Com instituições sem recursos e desassistidas pelo poder público, a situação no País beira a tragédia
Por Eduardo Nunomura e Jotabê Medeiros
A bocarra aberta do Museu do Amanhã, da qual, chova ou faça sol, escapa uma fila de gente esperando para entrar, parece atestar um horizonte plácido na vida dos museus brasileiros. Com orçamento de 32 milhões de reais, a instituição carioca tornou-se o museu mais procurado do País, com 1,5 milhão de visitantes, deixando para trás o Museu da Imagem e do Som (MIS-SP, com 446 mil), o Museu de Arte de São Paulo (Masp, com 408 mil) e o Museu de Arte do Rio (MAR, com 404 mil). Supera até o público somado de mais de 30 instituições federais sob responsabilidade do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), ente governamental, que tiveram juntas 977 mil visitas no último ano.
Mas a opulência do Museu do Amanhã, projeto midiático das Organizações Globo, é falaciosa. A situação dos museus nacionais beira a tragédia em instituições como o Museu do Crato, no Ceará, que está em vias de colapso por conta de furto de peças. Doze museus foram fechados no último ano, segundo o cadastro de informações do Ibram. A maior parte dos museus federais não possui licenciamento do Corpo de Bombeiros nem alvarás municipais de funcionamento.
Uma das mais importantes instituições federais, o Museu Nacional de Belas Artes , no Rio, sofreu significafiva queda de público em 2016. O museu informou que foi “ em virtude das obras de implantação do VLT na Cinelândia”. Em São Paulo, terra de instituições culturais queimadas, o Museu da Língua Portuguesa, destruído por um incêndio em 2015, só teve obras de reconstrução retomadas em dezembro de 2016.
A questão financeira põe a faca no pescoço de pequenas instituições como o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), do Rio, que há 12 anos divulga o patrimônio cultural africano e afro-brasileiro. O IPN informou que só tem como se manter até o fim do mês. Se não ocorrer um milagre, terá de encerrar atividades em abril. “A situação torna-se mais delicada por estarmos em pleno desenvolvimento de uma pesquisa arqueológica na nossa sede”, diz a diretora do museu, Ana Maria de La Merced dos Anjos.
Mesmo museus privados, como a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, sofrem com a redução de patrocínios e têm de retrair atividades para enfrentar situações delicadas. “Infelizmente, desde agosto de 2016 estamos abrindo apenas dois dias por semana”, informou a assessoria de comunicação da fundação.
O número de museus inaugurados caiu de 45 em 2014 para 17 em 2016. O menosprezo é generalizado. Houve queda de 16% nos investimentos nas instituições no ano passado, e diminuíram em 70% os editais de fomento e financiamento da política de museus.
Há 41 museus com processos de declaração de interesse público em aberto no Ibram, à espera da definição do governo. Essa declaração é o equivalente, para os museus, ao tombamento para o patrimônio histórico. Os museus dependem desse documento, definido pelo Estatuto de Museus, lei sancionada em 2009, para abrir frentes de patrocínios. Mas não há prazo para a concessão.
Angelo Oswaldo, ex-presidente do Ibram e do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) e hoje secretário de Cultura de Minas Gerais, afirma que o esvaziamento das políticas museológicas não pode ser atribuído à crise econômica. “Sabendo-se que o Ministério da Cultura foi extinto e recriado sob constrangimento, logo ampliado pelo escândalo da saída do ministro Marcelo Calero, o tratamento que o governo confere aos assuntos culturais não vai além da possibilidade de alocar para um nome da base aliada mais um assento ministerial. Daí o declínio da política nacional de cultura”, analisa.
Tanto o Iphan quanto o Ibram estão em estado de penúria. A última injeção de recursos foi na gestão da ministra Marta Suplicy, que se valeu de verbas de patrocínio destinadas à Copa do Mundo para assegurar dotações para museus em instalação ou restauro. Passada a Copa, o interesse minguou. “Não há possibilidade de início de obras de restauração de monumentos ou implantação, reforma e aprimoramento de museus, por falta de orçamento do ministério e por falta de estratégia política de captação de recursos”, diz Oswaldo.
Segundo análise de diversos servidores de museus ouvidos por CartaCapital, o Ibram, ligado ao Ministério da Cultura, está mais do que sem ação: não tem projetos e não consegue equacionar questões simples, como a execução orçamentária. O governo libera a verba no fim do ano, sem tempo para que as licitações ocorram (principalmente se alguma empresa entra com recurso). No ano retrasado, o Ibram lançou um edital para a modernização de museus. Um projeto apresentado pelo Instituto de Arqueologia Brasileira, em Belford Roxo, não obteve resposta. Os responsáveis apresentaram o mesmo projeto pela Caixa Econômica Federal e conseguiram recursos. Servidores de museus questionam a criação e a eficácia do Ibram, dizendo que foi uma ação que denota mais ambição do que pragmatismo dos governos Lula e Dilma.
A criação do órgão inseriu-se dentro de uma ideia de ampliação das políticas públicas, inclusive as de cultura, com mais bibliotecas, mais museus, mais universidades públicas, mais pontos de cultura, defende José do Nascimento Jr., que foi presidente do Ibram no governo Lula e parte do governo Dilma. “O pensamento conservador sempre será contra a ampliação dos serviços públicos. Esse discurso é o mesmo que ataca dizendo que tem de fechar as universidades criadas, o SUS e outros serviços”, critica.
“O Ibram é resultado de uma política pública, e não o inverso. Só no período getulista tivemos algo semelhante ao que passamos na era Lula. A proposta da era FHC era privatizar, e o período militar não permitiu o crescimento dos museus. A criação de museus está relacionada com a democracia.”
Nos estados, a situação é de penúria. O principal motivo é burocrático: os marcos legais foram colocados de lado. “No Tocantins, pedi remoção da cultura. Sou a única museóloga no estado e não aguentei o descaso e incompetência da gestão atual”, afirma Liliane Bispo.
No Rio, está estagnada a nova sede do Museu da Imagem e do Som. Com cerca de 70% da construção pronta, as obras estão paradas desde setembro, sem previsão de avançar. Orçado em 138 milhões de reais, o museu é estadual e foi engolido pela crise do governo de Luiz Fernando Pezão. O Rio, embora viva a euforia midiática em torno do Museu do Amanhã, possui diversas casas fechadas, como o Museu do Primeiro Reinado, antigo Solar da Marquesa de Santos (pertencente à Uerj).
O melhor período para os museus foi o da gestão do ministro Gilberto Gil, que sabia, com humildade, ouvir os técnicos de sua pasta. Com sua saída, tudo começou a ruir, ainda no governo Dilma”, diz a museóloga Telma Lasmar. “No que concerne ao Rio, podemos afirmar que a bancarrota foi obra do governador Sérgio Cabral e da secretária de cultura Adriana Rattes.”
Em poucos meses, o Brasil foi do céu ao inferno na política museológica. Doze instituições foram fechadas em 2016. O elogiado programa Conhecendo Museus, parceria entre o Ibram e a EBC, produziu mais de 140 capítulos para TVs públicas entre 2010 e 2014 e foi interrompido.
Entre os museus na fila para obter a declaração de interesse público estão o Museu Emilio Goeldi, de Belém (PA), Museu Casa de Chico Mendes, de Xapuri (AC), Museu Nacional do Mar, de São Francisco do Sul (SC), Museu do Gonzagão, de Exu (PE), Museu da Maré, do Rio, Museu Casa de Cora Coralina, de Goiás (GO), Museu Bispo do Rosário, do Rio, e Museu do Futebol, de São Paulo.
Em 2016, o Fórum Nacional de Museus (instância de debate e definição de estratégias públicas) foi adiado pela primeira vez desde sua criação. Acontecerá em Porto Alegre (RS), uma das piores gestões culturais do País no momento, com instituições à míngua ou fechando.
Mas, mesmo num cenário de abandono, surgem focos de luta. Entre o vaivém incessante pelas favelas do Rio, na pressa em subir e descer os morros, a museologia social resiste a despeito da falta de recursos. Com 26 grafites pintados nos muros das casas que emolduram a vida da comunidade, o Museu de Favela, no complexo Pavão-Pavãozinho-Cantagalo, orgulhosamente se apresenta como o primeiro circuito de arte a céu aberto do Brasil.
A arte ali se dispersa entre corredores estreitos e labirínticos, na vida dos moradores. A janela de uma casa dá de frente para a porta do vizinho. Em uma, a tevê está no volume máximo e na outra toca funk, música evangélica ou sertanejo. O tráfico só é perceptível pelos muitos jovens de walkie-talkies na mão.
No Pavão-Pavãozinho-Cantagalo, os moradores compraram a ideia de resistir pela arte. Tudo começou em 2008. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) chegaria para cinco complexos de favelas cariocas. Encravar um posto policial era o objetivo principal, mas o governo percebeu que seria preciso construir e melhorar equipamentos públicos, como escolas e quadras esportivas. Outra proposta era dar cursos profissionalizantes, como de garçons, confeiteiros e cuidadores de idosos. Foi aí que um grupo de moradores protestou contra essa tutelagem.
“Foi preciso bater de frente para fazer o que era certo”, lembra o ativista cultural Carlos Acme, de 38 anos, grafiteiro com obras já expostas no MAC de Niterói, no Museu da República e em galerias do Rio. “O museu traz o conhecimento do dia a dia, a realidade de luta e resistência. Queremos contar as histórias de sobrevivência, como as de falta de luz e da lata d’água na cabeça”, diz o artista, que mora no Pavão, estudou belas-artes por conta própria, inspira-se em mestres como Picasso, Van Gogh, Rembrandt e Monet e tem ciência de que o grafite é “totalmente desconfortável e incomodável”.
O surgimento do Museu de Favela não é obra do acaso, mas fruto de uma ação da gestão de Gilberto Gil. Foi o músico baiano que fez acontecer o Programa Pontos de Memória, que, em parceria com o Ibram, deu oportunidade para que as comunidades expusessem suas próprias narrativas. Em 2009, 12 iniciativas espalhadas pelo Brasil foram contempladas pelo programa, entre eles o Museu de Favela. E, enfim, o termo museologia social passava a fazer parte do vocabulário das artes.
“É uma museologia feita de baixo para cima, que lida com a memória em favor da emancipação do cidadão e de que ele seja protagonista de sua prática”, explica Mário Chagas, coordenador técnico do Museu da República e professor da UniRio. O especialista em museologia social lembra que novos museus foram sendo criados por comunidades carentes, grupos LGBT, indígenas e minorias raciais.
“Um museu feito pela população dá mais visibilidade e empoderamento para a comunidade local.”
Chagas elenca alguns exemplos para mostrar a força da arte comunitária: Rede de Museus Comunitários e Indígenas (Ceará), Museu da Periferia (Paraná), Museu de Quilombos e Favelas Urbanas (Minas Gerais), Ponto de Memória Jacinthinho (Alagoas), Museu da Beira da Linha do Coque (Pernambuco), Museus de Favela e da Maré (Rio).
E, ao contrário de um museu tradicional, que tem a premissa de ser um local duradouro, a museologia social é composta de instituições que podem existir durante períodos mais curtos. Um exemplo é o Museu das Remoções, no Rio, que foi montado para denunciar a retirada de famílias na Vila do Autódromo pelas obras das Olimpíadas.
Na zona norte do Rio, o pioneiro Museu da Maré vive a realidade da falta de recursos para manter suas atividades. Ameaçado de despejo desde 2014, por ocupar um imóvel particular, perdeu neste ano o apoio de uma empresa e conta com recursos até junho. Fundada em 2006, a entidade tornou-se referência para os moradores da favela e um local de visitação para pesquisadores e estudantes.
O Museu da Maré chegou a ganhar editais de cultura, cujos recursos foram destinados a manter o espaço, pagar os funcionários e patrocinar espetáculos e oficinas artísticas. “Não consigo mais verba para fazer e dar continuidade aos projetos”, desabafa o fundador e diretor, Luiz Antonio de Oliveira. “Surgimos para dizer que há outras formas de ver a memória, olhando a base e o território e suscitando esse debate. Obviamente, não vamos mudar o mundo, nem uma estrutura que incentiva a criação de Museus do Amanhã, cuja preocupação de trabalhar com seu entorno serve, no fundo, para instituir o turismo.” A bocarra está aberta e não é à toa. •
CARTA CAPITAL março de 2017