AO CONTRÁRIO DE OUTROS ESCÂNDALOS FABRICADOS, A FARRA DAS EMENDAS TEM TUDO PARA SE CONVERTER NA MAIOR INVESTIGAÇÃO DA HISTÓRI A
p o r ANDR É BA R ROCA L
Em março de 2020, o
empresário Josival
Cavalcanti da Silva,
vulgo Pacovan,
acompanhado de
dois amigos, invadiu
com sua caminhonete
Hilux a garagem de uma casa em São
José de Ribamar, terceira maior cidade
do Maranhão, com 240 mil habitantes.
Deixou um bilhete com seu nome e
seu telefone. Giovani dos Santos Costa,
o caseiro, entregou ao patrão, Eudes
Sampaio, prefeito do município. “Meu
deus, como é que esse cara tá aqui? Na
minha casa! Como ele descobriu onde eu
moro? Eu vou chamar a polícia”, reagiu
Sampaio, conforme relato de uma advogada
e de uma funcionária da prefeitura.
A invasão foi uma tentativa de arrancar
do prefeito 1,6 milhão de reais.
A quantia equivalia a 25% dos 6,6 milhões
de reais em emendas parlamentares
destinadas a São José de Ribamar, entre
dezembro de 20219 e abril de 2020,
por três deputados federais do PL: Josimar
do Maranhãozinho e Pastor Gil, ambos
do estado, e Bosco Costa, de Sergipe.
Pacovan cobrava a propina em nome do
trio. Dois meses antes da invasão da garagem,
o empresário tinha estado com
Sampaio na prefeitura, acompanhado de
outro político, Antonio José Rocha Silva,
que depois confirmaria à Polícia Federal
a reunião. Pacovan achava que o prefeito
não queria pagar a propina, pois outro
grupo político, que não aquele de Josimar
e associados, teria tentado convencer
Sampaio de que era o verdadeiro padrinho
das emendas. “Quero desmascarar
esse cara que tá dizendo que é dele (a verba
das emendas). Ele vai pegar uma bala
na cara. Esse vagabundo. Eu fiquei ontem
até meia-noite lá com o prefeito. Lá
no Ribamar. Entendeu?”, disse Pacovan
a Josimar via celular em 30 de janeiro de
2020. “Não posso ir na casa dele (Sampaio).
É perigoso, pois pode ter câmeras
para nos filmar… Não podemos ir em escritório
dele”, respondeu o deputado.
Sampaio denunciou a extorsão à PF
naquele ano. Agora, os três parlamentares
estão prestes a se tornar réus por corrupção
passiva e organização criminosa.
No julgamento iniciado em 28 de fevereiro
e previsto para terminar na próxima
terça-feira 11, dois dos cinco juízes da
Primeira Turma do Supremo Tribunal
Federal votaram para acatar a denúncia
da Procuradoria-Geral da República.
Pacovan escapou por estar no cemitério.
Foi assassinado à bala em junho de
2024, e a suspeita é que tenha sido justamente
por dívida não paga. Josimar, Gil
e Costa serão os primeiros réus no que
tem sido classificado como o maior caso
de corrupção da história do País.
Assim gente graúda em Brasília vê o esquema
das emendas parlamentares, em
especial no formato “orçamento secreto”.
O magistrado Flávio Dino, do Supremo,
usa palavras superlativas em decisões
contrárias à farra das emendas. “É de clareza
solar que jamais houve tamanho desarranjo
institucional com tanto dinheiro
público em tão poucos anos. Com efeito,
somadas as emendas parlamentares entre
2019 e 2024, chegamos ao montante
pago de R$ 186,3 bilhões de reais”, escreveu
em 2 de dezembro do ano passado, ao
impor restrições à liberação dos recursos.
No período citado por Dino havia 190
bilhões de reais previstos em lei para
emendas. Do total, 186 bilhões foram empenhados,
primeira etapa de um gasto público,
e 158 bilhões, efetivamente pagos,
conforme um site do Senado, o Siga. Um
terço dos valores correspondeu a emendas
RP 9, o orçamento secreto puro-sangue, e
RP 8, utilizadas para driblar o fim do segredo
decretado pelo STF em 2022. “Temos
a gravíssima situação em que bilhões
de reais do orçamento da Nação tiveram
origem e destino incertos e não sabidos,
na medida em que tais informações, até
o momento, estão indisponíveis no Portal
da Transparência ou instrumentos equivalentes”,
anotou Dino em 2 de dezembro.
Naquela decisão, o juiz destacou haver
“malas de dinheiro sendo apreendidas em
aviões, cofres, armários ou jogadas por janelas,
em face de seguidas operações policiais
e do Ministério Público”. São esquemas
que não envolvem apenas congressistas.
Uma rede de lobistas, empresários
e servidores públicos chafurda na lama.
Investigar os malfeitos com verbas
de emendas é “prioridade” da PF
e há uma “equipe forte” para o caso,
relata um delegado, que acrescenta:
haverá muitas operações
de rua nos próximos meses. Ele estima
haver entre 15 e 20 investigações em curso
– cada uma pode ter mais de um congressista
envolvido – e fareja um escândalo
de proporções inéditas no País, embora
a mídia ainda não tenha enxergado o
tamanho da encrenca. Segundo esse policial,
a PF quer descobrir como foi montado
o esqueleto das emendas e do orçamento
secreto e quem são os personagens
políticos principais da tramoia, ou
seja, os cabeças. Quer dizer, aquele acordo
entre governo e Congresso, validado
por Dino em 26 de fevereiro, para o retorno
das liberações de recursos pode até
ter deixado muita gente aliviada, mas por
pura precipitação ou autoengano.
Um inquérito policial aberto em dezembro
desnuda o interesse da PF em chegar
às vísceras do esquema. É a impressão
do deputado Glauber Braga, do PSOL do
Rio de Janeiro, ouvido na investigação em
fevereiro pelo delegado Marco Bontempo.
A apuração começou por ordem de Dino,
diante de fatos levados ao conhecimento
do Supremo pelo PSOL e Novo. Em 12
de dezembro de 2024, Arthur Lira, então
presidente da Câmara, fechou todas as
comissões temáticas sob o argumento de
que os deputados tinham de se dedicar ao
pacote governista de controle de gastos.
No mesmo dia, 17 líderes partidários enviaram
ao Palácio do Planalto, por obra de
Lira, um ofício sigiloso. Diziam ratificar
que as comissões temáticas tinham aprovado
4,2 bilhões de reais para 5.449 emendas
e tomado a decisão com base em critérios
estabelecidos pelo Supremo. O PSOL
e o Novo alegam que o ofício foi uma farsa
inventada para materializar a vontade
e o poder de Lira e levaram o caso ao STF.
A desconfiança é reforçada por uma denúncia
feita em novembro pelo veterano
deputado Zé Rocha, do União Brasil da
Bahia. Rocha, com mandato desde 1995,
era presidente da Comissão de Desenvolvimento
Regional. Declarou à revista
Piauí que Lira mandava a lista de emendas
que a comissão deveria aprovar e que
quem não a aceitasse seria destituído do
cargo. O parlamentar prestou depoimento
à PF em fevereiro e confirmou o que havia
dito. Braga depôs também por duas vezes.
Na segunda, para reafirmar o relato da
primeira sobre uma cidade na terra de
Lira, Rio Largo. Nessas ocasiões, o psolista
ficou com a impressão de que a PF
quer fazer a autópsia do esquema.
Rio Largo é a terceira maior cidade de
Alagoas, com 93 mil habitantes, daí sua
importância política. De 2019 a 2022, tempos
de Jair Bolsonaro, recebeu 90 milhões
de reais em emendas, dos quais 19 milhões
carimbados com o nome de Lira. O resto,
70 milhões, não tem digitais, segundo Braga,
por causa do orçamento secreto então
vigente. O psolista contou à PF ter descoberto
que a cidade foi a mais agraciada
com o dinheiro daquele pacote de 4,2 bilhões
de reais. A quantia, segundo ele, foi
direcionada pela Comissão de Turismo da
Câmara. Em 2024, não havia nenhum ala-
goano na comissão. Conclusão: o envio dos
19 milhões tinha sido uma ordem de Lira.
Para Braga, Rio Largo não tem importância
apenas política para Lira. Teria financeira
também. O prefeito entre 2017 e
2024 era Gilberto Gonçalves, aliado e correligionário
de Lira no PP. Seu sucessor
também é pepista. Na véspera de Lira deixar
o comando da Câmara, em 31 de janeiro
passado, Gonçalves publicou nas redes
sociais uma foto de ambos abraçados. Faz
sentido. Seu prontuário criminal é recheado,
e Lira estrela uma das histórias. Na
primeira vez que foi em cana, o deputado
foi junto. Era 2007, período de uma investigação
da PF sobre desvio de verba da Assembleia
Legislativa alagoana. Os dois tinham
sido parlamentares estaduais pelo
PMN entre 2003 e 2006, período investigado
pela Operação Taturana. Durante as
apurações, a polícia gravara um telefonema
de Gonçalves para um funcionário da
área de recursos humanos da Assembleia:
“Quero meu dinheiro. E não venha com
desconto de INSS, não, porque isso é dinheiro
roubado”. Lira foi condenado em
duas instâncias e só não se tornou ficha-
-suja graças a uma liminar de 2018 do Superior
Tribunal de Justiça. Gonçalves foi
preso mais três vezes. Em 2010, por ameaçar
de morte um funcionário que o havia
denunciado à Justiça trabalhista. Em
2014, por facilitar a fuga de um motorista
acusado de crime eleitoral. E em 2022,
em uma investigação da PF sobre dinheiro
recolhido em um beco na cidade de Rio
Largo e levado à prefeitura. Nome da operação:
“Beco da Pecúnia”.
Lira tirou proveito político das emendas
em geral e do orçamento secreto em
particular ao se tornar presidente da Câmara
em 2021, mas não participou da arquitetura
legal que fez explodir a verba
para dotações parlamentares de 9 bilhões
de reais em 2015 para 47 bilhões
em 2024. O desenho foi levado adiante
entre 2015 e 2019. Primeiro por Eduardo
Cunha, presidente da Câmara de 2015
a 2016. Depois, por Davi Alcolumbre, comandante
do Senado em 2019 e 2020 e de
volta ao posto por mais dois anos.
Há pistas de que o governo
Bolsonaro se valeu dessa
arquitetura para angariar
apoio no Congresso.
E o motivo chama-se
Eduardo Gomes, atual vice-presidente
do Senado. Gomes é do PL de Tocantins.
A PF esbarrou no nome dele ao investigar
Josimar Maranhãozinho. Numa operação
batizada de “emendário”, apreendeu o celular
de um assessor de Maranhãozinho
na Câmara, Carlos Roberto Lopes. No
aparelho havia conversas de Lopes, em
2022, com um contato identificado como
“Lizoel assessor”. Lizoel Bezerra foi motorista
na campanha de Gomes ao Senado.
1,3 milhão de reais. Numa delas, encaminhou
a foto de uma conversa escrita com
o senador. “O cara mandou?”, perguntava
Gomes a Lizoel. Para a PF, “mandou”
refere-se a dinheiro. O encontro fortuito
de pistas levou o delegado Roberto Santos
Costa a informar à Procuradoria-Geral.
Não se sabe se o órgão tomou providências
em relação ao senador.
Gomes foi líder do governo Bolsonaro
no Congresso de outubro de 2019 a dezembro
de 2022. É uma função na qual
há muita negociação baseada em dinheiro
do orçamento. Seis dias depois de o senador
assumir a liderança, a área do Palácio
do Planalto responsável à época
por lidar com o Congresso, a Secretaria
de Governo, contratou uma funcionária
chamada Cristiane Leal Sampaio. Em junho
de 2020, Cristiane foi trabalhar com
Gomes na liderança. Nas investigações
sobre o deputado Maranhãozinho, a PF
descobriu um depósito de 5 mil reais na
conta da funcionária, realizado em março
de 2022 por um empreiteiro maranhense,
Eduardo José Barros Costa, o
Eduardo DP, sócio oculto de uma empresa,
a Construservice, metida em estripulias
com dinheiro de emendas na estatal
Codevasf. Cristiane trabalha desde agosto
de 2023 no Ministério do Turismo.
Oministro das Comunicações,
Juscelino Filho,
também é candidato a virar
réu no Supremo por
suspeita de aprontar com
emendas no governo Bolsonaro. Ele é
deputado pelo Maranhão desde 2015.
Pertence ao União Brasil. Em junho do
ano passado, a PF concluiu uma investigação
sobre verbas enviadas ao município
de Vitorino Freire. Na condição de
deputado, Juscelino Filho separou recursos
para a estatal Codevasf financiar
a obra. A prefeita da cidade era sua irmã,
Luanna Rezende. A empreiteira da obra
foi a Construservice. O montante teria
saído de Brasília via Codevasf, chegado a
Vitorino Freire e uma parte ido parar no
bolso da família do atual ministro, conforme
a PF. Em setembro de 2023, ele foi
alvo de uma operação, a Benesse, que provocou
o afastamento temporário de sua
irmã da prefeitura e o bloqueio de 835 mil
reais da família. Os investigadores apontam
crimes de corrupção passiva, lavagem
de dinheiro e formação de quadrilha.
Só a Procuradoria tem, no entanto,
licença para acusar Juscelino Filho ao
Supremo. Até agora, não se sabe a posição
de Paulo Gonet.
O partido do ministro é protagonista de
um dos mais vistosos casos de corrupção
com emendas na mira da PF. Em dezembro,
a polícia realizou a Operação Overclean,
que apura fraudes no Departamento Nacional
de Obras Contra a Seca, o Dnocs,
na Bahia. Na semana anterior à batida,
os federais haviam monitorado um voo
de Salvador a Brasília com o empresário
Alex Parente, o ex-chefe do departamento
no estado Lucas Lobão, e 1,5 milhão de reais.
Os dois deram versões conflitantes para
a bolada. Parente alegou que ela provinha
de vendas de equipamentos, enquanto
Lobão afirmou desconhecer a existência
da grana. A operação atingiu por tabela
o atual segundo-vice-presidente da Câmara,
Elmar Nascimento, do União Brasil
da Bahia. Os agentes encontraram no cofre
de outro investigado, o empresário Marcos
Moura, conhecido como o Rei do Lixo, um
contrato de venda de imóvel a Nascimento.
Por isso, o caso acabou remetido ao Supremo.
Está aos cuidados do juiz Kassio
Nunes Marques, indicado por Bolsonaro.
AOverclean foi a última operação
da PF a vasculhar o
tema em 2024. A primeira
de 2025 chamou-se
“Emenda Fast” e atingiu
o gabinete do deputado gaúcho Afonso
Motta, do PDT. Em 13 de fevereiro, o chefe
de gabinete de Motta, Lino Rogério da
Silva Furtado, foi afastado do cargo e alvo
de buscas, com autorização de Dino. O
congressista demitiu-o dias depois. A polícia
chegou a Furtado ao botar lupa em
um lobista, Cliver André Fiegenbaum.
A maior parte da papelada do caso está
sob sigilo, por isso não se sabe o motivo
de a PF estar no encalço de Fiegenbaum.
O fato é que foi encontrada no celular
do lobista uma espécie de planilha
com três notas fiscais de pagamentos
recebidos de um hospital no Rio Grande
do Sul, o Ana Nery, “referente a captação
de recursos através de indicações
de emendas”. As notas, que vão de julho
de 2023 a fevereiro de 2024, somam 509
mil reais. A PF achou ainda conversas de
Fiegenbaum com Furtado sobre o pagamento
do primeiro ao segundo. A suspeita
é de que Fiegenbaum conseguiu
de Furtado a liberação de emenda para
o hospital. A PF identificou 1,07 milhão
de reais de dotações de Motta para
o hospital entre novembro de 2023
e janeiro de 2024. Falta saber se o deputado
estava a par da negociação de
seu assessor e se embolsou grana também,
algo a ser respondido com o aprofundamento
da investigação policial.
O caso que resvala em Motta é curioso.
Há uma espécie de “contrato de propina”
entre o lobista Fiegenbaum e o hospital.
Pelo acordo, Fiegenbaum embolsaria
6% do valor total de emendas obtidas
para o Ana Nery. No Ceará, também aparece
um porcentual: 15%. O responsável
pela liberação é o deputado Júnior Mano,
eleito em 2022 pelo PL e desde 2024 filiado
ao PSB. Emendas providenciadas por
Mano teriam virado caixa 2 e compra de
votos na eleição municipal do ano passado.
Foi o que denunciou, em setembro,
ao Ministério Público, a então prefeita
de Canindé, Rozário Ximenes. Segundo
o depoimento, recursos de emendas do
deputado direcionadas a algumas cidades
teriam sido desviados via licitações
fraudulentas, em um porcentual de 15%.
O dinheiro surrupiado teria financiado
campanhas de prefeitos, como a do candidato
da oposição ao grupo de Rozário
em Canindé. O operador do esquema seria
Bebeto Queiroz, eleito em Choró, filiado
ao PSB e aliado de Mano. E teria,
conforme a prefeita, 58 milhões para financiar
“colaboradores” em 51 das 158
cidades no estado.
A PF fez duas batidas para apurar a
denúncia de Rozário, uma em outubro,
a Mercado Clauso, outra em dezembro,
a Vis Oculta. Entre uma e outra, Queiroz
foi preso em caráter temporário. Depois
de solto, teve a prisão preventiva decretada
pela Justiça, mas fugiu. Nem ele nem
seu vice, Bruno Jucá Bandeira, tomaram
posse em Choró em 1º de janeiro. A cidade
tem sido governada pelo presidente da
Câmara de Vereadores. Em 14 de fevereiro,
o caso virou assunto do Supremo, por
decisão do juiz Gilmar Mendes. Motivo: a
participação do deputado Mano.
O esquema das emendas promete, de fato,
muitas emoções em 2025. E guarde um
nome, leitor: João Batista Magalhães. É lobista
e trabalhou com Gomes na liderança
do governo Bolsonaro no Congresso. •
CARTA CAPITAL