March 9, 2025

Barril de pólvora

 


 

AO CONTRÁRIO DE OUTROS ESCÂNDALOS FABRICADOS, A FARRA DAS EMENDAS TEM TUDO PARA SE CONVERTER NA MAIOR INVESTIGAÇÃO DA HISTÓRI A

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 Em março de 2020, o
empresário Josival
Cavalcanti da Silva,
vulgo Pacovan,
acompanhado de
dois amigos, invadiu
com sua caminhonete
Hilux a garagem de uma casa em São
José de Ribamar, terceira maior cidade
do Maranhão, com 240 mil habitantes.
Deixou um bilhete com seu nome e
seu telefone. Giovani dos Santos Costa,
o caseiro, entregou ao patrão, Eudes
Sampaio, prefeito do município. “Meu
deus, como é que esse cara tá aqui? Na
minha casa! Como ele descobriu onde eu
moro? Eu vou chamar a polícia”, reagiu
Sampaio, conforme relato de uma advogada
e de uma funcionária da prefeitura.
A invasão foi uma tentativa de arrancar
do prefeito 1,6 milhão de reais.


A quantia equivalia a 25% dos 6,6 milhões
de reais em emendas parlamentares
destinadas a São José de Ribamar, entre
dezembro de 20219 e abril de 2020,
por três deputados federais do PL: Josimar
do Maranhãozinho e Pastor Gil, ambos
do estado, e Bosco Costa, de Sergipe.
Pacovan cobrava a propina em nome do
trio. Dois meses antes da invasão da garagem,
o empresário tinha estado com
Sampaio na prefeitura, acompanhado de
outro político, Antonio José Rocha Silva,
que depois confirmaria à Polícia Federal
a reunião. Pacovan achava que o prefeito
não queria pagar a propina, pois outro
grupo político, que não aquele de Josimar
e associados, teria tentado convencer
Sampaio de que era o verdadeiro padrinho
das emendas. “Quero desmascarar
esse cara que tá dizendo que é dele (a verba
das emendas). Ele vai pegar uma bala
na cara. Esse vagabundo. Eu fiquei ontem
até meia-noite lá com o prefeito. Lá
no Ribamar. Entendeu?”, disse Pacovan
a Josimar via celular em 30 de janeiro de
2020. “Não posso ir na casa dele (Sampaio).
É perigoso, pois pode ter câmeras
para nos filmar… Não podemos ir em escritório
dele”, respondeu o deputado.
Sampaio denunciou a extorsão à PF
naquele ano. Agora, os três parlamentares
estão prestes a se tornar réus por corrupção
passiva e organização criminosa.


No julgamento iniciado em 28 de fevereiro
e previsto para terminar na próxima
terça-feira 11, dois dos cinco juízes da
Primeira Turma do Supremo Tribunal
Federal votaram para acatar a denúncia
da Procuradoria-Geral da República.
Pacovan escapou por estar no cemitério.
Foi assassinado à bala em junho de
2024, e a suspeita é que tenha sido justamente
por dívida não paga. Josimar, Gil
e Costa serão os primeiros réus no que
tem sido classificado como o maior caso
de corrupção da história do País.
Assim gente graúda em Brasília vê o esquema
das emendas parlamentares, em
especial no formato “orçamento secreto”.


O magistrado Flávio Dino, do Supremo,
usa palavras superlativas em decisões
contrárias à farra das emendas. “É de clareza
solar que jamais houve tamanho desarranjo
institucional com tanto dinheiro
público em tão poucos anos. Com efeito,
somadas as emendas parlamentares entre
2019 e 2024, chegamos ao montante
pago de R$ 186,3 bilhões de reais”, escreveu
em 2 de dezembro do ano passado, ao
impor restrições à liberação dos recursos.


No período citado por Dino havia 190
bilhões de reais previstos em lei para
emendas. Do total, 186 bilhões foram empenhados,
primeira etapa de um gasto público,
e 158 bilhões, efetivamente pagos,
conforme um site do Senado, o Siga. Um
terço dos valores correspondeu a emendas
RP 9, o orçamento secreto puro-sangue, e
RP 8, utilizadas para driblar o fim do segredo
decretado pelo STF em 2022. “Temos
a gravíssima situação em que bilhões

de reais do orçamento da Nação tiveram
origem e destino incertos e não sabidos,
na medida em que tais informações, até
o momento, estão indisponíveis no Portal
da Transparência ou instrumentos equivalentes”,
anotou Dino em 2 de dezembro.


Naquela decisão, o juiz destacou haver
“malas de dinheiro sendo apreendidas em
aviões, cofres, armários ou jogadas por janelas,
em face de seguidas operações policiais
e do Ministério Público”. São esquemas
que não envolvem apenas congressistas.
Uma rede de lobistas, empresários
e servidores públicos chafurda na lama.


Investigar os malfeitos com verbas
de emendas é “prioridade” da PF
e há uma “equipe forte” para o caso,
relata um delegado, que acrescenta:
haverá muitas operações
de rua nos próximos meses. Ele estima
haver entre 15 e 20 investigações em curso
– cada uma pode ter mais de um congressista
envolvido – e fareja um escândalo
de proporções inéditas no País, embora
a mídia ainda não tenha enxergado o
tamanho da encrenca. Segundo esse policial,
a PF quer descobrir como foi montado
o esqueleto das emendas e do orçamento
secreto e quem são os personagens
políticos principais da tramoia, ou
seja, os cabeças. Quer dizer, aquele acordo
entre governo e Congresso, validado
por Dino em 26 de fevereiro, para o retorno
das liberações de recursos pode até
ter deixado muita gente aliviada, mas por
pura precipitação ou autoengano.


Um inquérito policial aberto em dezembro
desnuda o interesse da PF em chegar
às vísceras do esquema. É a impressão
do deputado Glauber Braga, do PSOL do
Rio de Janeiro, ouvido na investigação em
fevereiro pelo delegado Marco Bontempo.


A apuração começou por ordem de Dino,
diante de fatos levados ao conhecimento
do Supremo pelo PSOL e Novo. Em 12
de dezembro de 2024, Arthur Lira, então
presidente da Câmara, fechou todas as
comissões temáticas sob o argumento de
que os deputados tinham de se dedicar ao
pacote governista de controle de gastos.


No mesmo dia, 17 líderes partidários enviaram
ao Palácio do Planalto, por obra de
Lira, um ofício sigiloso. Diziam ratificar
que as comissões temáticas tinham aprovado
4,2 bilhões de reais para 5.449 emendas
e tomado a decisão com base em critérios
estabelecidos pelo Supremo. O PSOL
e o Novo alegam que o ofício foi uma farsa
inventada para materializar a vontade
e o poder de Lira e levaram o caso ao STF.
A desconfiança é reforçada por uma denúncia
feita em novembro pelo veterano
deputado Zé Rocha, do União Brasil da
Bahia. Rocha, com mandato desde 1995,
era presidente da Comissão de Desenvolvimento
Regional. Declarou à revista
Piauí que Lira mandava a lista de emendas
que a comissão deveria aprovar e que
quem não a aceitasse seria destituído do
cargo. O parlamentar prestou depoimento
à PF em fevereiro e confirmou o que havia
dito. Braga depôs também por duas vezes.
Na segunda, para reafirmar o relato da
primeira sobre uma cidade na terra de
Lira, Rio Largo. Nessas ocasiões, o psolista
ficou com a impressão de que a PF
quer fazer a autópsia do esquema.


Rio Largo é a terceira maior cidade de
Alagoas, com 93 mil habitantes, daí sua
importância política. De 2019 a 2022, tempos
de Jair Bolsonaro, recebeu 90 milhões
de reais em emendas, dos quais 19 milhões
carimbados com o nome de Lira. O resto,
70 milhões, não tem digitais, segundo Braga,
por causa do orçamento secreto então
vigente. O psolista contou à PF ter descoberto
que a cidade foi a mais agraciada
com o dinheiro daquele pacote de 4,2 bilhões
de reais. A quantia, segundo ele, foi
direcionada pela Comissão de Turismo da
Câmara. Em 2024, não havia nenhum ala-
goano na comissão. Conclusão: o envio dos
19 milhões tinha sido uma ordem de Lira.


Para Braga, Rio Largo não tem importância
apenas política para Lira. Teria financeira
também. O prefeito entre 2017 e
2024 era Gilberto Gonçalves, aliado e correligionário
de Lira no PP. Seu sucessor
também é pepista. Na véspera de Lira deixar
o comando da Câmara, em 31 de janeiro
passado, Gonçalves publicou nas redes
sociais uma foto de ambos abraçados. Faz
sentido. Seu prontuário criminal é recheado,
e Lira estrela uma das histórias. Na
primeira vez que foi em cana, o deputado
foi junto. Era 2007, período de uma investigação
da PF sobre desvio de verba da Assembleia
Legislativa alagoana. Os dois tinham
sido parlamentares estaduais pelo
PMN entre 2003 e 2006, período investigado
pela Operação Taturana. Durante as
apurações, a polícia gravara um telefonema
de Gonçalves para um funcionário da
área de recursos humanos da Assembleia:
“Quero meu dinheiro. E não venha com
desconto de INSS, não, porque isso é dinheiro
roubado”. Lira foi condenado em
duas instâncias e só não se tornou ficha-
-suja graças a uma liminar de 2018 do Superior
Tribunal de Justiça. Gonçalves foi
preso mais três vezes. Em 2010, por ameaçar
de morte um funcionário que o havia
denunciado à Justiça trabalhista. Em
2014, por facilitar a fuga de um motorista
acusado de crime eleitoral. E em 2022,
em uma investigação da PF sobre dinheiro
recolhido em um beco na cidade de Rio
Largo e levado à prefeitura. Nome da operação:
“Beco da Pecúnia”.

Lira tirou proveito político das emendas
em geral e do orçamento secreto em
particular ao se tornar presidente da Câmara
em 2021, mas não participou da arquitetura
legal que fez explodir a verba
para dotações parlamentares de 9 bilhões
de reais em 2015 para 47 bilhões
em 2024. O desenho foi levado adiante
entre 2015 e 2019. Primeiro por Eduardo
Cunha, presidente da Câmara de 2015
a 2016. Depois, por Davi Alcolumbre, comandante
do Senado em 2019 e 2020 e de
volta ao posto por mais dois anos.
Há pistas de que o governo
Bolsonaro se valeu dessa
arquitetura para angariar
apoio no Congresso.


E o motivo chama-se
Eduardo Gomes, atual vice-presidente
do Senado. Gomes é do PL de Tocantins.
A PF esbarrou no nome dele ao investigar
Josimar Maranhãozinho. Numa operação
batizada de “emendário”, apreendeu o celular
de um assessor de Maranhãozinho
na Câmara, Carlos Roberto Lopes. No
aparelho havia conversas de Lopes, em
2022, com um contato identificado como
“Lizoel assessor”. Lizoel Bezerra foi motorista
na campanha de Gomes ao Senado.

1,3 milhão de reais. Numa delas, encaminhou
a foto de uma conversa escrita com
o senador. “O cara mandou?”, perguntava
Gomes a Lizoel. Para a PF, “mandou”
refere-se a dinheiro. O encontro fortuito
de pistas levou o delegado Roberto Santos
Costa a informar à Procuradoria-Geral.
Não se sabe se o órgão tomou providências
em relação ao senador.


Gomes foi líder do governo Bolsonaro
no Congresso de outubro de 2019 a dezembro
de 2022. É uma função na qual
há muita negociação baseada em dinheiro
do orçamento. Seis dias depois de o senador
assumir a liderança, a área do Palácio
do Planalto responsável à época
por lidar com o Congresso, a Secretaria
de Governo, contratou uma funcionária
chamada Cristiane Leal Sampaio. Em junho
de 2020, Cristiane foi trabalhar com
Gomes na liderança. Nas investigações
sobre o deputado Maranhãozinho, a PF
descobriu um depósito de 5 mil reais na
conta da funcionária, realizado em março
de 2022 por um empreiteiro maranhense,
Eduardo José Barros Costa, o
Eduardo DP, sócio oculto de uma empresa,
a Construservice, metida em estripulias
com dinheiro de emendas na estatal
Codevasf. Cristiane trabalha desde agosto
de 2023 no Ministério do Turismo.


Oministro das Comunicações,
Juscelino Filho,
também é candidato a virar
réu no Supremo por
suspeita de aprontar com
emendas no governo Bolsonaro. Ele é
deputado pelo Maranhão desde 2015.
Pertence ao União Brasil. Em junho do
ano passado, a PF concluiu uma investigação
sobre verbas enviadas ao município
de Vitorino Freire. Na condição de
deputado, Juscelino Filho separou recursos
para a estatal Codevasf financiar
a obra. A prefeita da cidade era sua irmã,
Luanna Rezende. A empreiteira da obra
foi a Construservice. O montante teria
saído de Brasília via Codevasf, chegado a
Vitorino Freire e uma parte ido parar no
bolso da família do atual ministro, conforme
a PF. Em setembro de 2023, ele foi
alvo de uma operação, a Benesse, que provocou
o afastamento temporário de sua
irmã da prefeitura e o bloqueio de 835 mil
reais da família. Os investigadores apontam
crimes de corrupção passiva, lavagem
de dinheiro e formação de quadrilha.
Só a Procuradoria tem, no entanto,
licença para acusar Juscelino Filho ao
Supremo. Até agora, não se sabe a posição
de Paulo Gonet.


O partido do ministro é protagonista de
um dos mais vistosos casos de corrupção
com emendas na mira da PF. Em dezembro,
a polícia realizou a Operação Overclean,
que apura fraudes no Departamento Nacional
de Obras Contra a Seca, o Dnocs,
na Bahia. Na semana anterior à batida,

os federais haviam monitorado um voo
de Salvador a Brasília com o empresário
Alex Parente, o ex-chefe do departamento
no estado Lucas Lobão, e 1,5 milhão de reais.


Os dois deram versões conflitantes para
a bolada. Parente alegou que ela provinha
de vendas de equipamentos, enquanto
Lobão afirmou desconhecer a existência
da grana. A operação atingiu por tabela
o atual segundo-vice-presidente da Câmara,
Elmar Nascimento, do União Brasil
da Bahia. Os agentes encontraram no cofre
de outro investigado, o empresário Marcos
Moura, conhecido como o Rei do Lixo, um
contrato de venda de imóvel a Nascimento.
Por isso, o caso acabou remetido ao Supremo.
Está aos cuidados do juiz Kassio
Nunes Marques, indicado por Bolsonaro.


AOverclean foi a última operação
da PF a vasculhar o
tema em 2024. A primeira
de 2025 chamou-se
“Emenda Fast” e atingiu
o gabinete do deputado gaúcho Afonso
Motta, do PDT. Em 13 de fevereiro, o chefe
de gabinete de Motta, Lino Rogério da
Silva Furtado, foi afastado do cargo e alvo
de buscas, com autorização de Dino. O
congressista demitiu-o dias depois. A polícia
chegou a Furtado ao botar lupa em
um lobista, Cliver André Fiegenbaum.
A maior parte da papelada do caso está
sob sigilo, por isso não se sabe o motivo
de a PF estar no encalço de Fiegenbaum.


O fato é que foi encontrada no celular
do lobista uma espécie de planilha
com três notas fiscais de pagamentos
recebidos de um hospital no Rio Grande
do Sul, o Ana Nery, “referente a captação
de recursos através de indicações
de emendas”. As notas, que vão de julho
de 2023 a fevereiro de 2024, somam 509
mil reais. A PF achou ainda conversas de
Fiegenbaum com Furtado sobre o pagamento
do primeiro ao segundo. A suspeita
é de que Fiegenbaum conseguiu
de Furtado a liberação de emenda para
o hospital. A PF identificou 1,07 milhão
de reais de dotações de Motta para
o hospital entre novembro de 2023
e janeiro de 2024. Falta saber se o deputado
estava a par da negociação de
seu assessor e se embolsou grana também,
algo a ser respondido com o aprofundamento
da investigação policial.


O caso que resvala em Motta é curioso.
Há uma espécie de “contrato de propina”
entre o lobista Fiegenbaum e o hospital.
Pelo acordo, Fiegenbaum embolsaria
6% do valor total de emendas obtidas
para o Ana Nery. No Ceará, também aparece
um porcentual: 15%. O responsável
pela liberação é o deputado Júnior Mano,
eleito em 2022 pelo PL e desde 2024 filiado
ao PSB. Emendas providenciadas por
Mano teriam virado caixa 2 e compra de
votos na eleição municipal do ano passado.
Foi o que denunciou, em setembro,
ao Ministério Público, a então prefeita
de Canindé, Rozário Ximenes. Segundo
o depoimento, recursos de emendas do
deputado direcionadas a algumas cidades
teriam sido desviados via licitações
fraudulentas, em um porcentual de 15%.
O dinheiro surrupiado teria financiado
campanhas de prefeitos, como a do candidato
da oposição ao grupo de Rozário
em Canindé. O operador do esquema seria
Bebeto Queiroz, eleito em Choró, filiado
ao PSB e aliado de Mano. E teria,
conforme a prefeita, 58 milhões para financiar
“colaboradores” em 51 das 158
cidades no estado.


A PF fez duas batidas para apurar a
denúncia de Rozário, uma em outubro,
a Mercado Clauso, outra em dezembro,
a Vis Oculta. Entre uma e outra, Queiroz
foi preso em caráter temporário. Depois
de solto, teve a prisão preventiva decretada
pela Justiça, mas fugiu. Nem ele nem
seu vice, Bruno Jucá Bandeira, tomaram
posse em Choró em 1º de janeiro. A cidade
tem sido governada pelo presidente da
Câmara de Vereadores. Em 14 de fevereiro,
o caso virou assunto do Supremo, por
decisão do juiz Gilmar Mendes. Motivo: a
participação do deputado Mano.


O esquema das emendas promete, de fato,
muitas emoções em 2025. E guarde um
nome, leitor: João Batista Magalhães. É lobista
e trabalhou com Gomes na liderança
do governo Bolsonaro no Congresso. •

CARTA CAPITAL

March 8, 2025

Folia S.A.

 

 

Os megablocos de celebridades dominam a paisagem, enquanto os responsáveis pela retomada do Carnaval de rua saem de cena


POR MAURÍCIO THUSWOHL 

Cantada em prosa, verso e teses
acadêmicas, a retomada
do Carnaval de rua no
Rio de Janeiro, símbolo da
redemocratização do País,
comemora dois importantes marcos em
2025. Lá se vão 40 anos da criação de blocos
carnavalescos emblemáticos, como
o Simpatia É Quase Amor, Suvaco do
Cristo e Barbas, entre outros, e 30 anos
do Carnaval que marcou a volta dos blocos
de rua ao posto de principal manifestação
popular carioca. As datas redondas
deveriam ser um convite à festa, mas
o cenário de crescente privatização do
Carnaval, com o predomínio de grandes
marcas e celebridades, aliado ao anúncio
do fim das atividades de agremiações
que habitam o coração do folião, faz com
que diversos representantes do setor
anunciem o fim de uma era.


A sensação de fim de ciclo aumentou
quando o quarentão Suvaco do Cristo
anunciou que encerrará as atividades
em 2026. Na sequência, o Imprensa Que
Eu Gamo, bloco criado por jornalistas há
exatos 30 carnavais, anunciou que faz este
ano seu último desfile. Para tristeza
dos cariocas, ambos engrossam um grupo
composto de outros nomes de muita
tradição, como o Escravos da Mauá, fundado
há 33 anos e que encerrou suas atividades
em 2022, e o Bloco de Segunda,
outro trintão, que no Carnaval de 2023
pendurou os tamborins.


As razões que levam ao fim de blocos
tradicionais e a maneira como o espaço
deixado por eles está sendo ocupado causam
apreensão. Nos últimos anos, a ascensão
dos chamados megablocos, eventos
que mobilizam dezenas de milhares
de pessoas, concentrou os investimentos
das principais marcas e empresas
nessa modalidade de desfile geralmente
capitaneada por cantores pop ou outras
celebridades. A onda começou em
2009 com o Bloco da Preta, da cantora
Preta Gil, e hoje há megablocos comandados
por Ludmila, Anitta, Pabllo Vittar,
Lexa e Juliette, entre outros.
Para piorar, uma novidade do Carnaval
carioca de 2025 são os blocos que levam
o nome de empresas ou têm seus
desfiles vinculados a ações de marketing.
Isso foi possível depois que a prefeitura

publicou uma norma que permite a outras
empresas, que não as mantenedoras
oficias do Carnaval do Rio, fazer contratos
de patrocínio com os blocos. Com isso,
o leque de “foliões” do mercado inclui
marcas de bebidas, redes de farmácias,
lojas de departamento, aplicativos de entrega
e até mesmo uma casa de criptomoedas.


As ações têm gosto duvidoso, como
a da loja de roupas que convida os integrantes
do bloco a comprar suas fantasias
na hora do desfile ou a da marca de
supercola que anuncia um bloco de fantasias
coladas, sem nenhuma costura.


“O dinheiro fala mais alto desde que a
prefeitura implantou esse novo modelo
de Carnaval em 2009, com a criação de
uma série de regras. O Poder Público passou
a entender os blocos de rua não como
uma manifestação espontânea, mas como
um grande e lucrativo evento”, observa
Tiago Ribeiro, pesquisador do Carnaval
e autor do livro Os Blocos do Carnaval
Carioca (Ed. Multifoco). Hoje, para serem
considerados oficiais, os blocos precisam
cadastrar-se seis meses antes do
Carnaval e atender a uma série de exigências
impostas por Corpo de Bombeiros,
Defesa Civil e Polícia Militar: “Gasta-se
muito dinheiro e a burocracia é enorme.
Os blocos que se cadastram junto à prefeitura
precisam tornar-se empresas para
lidar com todas essas questões”.


Presidente da Associação Independente
dos Blocos de Carnaval de Rua do Rio de
Janeiro (Sebastiana), a também pesquisadora
do Carnaval Rita Fernandes afirma
que a realidade foi mudando à medida que
a mídia descobriu os blocos, especialmente
após a entrada da TV Globo na folia: “Na

 época, foi interessante para a Sebastiana
fazer aquela parceria, porque o Carnaval
estava muito atrelado ao xixi, ao lixo. Precisávamos
mudar essa narrativa e mostrar
que o Carnaval trazia benefícios para a cidade
em termos de economia criativa e geração
de emprego e renda. Era uma pauta
que a gente queria, porque as associações
de moradores estavam se organizando
contra o Carnaval”. A cobertura de mídia
despertou o interesse de artistas, que
entenderam que o bloco era uma plataforma
comercial de marketing para alavancar
carreiras, e das empresas interessadas
em divulgar suas marcas e produtos:
“Uma coisa foi alimentando a outra”.


O cenário atual, diz Fernandes, é de
crescimento exagerado e perda da autenticidade.


“Tudo começou a se perder
quando cresceu demais. Vieram os
carnavais de São Paulo, Belo Horizonte,
de Brasília, todos no rastro do Carnaval
de rua do Rio. Hoje está desse jeito, com
marcas para tudo quanto é lado, produtoras
criando blocos, não é mais aquela
criação espontânea de grupos de amigos
que se encontram no botequim e resolvem
botar um bloco na rua.” A presidente
da Sebastiana avalia que vivemos o fim
das manifestações de rua como as conhecemos
nas últimas décadas: “Ter blocos
criados nas produtoras não é Carnaval.
Deixa de ser quando uma marca se apropria
completamente de uma tradição que
deveria ser espontânea e popular”.


Outra constatação é a mudança do
perfil do folião dos blocos, com o carioca
dando lugar aos turistas. Segundo a
Riotur, empresa municipal de turismo,
neste Carnaval são aguardados na cidade
até 10 milhões de turistas, dos quais 6
milhões afirmam querer participar diretamente
da folia. Ao considerar apenas o
calendário oficial da prefeitura, serão 482
desfiles de blocos, 29 a mais que no ano
passado, divididos por 37 dias em praticamente
todos os bairros da cidade.


O ambiente político no Rio também está
muito diferente daquele que marcou a
retomada dos blocos de rua: “Naquela ocasião,
era uma saudação da espontaneidade
e também como uma resposta ao fim
da ditadura e do período de restrição de
atividades ao ar livre, dos direitos de coletividade.


Os blocos surgem nesse espírito
pós-ditadura”, ressalta Ribeiro. O especialista
contesta ainda o conceito de retomada:

“Não houve exatamente uma retomada,
mas sim uma mudança profunda na
forma de encarar os blocos de rua. Isso se
deveu ao surgimento de alguns blocos na
Zona Sul que contavam com a participação
de importantes intelectuais do período,
que chamaram a atenção da imprensa
pelo seu formato, que se caracterizava pela
abolição do uso da corda que separava
a banda dos foliões, pela criação de sambas
próprios e pelo utilização de camisetas
temáticas, de uso não obrigatório, assinadas
por artistas plásticos renomados”.

Fundador do Barbas, Sérgio Henrique
Alvarez, o Tchecha, relembra o movimento
surgido há 40 anos: “No rastro do fim da
ditadura, começaram a surgir vários blocos:
Imprensa, Suvaco, Simpatia, Barbas,
Meu Bem e Carmelitas, entre outros. Todos
os dirigentes desses blocos cresceram
sob o peso do regime militar e eram progressistas.


O Carnaval de rua no Rio era
quase inexistente e, com o ambiente político
aliviado, as pessoas começaram a
se mobilizar para criar blocos. Acho que
o Simpatia foi o primeiro”. Nessas agremiações,
a tradição progressista se mantém:
o tema do Simpatia em 2025 é “Carnaval
Sem Anistia!”, e o do Barbas é “Jogando
a Pipa em Cima do Golpe Tabajara”.
Tchecha atribui o fim de blocos que
marcaram a retomada a diversos fatores:
“Nos últimos anos, a burocracia exigida
para os blocos aumentou muito. As pessoas
foram envelhecendo e aqueles blocos
que não criaram sucessores na direção
começaram a parar de sair”. Hoje, o
Barbas sobrevive com o que recebe através
da Sebastiana e complementa com a

venda de camisas. “Mas isso não gera o
suficiente para as necessidades. O problema
é que o aumento do número de
blocos faz com que os custos com carro
de som, músicos da bateria e segurança
também aumentem a cada ano.”


Não é só a Sebastiana que organiza os
blocos do Rio. Nos últimos anos, outras
associações, como a Coreto e a Desliga, representam
o polo que se opõe às regras
impostas pela prefeitura e aos rumos que
vem tomando o Carnaval carioca. Um dos
que estão na linha de frente da “resistência”,
como se define esse setor, é o agitador
cultural e mestre de bateria Sérgio Monteiro,
também, conhecido como Mestre
Serginho. Morador do Méier, tradicional
bairro da Zona Norte carioca, ele tem se
dedicado a colaborar na construção de
duas novas agremiações criadas no ano
passado: o La Belle Bloco, formado por
músicos e poetas, e o Lança-Perfume, em
homenagem à cantora Rita Lee: “Faço oficinas
todos os sábados, as pessoas chegam
sem saber segurar o instrumento e saem
tocando. A gente toca funk, forró, marchinha,
ijexá, maculelê, ciranda. Fazemos

Carnaval é do povo, e resistimos à privatização
neoliberal do espaço público”.


Monteiro afirma que o atual processo
de mercantilização e privatização dos blocos
“traz segregação social ao povo periférico,
de favela, preto e pobre”. Ele diz que
o movimento de resistência visa “garantir
ao folião que não tem dinheiro o direito
de poder brincar na rua, ao músico de
poder levar sua arte, ao ambulante de poder
vender sua água, sua cerveja”. E ressalta
que, mesmo com a constante repressão
da prefeitura, a existência dos blocos
ditos clandestinos é amparada pela lei:
“Se o bloco não tiver autorização, a guarda
vem para tirar, apesar do artigo 5º da
Constituição Federal, que garante o direito
de manifestação cultural espontânea.


A única coisa que precisamos legalmente
fazer é dar um aviso prévio, não fechar a
rua, não passar das 22 horas, coisas assim.
Isso está também no artigo 23 da Constituição
do Estado do Rio de Janeiro”.


Rita Fernandes afirma não ver no curto
prazo o surgimento de outro modelo de
financiamento do Carnaval de rua: “Eu
acho que só mudará essa tendência quando
o Carnaval ficar tão comercial, a ponto
de perder o interesse e a naturalidade”. Ela
avalia que isso já começa a acontecer no
Rio: “O carioca não adere muito a esse modelo,
mas é difícil fazer uma previsão. Já tivemos
muitos modelos que foram se alternando
pelas próprias mudanças orgânicas
da sociedade, da política, do mercado, das
marcas. O Carnaval vai se modificando,
então nada é para sempre”. A presidente
da Sebastiana faz, porém, um alerta: “Se
não encontrarmos um modelo e não firmarmos
pé na posição de que precisamos
manter nossas tradições, nossas cores e
nosso fazer, vamos deixar o mercado engolir
a todos e matar o Carnaval de rua”.•

 CARTA CAPITAL

Dispense as flores

 

 


Diante do avanço do movimento conservador das tradwives, precisamos resgatar o sentido original do Dia da Mulher


POR GABRIELA MOCH SCHMIDT

Nosso 8 de março já não tem
o mesmo significado daquele
mobilizado por mulheres
que lutavam por
uma sociedade mais justa
no início do século passado. Hoje, flores,
bombons e parabéns, aliados a mensagens
que ressaltam nossa feminilidade ou elogiam
nossa “força”, predominam os discursos
que rodeiam essa data. Parece que
utilizar o Dia Internacional da Mulher para
falar sobre equiparação salarial, reivindicar
creches para todas as crianças ou
discutir direitos reprodutivos caiu em desuso.


O feminismo – e aqui excluímos o
“feminismo” liberal, porque entendemos
que um feminismo que atende uma parcela
tão pequena das mulheres não é verdadeiramente
feminista – virou démodé.
Na moda estão as tradwives. Impulsionadas
pela onda conservadora e fascista
que cresce ao redor do mundo, as esposas
tradicionais abandonam suas carreiras
para servir à família. Nos moldes da
moral cristã, elas são submissas a seus
companheiros provedores e devem permanecer
em casa: seu papel é limpar, cozinhar
e cuidar dos filhos e do marido,
entre outras atividades domésticas. Tudo
isso, claro, sem perder a “beleza” – segundo
os parâmetros da estética da mulher
branca e de classe média dos EUA
dos anos 1950. O movimento, muito forte
nas redes sociais, nos alerta sobre o modo
como a crescente onda ultraconservadora
deseja que as mulheres ajam.


Há, portanto, uma disputa em torno
do signo “mulher”. De um lado estamos
nós, a propor que ser mulher é resultado
de um processo socio-histórico. Do outro
lado estão eles, que consideram a mulher
como inerentemente submissa, sensível e
cuidadosa. Da mesma forma, disputam-se
os significados em torno do Dia Internacional
da Mulher. Nessa disputa, os grupos
dominantes apagam o histórico de
luta por direitos. Ora, se não podem extinguir
a data, oficializada pela ONU em
1975, podem alterar seu significado. E o
8 de março transformou-se em um bom
dia para presentear as mulheres, exaltando
sua essência “feminina” e, ao mesmo
tempo, “guerreira”. A luta feminista aca-

bou sendo reduzida a uma mercadoria.


Com isso, tentam apagar a origem operária
da data. Não devemos nos esquecer,
porém, da grande passeata das mulheres
em 26 de fevereiro de 1909, em Nova York,
na qual cerca de 15 mil mulheres saíram
às ruas em busca de melhores condições
de trabalho. Ou da alemã Clara Zetkin,
que propôs, durante o II Congresso Internacional
de Mulheres Socialistas, em
1910, a criação de um Dia Internacional
da Mulher e de uma jornada de manifestações
sindicais e socialistas dedicadas
aos direitos das mulheres. Ou, ainda, das
operárias russas que, em 23 de fevereiro
de 1917, pelo antigo calendário russo – ou
8 de março de 1917, pelo calendário gregoriano
– saíram às ruas para protestar
contra a fome e contra a Primeira Guerra
Mundial. A data foi adotada pelos soviéticos
como o Dia da Mulher Heroica
e Trabalhadora, o que foi seguido posteriormente
por diversos países.


É a partir de todos esses movimentos
sociais, liderados por mulheres que
lutavam por melhores condições,
sobretudo trabalhistas, que o 8 de março
se consolida como o Dia Internacional
das Mulheres. Apesar de o movimento
ter iniciado há mais de um século e de
ter sido oficializado há 50 anos, ainda
não superamos algumas daquelas
reivindicações e vivemos em uma
sociedade profundamente desigual.


De acordo com o 2º Relatório de
Transparência Salarial e Critérios Remuneratórios,
divulgado pelo Ministério
do Trabalho e Emprego em 2024, as
mulheres ainda recebem 20,7% a menos
que os homens em empresas com cem ou
mais empregados. A disparidade é ainda
mais acentuada quando acrescentamos o
critério racial: mulheres negras têm um
salário médio 50,2% inferior ao salário de
homens não negros. A igualdade salarial,
vale lembrar, é prevista pela CLT desde

1943, mas as empresas não a cumprem.


Além da remuneração salarial desigual,
há o acúmulo da dupla jornada de
trabalho que recai sobre as mulheres.
Conforme pesquisa da Infojobs realizada
em 2024, 83% das mulheres acumulam a
jornada de trabalho remunerado com as
tarefas domésticas, e quase metade delas
(45%) não recebe ajuda do parceiro ou
da rede de apoio. As novas tradwives estão
aí para nos lembrar de que o cuidado
doméstico não é visto como um trabalho,
mas como uma “predestinação” feminina.
Para piorar, 70% das participantes declararam
ter perdido a oportunidade de
emprego devido ao gênero.


Outro dado que podemos incluir nessa
lista é o do assédio no ambiente de trabalho.
Um estudo conduzido pela consultoria
Deloitte no ano passado mostrou
que uma em cada quatro mulheres
já sofreu assédio durante o atendime

to a clientes ou consumidores, além dos
assédios cometidos pelos próprios colegas
de trabalho. Em resumo, mais dificuldades
para conseguir emprego, salário
menor, jornada de trabalho maior e
ambiente inseguro.


É com um olhar para a nossa história
combativa e outro para nossas reivindicações
atuais que precisamos urgentemente
resgatar o Dia Internacional das
Mulheres como um dia de luta pelos direitos
das trabalhadoras – e aqui incluímos
não apenas aquelas que trabalham
fora, mas também as que cuidam da casa.
O discurso do “não nos dê flores, nos
dê respeito” pode até parecer batido ou
mesmo clichê, mas vem perdendo força
em uma sociedade que caminha para o
ultraconservadorismo de direita.


Nesse sentido, apesar de nos parecer
óbvia a razão de existir do Dia Internacional
das Mulheres, não há consenso em
relação a esse tema. Numa sociedade cor-

rompida pelo conservadorismo cristão
e pela ascensão do fascismo, é cada vez
mais necessário combater concepções
reacionárias sobre o papel da mulher em
nossa sociedade. Além de disputarmos os
discursos, também precisamos ocupar
espaços. Há, no Brasil e no mundo, passeatas
e manifestações no dia 8 de março,
assim como coletivos e movimentos que
se organizam para combater o patriarcalismo
e lutar por igualdade durante todo
o resto do ano. Este é um convite para todas
e todos que acreditam em um mundo
mais justo: a hora é agora! •


*Gabriela Moch Schmidt é licenciada em Letras
e mestra em Linguística Aplicada pela UFRGS.
Atualmente, é professora na rede municipal de

Canoas (RS) e integrante do Instituto Cultiva. 

 

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