Gaudêncio Torquato 
O Estado de S.Paulo - 29/08/10
A  galhofa, o deboche, o toque irreverente são traços marcantes do caráter  nacional. Quando represados por uma engrenagem de normas e proibições,  sempre encontram o jeitinho das águas e acabam se infiltrando nas  frestas das rochas para seguir seu fluxo. A imagem vem a propósito da  proibição de usar o humor para caricaturar a política, neste momento em  que candidatos se apresentam à avaliação do povo, que escolherá em  outubro os novos quadros da democracia representativa. O impedimento  abarca conceitos como "trucagem, montagem ou outro recurso de áudio e  vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato,  partido ou coligação". Ao fim e ao cabo, trata-se de impor sanções aos  humoristas.
A  simples comparação entre passado e presente mostra que o atual momento  político-institucional tem imposto freios à criatividade. Basta um  rápido olhar no ciclo dos governantes que habitaram a República no  Catete. Foram figuras emolduradas pelos humoristas da época. A  historiadora Isabel Lustosa apresenta a galeria que começa com o Biriba  (Prudente de Moraes), passando pelo Patriarca do Baranhão (Campos  Sales), Papai Grande (Rodrigues Alves), Tico-Tico (Afonso Pena), Moleque  Presepeiro (Nilo Peçanha), Dudu e a Urucubaca (Hermes da Fonseca), Tio  Pita (Epitácio Pessoa), Seu Mé (Artur Bernardes), Rei da Fuzarca  (Washington Luis), chegando a Gegê (Getúlio Vargas) e JK. O cotidiano  dos governantes era satirizado por um conjunto de revistas e jornais  ilustrados. Mesmo perfis carrancudos aguentavam o tranco. Getúlio,  então, era muito gozado pela vontade de se perpetuar no poder. Em  outubro de 1945, por exemplo, botava-se em sua boca a piada: "Meu  candidato é o Eurico; mas, se houver oportunidade, Eu Fico."
Qualquer  pedaço de nossa História registra criativa contribuição do humor como  ferramenta de crítica social. É verdade, porém, que ele tem perdido  substância, de um lado, porque a política se distanciou da sociedade e,  de outro, porque o próprio corpo legislativo, para salvaguardar a  imagem, procurou esculpir um conjunto de normas para restringir a  semântica e a estética da arte humorística. Sob a hipótese de que o  chiste possa embalar perfis com o celofane da desmoralização, os  legisladores acabaram criando uma camisa de força que delimita o espaço  criativo de uma arte que satiriza o universo político desde a Idade  Média. O paradoxo é inevitável: em plena sociedade da informação, sob o  escudo dos direitos individuais e coletivos, entre eles o de liberdade  de manifestação do pensamento, cerne da democracia, apertam-se os elos  da expressão artística. Um absurdo dentro do Estado democrático. Por que  orientação tão canhestra tem assento na mesa central de nossa  democracia? Pela simples razão de que os representantes se valem da  pletora dos direitos da cidadania para apontar prejuízos ao seu conceito  ao se verem desenhados nas telas do humor. Seu argumento é de que os  pincéis tornam alguns nomes "ridicularizados", quebrando-se a harmonia  da igualdade para todos.
Tal  visão não resiste a uma análise. Há mecanismos de defesa para quem se  sinta ofendido na honra pessoal. Afora a legislação eleitoral, existem  as legislações penal e cível, que podem ser avocadas por quem se achar  injustiçado. Ademais, vale lembrar que o objeto da arte humorística não é  a infâmia ou a injúria, mas a graça, a brincadeira, a descontração,  elementos que conduzem as audiências ao universo diversionista. Neste  ponto, retorna-se à contradição: quanto mais a sociedade organizada  avança em sua luta por igualdade de direitos, mais se expandem as  restrições ao universo da locução. Se cada grupamento quiser impor um  sistema próprio de regras para determinar o que entende por direitos,  acabaremos por ter um arcabouço capenga em torno da defesa social. O  escopo da igualdade e da cidadania não se forma a partir de restrições,  numa banda, e ganhos corporativos, noutra. A defesa sobre "o que é  politicamente correto" soçobra quando gera, em outra esfera,  consequências incorretas. Numa sociedade democrática, o direito ao riso  não pode ser contido pela defesa da mordaça.
Voltemos  ao passado. Antonio Carlos Magalhães, governador da Bahia, perguntou um  dia a Jânio: "E aquela história de que o senhor gostava de ver filmes  de bangue-bangue nas madrugadas de Brasília para aliviar as tensões do  governo, é verdade?" Jânio respondeu: "É verdade, ficava até as 3 da  manhã. Papapapapa... para ter a sensação de estar matando  parlamentares." Hoje, uma história assim seria impensável. Nem mesmo o  idolatrado Lula, um contador de causos, teria coragem de fazer tal  analogia.
P.  S.: A decisão do ministro Carlos Ayres Britto, do STF, de suspender a  proibição do humor na eleição merece aplausos. Aguardemos o exame do  mérito do caso em plenário.
