai no Parque
do Xingu, em 22 de janeiro.
A ONG de Damares, a Atini, tem cunho religioso e missionário. O
movimento se declara pelo resgate de crianças indígenas em situações de
risco de morte. Basicamente, tem uma única bandeira: salvar essas
crianças do infanticídio.
A Atini virou uma organização não governamental, registrada na Receita
Federal, em dezembro de 2006. Os principais líderes fundadores foram
Damares e o casal de missionários Edson e Márcia Suzuki, que também
criaram uma criança indígena.
A base da ONG é uma chácara de 5 alqueires, no Núcleo Rural Casa Grande,
na região administrativa do Gama, no Distrito Federal. Diversas
organizações religiosas estão na região. Poucas são as placas que
indicam o endereço da Atini.
ÉPOCA esteve no local no último dia 25. Caseiros cuidam do espaço, que
tem diversas casas e chalés, onde ficam famílias de indígenas. Num
campinho de futebol, quatro crianças indígenas brincavam no momento da
visita da reportagem. Os caseiros não quiseram falar.
Em mais de 12 anos de existência formal, a atuação da Atini passou a ser
alvo de investigações por rapto de crianças indígenas. ÉPOCA teve
acesso a documentos referentes à atuação do casal Márcia e Edson e a um
outro caso envolvendo um casal do Rio de Janeiro. O pano de fundo é
sempre o risco do chamado infanticídio dessas crianças em suas tribos e
uma atuação da ONG na acolhida de crianças.
A atuação de Márcia e Edson nos suruwahá ocorreu em 2006, ano do
registro formal da Atini. Os dois missionários foram contratados pela
Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para atuar como intérpretes da
língua suruwahá no atendimento a uma criança chamada Iganani,
diagnosticada com retardo de crescimento e de desenvolvimento
neuropsicomotor. A partir daí, teria ocorrido a retirada de um grupo de
indígenas da comunidade.
Dois extensos relatórios da Funai, elaborados em 2011, registram o que
ocorreu. Para a Funai, houve uma “subtração” dos índios pela organização
evangélica Jovens com uma Missão (Jocum), entidade que contou com a
atuação do grupo fundador da Atini. Os suruwahás eram considerados de
recente contato com a cultura branca. Deixaram a tribo a menina Iganani e
sua mãe, Muwaji Suruwahá.
Segundo a Atini, Iganani foi condenada à morte em razão de uma paralisia
cerebral. A forma escolhida para a morte foi o envenenamento pela
própria comunidade, segundo a versão da ONG. Muwaji, então, teria
procurado os missionários para “enfrentar” a própria tribo. Mãe e filha
foram levadas para São Paulo para tratamento médico.
Os relatórios da Funai apontam que outras duas crianças foram retiradas
da comunidade posteriormente: Ahuhari, de 12 anos, e Inikiru, de 9.
Márcia e Edson também foram responsáveis por essa “subtração”, segundo
os documentos.
Os técnicos da Funai descreveram que Ahuhari vivia o rito de passagem da
infância para a fase adulta. Tinha acabado de caçar uma primeira anta, o
que é considerado uma grande honra para os suruwahás. As crianças foram
levadas para Brasília. E assim descreveu uma professora sobre o
comportamento de Ahuhari na escola: “Ainda não fala o português, não
respeita a professora, não interage com os colegas, está sempre com um
pedaço de pau na mão e fala muito em flechas”.
Os parentes das crianças exigiram o retorno delas à tribo, e em 2008 o
Ministério Público Federal foi informado da situação. Em 2009, todos
eles foram encontrados na chácara da Atini — a mesma visitada por ÉPOCA.
Por mais de uma vez, os relatórios da Funai citam que a comunidade não
se conformou com a ausência das crianças e que não houve consentimento
para a saída do grupo.
A Funai concluiu naquele ano de 2011 ser necessário pedir uma “busca e
apreensão de incapazes”, de forma que a guarda fosse devolvida à aldeia.
Em setembro de 2013, num relatório de quatro páginas enviado à Justiça
Federal, o delegado da Polícia Federal Manoel Vieira da Paz Filho, com
atuação em Brasília, concluiu que não foram confirmadas as informações
sobre retiradas de indígenas de suas tribos sem o conhecimento de
servidores da Funai e dos líderes das tribos.
Para chegar a essa conclusão, o delegado ouviu uma integrante da Jocum e
Muwaji Suruwahá. A mãe disse que estava “incerta” sobre ter interesse
em voltar a viver em sua aldeia e que necessitava continuar em Brasília
para o tratamento da filha.
Infanticídio é um termo evitado pelo Ministério da Saúde. A pasta
prefere neonaticídio. Em uma resposta a questionamentos de ÉPOCA, a
assessoria deu a dimensão da polêmica envolvendo o assunto: “Por
definição, o neonaticídio é um fenômeno complexo que desafia os
paradigmas dos sistemas de saúde não indígenas, seus códigos morais e
jurídicos e exige uma adequada compreensão do contexto sociocultural
onde ocorrem”.
O ministério chamou de “suposição” considerar como neonaticídios as
mortes por agressão de indígenas de até 1 ano de idade registradas pelo
sistema de saúde. Em 2012, foram 57 mortes por agressão, e 37 em 2016,
segundo dados da própria pasta, que não detalhou em quais etnias esses
óbitos foram registrados.
ÉPOCA obteve, porém, duas notas técnicas produzidas em 2015 e em 2016
pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, que
detalham a extensão da prática do neonaticídio — ou infanticídio — no
Brasil, por etnia. O primeiro documento produzido pela secretaria do
Ministério da Saúde afirma terem ocorrido 40 mortes em 2014, assim
distribuídas: 32 nos ianomâmis, uma nos sanumás e uma nos xirianas,
registradas pelo distrito existente nos ianomâmis; duas nos kaingangs,
registradas no distrito Interior Sul; duas nos kaiowás, em Mato Grosso
do Sul; uma nos barés, registradas no distrito de Manaus; e uma nos
guajajaras, no Maranhão.
A nota técnica lembra que o Código Penal prevê o infanticídio como o ato
de “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho,
durante o parto ou logo após”. “No caso indígena, a escolha de não
deixar o neonato sobreviver existe desde antes do contato com os
costumes brasileiros não indígenas e não é considerado, por eles, como
crime ou um ato condenável”, continua. Ainda segundo o documento,
“questões sociais” levam a mãe indígena a essa decisão: falta de
alimentos, comunidades desestruturadas, falta de apoio do pai,
nascimento de gêmeos. “Para os indígenas, o neonato que ainda não
recebeu a primeira amamentação ainda não possui pessoalidade”, cita a
nota.
A secretaria vinculada ao ministério lembra que a prática é mais comum
entre os ianomâmis e que também “há casos relatados” entre os suruwahás,
povo com “pouquíssimo contato” com não indígenas. As mães ianomâmis têm
partos sozinhas, na floresta, e escolhem pela não sobrevivência dos
bebês em situações de dificuldades extremas. Os casos citados no
relatório são falta de saúde da mãe, falta de apoio do pai, malformação e
deficiência do bebê. A etnia ianomâmi aceita a prática e dá autonomia
de decisão à mãe.
Depois da primeira nota técnica, a Secretaria Especial de Saúde Indígena
produziu um segundo documento, em 2016, para dizer que os primeiros
dados tinham equívocos. Os casos de neonaticídios se restringiam a três
etnias, e não a sete, segundo a secretaria. Teriam sido, na verdade, 39
mortes entre os ianomâmis, uma nos sanumás e uma nos xirianas em 2014.
Em 2015, foram 41 nos ianomâmis.
Tanto o MPF em Roraima, onde estão os ianomâmis, quanto o MPF no Rio
Grande do Sul, onde estão os kaingangs, investigaram em inquéritos civis
públicos se a Funai foi omissa na adoção de políticas públicas para
coibir infanticídios em comunidades indígenas. Os procuradores da
República não encontraram indícios de omissão e arquivaram os
inquéritos, o que foi confirmado pelo colegiado responsável por avaliar
os arquivamentos, no âmbito da Procuradoria-Geral da República (PGR).
No mesmo culto em que mencionou a história de sua filha Lulu, em 2013,
Damares disse, sem citar fontes, que 450 crianças indígenas são
enterradas por ano e que de 30 a 40 etnias mantêm a prática do
infanticídio. “Lá no Xingu, quando nascem crianças gêmeas, os índios
enterram as duas crianças índias”, afirmou sem ser contestada. Uma das
bandeiras de Damares, que contou com sua atuação direta no Congresso, é o
Projeto de Lei que criminaliza eventual leniência de autoridades com o
infanticídio. No culto em 2013, ela defendeu a aprovação da lei. “A
Igreja Evangélica brasileira pode dizer para eles o seguinte: você não
consegue criar essa criança paralítica? A gente cria. Dá para nós. A
gente cuida, a gente quer ficar com ela.” À época, segundo ela, a Atini
já havia “resgatado” 37 crianças.
O Projeto de Lei encampado por Damares, bem antes de ela ser uma
ministra de Estado, considera “nocivas” as práticas de infanticídio de
crianças indígenas. A proposta elenca casos de “homicídios de
recém-nascidos” e obriga a comunicação dos casos às autoridades. Se isso
não ocorrer, pode configurar-se omissão de socorro, com pena de prisão
de um a seis meses, conforme o projeto. Constatada a intenção de
neonaticídio, as crianças devem ser retiradas das comunidades e ser
colocadas em abrigos. O projeto foi aprovado em 2015 na Câmara e
encaminhado ao Senado. Levou o nome de Lei Muwaji, o nome da mãe
suruwahá que foi retirada da tribo com sua filha pelas ONGs Jocum e
Atini. Defensores de povos indígenas preveem que a lei abriria margem
para uma punição indevida de agentes da Funai.
A reportagem procurou a ONG Atini e questionou se todos os indígenas
atendidos enfrentavam, de fato, risco de morte. A advogada da
organização, Maíra de Paula Miranda, disse que a chácara acolhe hoje
seis crianças e outras cinco crianças vivem com a família em outro
endereço no Gama, no Distrito Federal. Duas foram “vítimas ou ameaçadas
de tentativa de infanticídio”, segundo a advogada. Outros dois têm
doenças para as quais não há recursos nas aldeias. A advogada não
forneceu informações sobre as demais crianças.
Segundo Miranda, todas as crianças estão na companhia de seus pais,
sendo essa a política da Atini. Ao todo, a ONG já atendeu 51 crianças,
disse a advogada. “Elas eram crianças que sofriam risco de morte ou de
maus-tratos nas aldeias. Várias delas puderam retornar para a aldeia ou
para o entorno da mesma, quando o risco diminuiu.” Miranda afirmou que a
Atini nunca fez encaminhamentos para adoção.
A advogada reiterou que o relatório sobre os índios suruwahás concluiu
que “não foram confirmadas as informações sobre retiradas de indígenas
de suas tribos sem o conhecimento de servidores da Funai e dos líderes
das tribos. A Atini jamais cometeu qualquer tipo de ato ilícito contra
qualquer povo indígena. Muito pelo contrário, a entidade sempre lutou a
favor dos direitos dos povos indígenas e da promoção de sua cultura e
práticas tradicionais, desde que não violem os direitos humanos
universais e seu bem maior: a vida!”.
A ministra Damares Alves procurou ÉPOCA quando a reportagem ainda estava
no Xingu. Disse que estava “à disposição para responder às perguntas
(...) sobre nossas crianças, sobre minha filha e sobre as famílias”.
“Não temos nada a esconder. Mas insisto: tratem tudo com o olhar
especial para estes povos, para as mães e crianças que sofrem”, afirmou,
via WhatsApp.
Em Brasília, no entanto, ela se recusou a dar entrevista e respondeu
apenas parcialmente a 14 questionamentos da revista. “Todos os direitos
de Lulu Kamayurá foram observados. Nenhuma lei foi violada. A família
biológica dela a visita regularmente. Tios, primos e irmãos que saíram
com ela da aldeia residem em Brasília. Todos mantêm uma excelente
relação afetiva. A ministra Damares Alves não integra a ONG Atini desde
2015. Portanto, todas as perguntas relacionadas à entidade devem ser
direcionadas para lá.”
Perguntamos por que Damares não devolveu a criança à aldeia após o
tratamento. “Lulu Kamayurá já retornou à aldeia. Ela deixou o local com a
família e jamais perdeu contato com seus parentes biológicos.” A
questão sobre não ter adotado formalmente Lulu foi ignorada.
Lulu Kamayurá apagou sua conta no Facebook desde que Damares virou
ministra. Em seu perfil, porém, vinha defendendo a mãe adotiva de
polêmicas recentes. Hoje com 20 anos, estuda para o vestibular. Segundo
pessoas ligadas a Damares ouvidas por ÉPOCA, a ministra e a filha têm
uma relação muito próxima. Lulu frequenta a igreja evangélica com a mãe,
trabalhou na Atini com ela e tem sentido falta de Damares depois que
virou ministra.