February 28, 2020

Metade dos povos indígenas isolados do Brasil é alvo de religiosos

Índios Korubo contatados em 2015: a lei determina que iniciativas de aproximação com grupos isolados devem partir deles próprios, cabendo ao governo federal proteger suas terras Foto: Funai/Agência O Globo

Daniel Biasetto
A nomeação de um ex-missionário evangélico para assumir a coordenação da área de indígenas isolados da Funai reacendeu uma polêmica que vinha adormecida desde os anos 1990, quando o órgão suspendeu as autorizações para entrada de missões religiosas que ameaçavam pôr em risco a política de não contato sustentada pela Constituição de 1988. Trinta anos depois, a investida de evangelizadores continua e já atinge 13 dos 28 povos reconhecidos em situação de total isolamento, com a diferença de que esses missionários, agora, se sentem representados pelo discurso de aproximação do atual governo.

Levantamento feito pelo GLOBO com base em denúncias da entrada de missionários evangélicos em Terras Indígenas feitas ao Ministério Público Federal (MPF), dados da Funai e do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) mostra que a grande maioria das ocorrências está no Vale do Javari (AM), região com  a maior concentração de nativos isolados do mundo. Além do Javari, com o registro de ameaça a 10 povos confirmados, há ainda outras ocorrências nas terras indígenas Mamoadate, na Cabeceira do Rio Acre, e Hi-Merimã, no Rio Purus (AM).

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A lei brasileira determina que iniciativas de contato com os grupos de isolados devem partir deles próprios, cabendo ao governo federal proteger e demarcar suas terras. A iniciativa fez do Brasil o país pioneiro por respeitar a autodeterminação dos índios. Além do proselitismo religioso, os isolados sofrem a ameaça de madeireiros, garimpeiros, narcotraficantes, caçadores ilegais e missionários proselitistas, além  dos desmatamentos e incêndios.
Vestígios dos índios isolados Hi-Merimã Foto: Funai
Vestígios dos índios isolados Hi-Merimã Foto: Funai
As mais recentes ocorrências de invasão de territórios indígenas por missionários, segundo a Funai, se deram no Vale do Javari. Uma delas denunciada por indígenas da etnia Matis e a outra na Terra Indígena Hi-Merimã, localizada no sul do estado do Amazonas, onde um missionário realizava uma expedição exploratória.

A Funai afirma que os casos foram encaminhados ao Ministério Público Federal (MPF) e à Polícia Federal (PF) para providências cabíveis, mas não confirmou se houve alguma conclusão.
"A Funai informa que desde ano de 2018 houve duas ocorrências de entrada irregular de missionários em territórios indígenas onde há povos isolados ou de recente contato. Invasão de Terra Indígena configura crime federal e são investigadas pela Polícia Federal", diz a nota.

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O GLOBO confirmou com o MPF que os dois foram investigados e as ações chegaram à 6ª Câmara da Procuradoria Geral da República, responsável por populações indígenas e comunidades tradicionais, com o apoio da Secretaria de Cooperação Jurídica Internacional. Um deles foi arquivado.

O MPF apura ao menos 21  denúncias envolvendo missões religiosas em Terras Indígena, entre elas casos envolvendo a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), onde atuou o ex-missionário e hoje coordenador da área de indígenas isolados da Funai, Ricardo Lopes Dias.

A MNTB atua na evangelização de índios na Amazônia desde os anos 1950 e foi expulsa depois que dois casais norte-americanos e outros missionários brasileiros estabeleceram contato com índios da etnia Zoé, no interior do Pará. Investigada pela suposta responsabilidade na morte de indígenas que teriam contraído doenças como gripe e pneumonnia, teve seu processo arquivado.

Missionários estrangeiros

O GLOBO apurou que por trás dessas missões sob investigação figura um grupo de religiosos norte-americanos ligados a igrejas evangélicas, acusados pelos indígenas de tentarem, recorrentemente, invadir as Terras Indígenas na região do Javari para obter contato com os isolados. Três deles são suspeitos de organizarem expedições com esses objetivos: os pastores Andrew Tonkin, Steve Campbell e Wilson Kannenberg.

Campbell, ligado à Igreja Batista, foi denunciado após  ingressar no território dos Hi-Merimã no início de 2019, guiado por um  índio Jamamadi, da qual é próximo, e com a ajuda de um GPS. A conversão de índios tradicionais tem causado tensão entre missionários e nativos.
O missionário norte-americano Andrew Tonkin Foto: Reprodução / Facebook
O missionário norte-americano Andrew Tonkin Foto: Reprodução / Facebook
Recentemente, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja)  denunciou às autoridades que Tonkin entrou sem autorização na região onde vivem os isolados perto do rio Itacoaí, oeste do Amazonas.

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— Ele pretendia fazer contato com os isolados Korubo e foi visto em meados de setembro acompanhado de um pastor indígena Mayouruna — afirmou ao GLOBO o presidente da Univaja, Paulo Marubo.

De acordo com Marubo, a Funai foi comunicadada no dia 24 de setembro, menos de uma semana após Tonkin ter sido avistado na Terra Indígena  do Vale do Javari.
Hidroavião monomotor usado pelos missionários nos sobrevoos às aldeias no Vale do Javari . Na foto, Wilson Kannenberg e Andrew Tonkin atrás do indígena Foto: Facebook/Reprodução
Hidroavião monomotor usado pelos missionários nos sobrevoos às aldeias no Vale do Javari . Na foto, Wilson Kannenberg e Andrew Tonkin atrás do indígena Foto: Facebook/Reprodução
Um pastor indígena que trabalhou com Tonkin em algumas expedições  afirmou ao GLOBO que o missionário norte-americano chegou a ficar muito próximo do local onde vivem os indígenas isolados.

— Ele está muito querendo chegar neles. E para isso carrega computador, rádio, drone e espingarda. Usa avião para chegar até a área de isolados — revela o religioso que pediu para não ser identificado.
O avião ao qual o pastor indígena se refere é um hidroavião monomotor que pertenceria ao líder religioso Wilson Kannenberg, segundo afirmaram ao GLOBO moradores de Atalaia do Norte e Benjamim Constant, no Alto Solimões, no sudoeste do Amazonas, onde vivem os americanos. O GLOBO não obteve retorno do contato feito com Kannenberg.
O missionário Wilson Kannenberg e sua mulher Lori, missionários do Asas do Socorro Foto: Reprodução
O missionário Wilson Kannenberg e sua mulher Lori, missionários do Asas do Socorro Foto: Reprodução
No site "Asas do Socorro", entidade que presta serviços de logística aérea, uma foto de Wilson ao lado da mulher, Lori, reforça o pedido de doações para os missionários seguir com seu projeto social de ajuda a comunidades.

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Um ex-servidor da Funai sob condição de anonimato afirmou que os três vivem há mais de 30 anos na região e têm "ideia fixa" na missão de evangelizar os índigenas, "a qualquer custo":
— Eles dizem que a lei brasileira não existe.

(Quatro dias depois de entrar em contato com a reportagem e um dia após a publicação da matéria, Tonkin alegou "dias corridos e falta de sinal para dar um retorno demorado" e afirmou   que todas as questões enviadas a ele estavam respondidas ao governo federal).

'Alcançar os não alcançados'

No site Frontier International Mission que se intitula "um ministério batista de livre arbítrio", cujo lema é "conhecê-lo é fazê-lo saber", Tonkin aparece como líder missionário. A página traz ainda a colaboração de dois casais, também norte-americanos, Doug e Lydia Caudill e Ezra and Joanna Brainard.

O GLOBO conseguiu falar com o casal Brainard, por e-mail. Eles negam qualquer intenção de prejudicar os indígenas e afirma que nunca estiveram em terras de índios isolados.

— Nosso objetivo não é mudar a cultura, mas trazer para o povo de qualquer cultura a paz, alegria, amizade e o amor de Deus através de Jesus Cristo. Ainda não tive um motivo para solicitar permissão para entrar na reserva, e nunca estive lá. Mas estou bem educado como fazer a solicitar de permissão através de Funai — afirma Ezra, que citou  o novo coordenador de índios isolados, Ricardo Dias, como defensor dos missionários.
O casal de missionários norte-americano Doug and Lydia Caudill Foto: Reprodução
O casal de missionários norte-americano Doug and Lydia Caudill Foto: Reprodução
"Nosso coração e objetivo no ministério é alcançar os não alcançados entre os povos indígenas do vale do Javari.", afirma o casal Caudill em seu perfil. Eles dizem que "moram num barco casa ao longo dos afluentes do rio, na Amazônia, pregando nas aldeias",  na região de Benjamim Constant.
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Procurada, a Embaixada dos Estados Unidos, por meio de sua assessoria, não comentou a presença dos missionários em Terras Indígenas e afirmou que se trata de responsabilidade das autoridades locais "qualquer atividade que possa contrariar as leis do Brasil".
Distribuição de índios isolados Foto: Arte/O GLOBO
Distribuição de índios isolados Foto: Arte/O GLOBO
O número de povos isolados em situação de vulnerabilidade pode ser ainda maior, uma vez que outros 86 registros de indígenas carecem de pesquisas para serem confirmados, o que totalizaria 114 povos isolados no Brasil. Mais de um terço dessas indicações estão no Amazonas (37), seguido por Pará (24), Mato Grosso (14), Rondônia (12).

No Vale do Javari, a Funai  dispõe duas coordenações regionais e cerca de 30 servidores, divididos em quatro bases de proteção, para dar conta de 5 Terras Indígenas com mais de 10 de milhões de hectares. Responsáveis pela proteção aos isolados não somam 10 servidores ativos,  que se revezam no campo.


February 27, 2020

Sergio Moro pede inquérito contra punks de Belém por cartazes anti-Bolsonaro


O ministro da Justiça, Sergio Moro, requisitou a abertura de inquérito contra quatro artistas de um coletivo de rock de Belém. Organizadores de um evento de punk chamado Facada Fest, eles são investigados por supostos crimes contra a honra do presidente Jair Bolsonaro, além de apologia ao homicídio.
Membros de bandas como THC, Delinquentes, Filhux Ezkrotuz e produtores do evento, o grupo de artistas foi interrogado nesta quinta-feira (27), pela Polícia Federal, em Belém.
Em nota, o ministério da Justiça diz que a sua consultoria jurídica apontou a necessidade de investigação. E que cabe agora ao Ministério Público e à Polícia Federal a “elucidação dos fatos e, se for o caso, oferecer ação penal”.

No centro da investigação estão os cartazes usados pelo festival, que ocorre na capital paraense desde 2017. Num deles, divulgado para a edição do ano passado, Bolsonaro é representado pelo palhaço Bozo, que é empalado por um lápis.
Em outro, o presidente aparece vomitando fezes sobre uma floresta, com um bigode de Hitler, uma cueca com a bandeira americana e uma arma na mão. Um terceiro mostra Bolsonaro esfaqueado na cabeça. As duas primeiras são do artista Paulo Victor Magno.
Em seu despacho requisitando a abertura de investigação, Moro afirma que nos cartazes e postagens de redes sociais do coletivo há “elementos que indicam a prática, em tese, de crime contra a honra do Sr. Presidente da República”.
Sobre o Bozo atravessado por um lápis, o ministro destaca um trecho da representação inicial que diz ser a imagem “clara apologia ao atentado criminoso sofrido por Jair Messias Bolsonaro durante a campanha eleitoral, que quase tirou a sua vida”.
“A gente estava no meio do desmonte da Educação, de problemas com os ministros [Ricardo] Vélez e [Abraham] Weintraub”, diz Magno. “Por isso me deram essa ideia de fazer o lápis, que representa a educação, derrotando essa palhaçada. É por isso que é um palhaço, porque representa essa ignorância.”
Para o ilustrador, que nunca havia passado por caso semelhante, não há incitação a crime de homicídio. “Não tem nada ver com apologia ao crime ter feito uma coisa tão caricata daquele jeito, né? Não tem incitação de matar ninguém. Não passamos a ideia de fuzilar oposição.”
O coletivo Facada já usava esse nome desde 2017, quando foi criado. Já Bolsonaro foi vítima da facada durante a campanha eleitoral de 2018.
“Queríamos algo simples e roqueiro”, diz Josy Lobato, baterista das bandas Klitores Kaos e THC, fundadora do coletivo e autora do nome Facada. “Não é algo que incite violência. É o meio do rock, do metal, um tipo de comunicação que não leva em consideração essa moral cristã.”




O despacho do ministro da Justiça marca uma série de embates entre o coletivo paraense e a militância bolsonarista. Em junho do ano passado, Carlos Bolsonaro protestou contra a imagem em sua conta no Twitter.
“Tá valendo tudo nesse país da putaria da esquerda. Está na hora de agir antes que seja tarde, porque eles já mostraram ao que vieram e não têm mais vergonha alguma de esconder isso”, escreveu ele sobre o Bozo empalado.
“Foi um deputado [federal] aqui do Pará, o ex-delegado de polícia, Éder Mauro [do PSD], que compartilhou o cartaz na rede social dele”, conta Josy Lobato, baterista das bandas Klitores Kaos e THC, e integrante fundadora do coletivo.
O festival estava marcado para julho do ano passado —com grupos como Delinquentes, Makina, Surto e Ovo Goro—, mas não aconteceu. Diante da repercussão do tuíte de Carlos, os organizadores temeram que o encontro pudesse gerar confusão com apoiadores do presidente, já que, como costume, aconteceria em lugar público —em frente ao Mercado de São Brás, região abandonada de Belém.
Remarcado para um bar fechado, O Facada Fest 3 não aconteceu de novo. “Meia hora antes de começar, chegou a polícia. Foram conversar com os donos do estabelecimento e constataram que estava vencido um dos alvarás”, diz Josy.
O novo cancelamento abrupto levou a uma comoção tanto entre parlamentares de esquerda quanto em movimentos sociais da cidade, que passaram a apoiar o Facada. A terceira edição do evento, enfim, foi realizada dois meses depois da data original.
Vista como censura por militantes de esquerda locais, a história acabou gerando interesse nas cenas de rock underground de outras cidades, que queriam também realizar o festival. Até hoje, o Facada Fest já aconteceu em Campinas, Curitiba e Marabá.


pessoas pulando durante show punk
Público durante show de punk e hardcore no evento Facada Fest, de Belém - Victor Peixe/Divulgação
“Demos o nome e as diretrizes, porque Facada não é um festival de rock, é um ato político e cultural. Temos pautas nas quais acreditamos e passamos isso para as pessoas dos outros estados.”
A notícia da existência do festival percorreu um longo caminho até chegar ao ministro da Justiça. Os roqueiros viraram algo da polícia graças ao presidente do Instituto Conservador, Edson Salomão. Ele fez ao Ministério Público Federal de São Paulo uma representação criminal, pedindo a investigação dos organizadores do Facada Fest e apontando uma relação dos cartazes e postagens com o atentado sofrido por Bolsonaro em setembro de 2018 —procurado, ele não respondeu às tentativas de contato da Folha.
O MPF paulista encaminhou a representação para seus pares no Pará, que, por sua vez, levara o assunto à Procuradoria-Geral da República para que esta consultasse o Ministério da Justiça. Como a vítima do suposto crime é o presidente da República, é a pasta que precisa solicitar a abertura do inquérito. Tanto o MPF do Pará quanto a PGR dizem, via suas assessorias de comunicação, que não fizeram nenhuma análise sobre o mérito da representação.
O presidente Jair Bolsonaro, aliás, já foi alvo de sátiras em outros cartazes de shows punk no Brasil. Primeiro, de maneira indireta, com o grupo punk americano Dead Kennedys. Mais recentemente, com o coletivo russo Pussy Riot.
“Achávamos que as autoridades já tinham entendido que se tratava de uma manifestação cultural”, diz Josy. “Ficamos surpresos, mas não vamos parar por conta disso. O Facada nasceu na periferia, já sofremos violência todos os dias. Se incomoda é porque estamos fazendo barulho.”

February 25, 2020

Resistência à gourmetização do carnaval




Aloy Jupiara


Tatalondirá, os tupinambás da Carioca, Maria Conga, Jesus Cristo, Elza Soares, capoeiras, Sebastião (o santo e o rei), Lamartine Babo, rezadeiras, entre outros, passam na Marquês de Sapucaí neste carnaval numa procissão foliã como ato de resistência. Eles são enredos de escolas de samba do Grupo Especial e da Série A, agremiações que enfrentam uma crise de recursos, mas outra, mais grave, de reconhecimento e identidade.

Os últimos anos viram o esgarçamento das relações entre o poder público e as escolas, tendo como centro o corte da subvenção municipal aos desfiles. Não adianta culpar apenas a crise econômica. Esta não é a primeira vez que o país vive dificuldades. Trata-se de uma postura pensada, uma decisão política, que não enxerga na cultura popular das escolas um espaço privilegiado de integração social da cidade. A prefeitura escolheu dizer não às escolas, alegando que precisava priorizar os recursos. Esse mesmo argumento poderia e deveria justificar o apoio público a uma manifestação que é patrimônio cultural brasileiro e move a economia do Rio, gerando empregos.

Mas há o outro lado. A crise não nasceu no corte de recursos. Quando a primeira redução foi anunciada pelo prefeito Marcelo Crivella, a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) chegou a afirmar que isso inviabilizaria o desfile. Ficou provado que não era bem assim: as escolas  
desfilaram. Ninguém aqui está dizendo que é fácil botar um carnaval na rua. Contudo, é preciso autocrítica da Liesa e de dirigentes das escolas sobre como o desfile foi conduzido nos últimos anos.

A Sapucaí se gourmetizou. Com os preços cobrados pelas arquibancadas e frisas nos melhores pontos da avenida, o que chamam de o maior espetáculo da Terra afastou da Passarela em especial a classe média baixa e os mais pobres, aqueles amantes do samba que cantavam junto, vibravam, eram pura festa. O desfile perdeu ao concentrar-se em um evento turístico.

É uma tristeza quando, ali pelas 2h da manhã, às vezes antes, se veem grandes vazios nas arquibancadas centrais, porque os turistas já foram embora. Para eles, que não mantêm um vínculo afetivo com o samba, assistir a duas ou três escolas é suficiente.

Excluído, o povo do Rio ocupou em massa as ruas da cidade nos blocos e bandas, enquanto a Sapucaí “encolheu”. Os que administram o desfile “apequenaram” as escolas diante do carioca. O desfile perdeu valor e reconhecimento de boa parte da população da cidade que, agora distante das agremiações, ignorou as críticas ao corte da subvenção.

Surgem aí visões mirabolantes de salvação: reduzir ainda mais o número de escolas por noite, ou o tempo de desfile, porque “ninguém aguenta um desfile tão longo”. Quem é esse “ninguém”? O que mudou no público das escolas que, anos atrás, ficava de pé, sob o sol, vibrando ao som das baterias, chorando com uma ala das baianas, agitando os braços suados? Já ouço as críticas: “Esse tempo não volta, isso é romantismo”. Então, farão o quê? Transformar o desfile num Rock in Rio? Isso é sério?

Não se trata de romantismo, mas de respeito aos fundamentos das escolas, às suas matrizes religiosas e sociais, ao povo da cidade, às tradições de solidariedade e comunhão que as organizaram, que as levaram a descer os morros e reconquistar as ruas do Centro, das quais as populações pobres, na maioria negra, tinham sido expulsas pelas reformas urbanas do começo do século passado. Samba é também resistência. Estão tentando matar isso.

A burocracia do samba e o poder público parecem, nessa hora, estar do mesmo lado.
Ficam, do outro lado, os artistas criadores dos enredos, os artesãos, decoradores e costureiras, os compositores e ritmistas, as baianas e os passistas, que abrem seus caminhos com luta e alegria, uma festa, um desafio, um ritual. Podem tentar, mas não vão destruí-los. A rua é mais forte. Os donos da rua se levantarão.

February 24, 2020

A MANGUEIRA NA AVENIDA E NA TV: NOVAS CRUCIFICAÇÕES



Dermeval Netto

Um enredo de carnaval tem um conceito e uma proposta estética. A partir dele, as cores volumes e formas, fantasias, alegorias, conjuntos. O visual de uma escola que passa não traduz beleza apenas em brilhos e luzes de led. A cor negra da fantasia da bateria da Mangueira foi ousada, dando imagem e tom à imensa escuridão de que fala o samba.

Não foi fria a escola nem o desfile. Sua transmissão sim, no mínimo suspeita, capciosa, fria, desinteressada, em tom de desprezo, abordagem reta e sem curvas, incapaz de penetrar nas camadas mais profundas, de mostrar os significados da criação de um carnaval e enredo crítico, bem elaborado.


A arquibancada e sua empolgação, não podemos avaliar pelo que foi mostrado, e tenho dúvidas sobre esse termômetro e sobre a forma que o público expressa sua emoção ou entusiasmo.


Talvez estivéssemos também com uma expectativa muito alta sobre esse desfile, muito divulgado, e muito imaginado o espetáculo que se produziria. É fatal quando isso acontece, e recebemos com a tendência para uma certa decepção, abaixo do nível de expectativa. 


O desfile da Mangueira apresentou lances extraordinários, os vários Jesus, as diversas crucificações, suas várias faces, seus vários tempos na história, a rainha de bateria como personagem de enredo, como a/o Jesus mulher em passos de representaçâo dramática, absolutamente diferenciado, inovador. A favela como lugar da ressurreição. 


Na encenação da comissão de frente, a "dura" da polícia carioca em Jesus e seus apóstolos, mereceu do comentarista e ex-carnavalesco Milton Cunha, a prosaica explicação de que aquela era "a polícia de Roma". Já nos indicavam e antecipavam ali, a Globo e seus comentaristas amestrados, como seria a forma de contar, driblar e evitar aquele enredo. A imagem do rosto do menino crivado de balas, representando a matança de crianças e jovens negros, as frases "favela pega a visão, não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão", não mereceram nenhum comentário. Entre incompetente e tendenciosa, a marca, o dna da emissora.


A Mangueira foi linda, inteira, intensa e profunda, num enredo bem criado e bem desenvolvido, trazendo e incorporando Jesus nas mazelas e nos perseguidos do nosso tempo. Trouxe uma leitura social e política da vida de Cristo, com uma estética refinada, sua atualização no mundo real do buraco quente, das fendas e frestas da vida real dos oprimidos.


A Globo se esquivou, se desviou, se amedontrou, esfriou, desprezou, andou de lado, cumprindo seu papel de sempre, o de recortar e ocultar o que não lhe interessa.


Mas, em samba, política e futebol, vale a emoção e o afeto de cada um, o que se vê, percebe, espera e sente. E o choro é livre.


Mas a TV define um modo de narrar, é preciso estar atento.


ALGUMAS NOTAS SOBRE O QUE VIVEMOS EM PAQUETÁ E PORQUE ESSA PQEUNA LUTA DE UM BAIRRO PODE (E DEVE) APONTAR PARA ALGO MUITO MAIOR




ZECA FERREIRA

Durante todo esse processo, tenho feito o esforço de tentar comunicar o que acontece aqui para fora da ilha. Somos um bairro pequeno, nossos votos não elegem um vereador, então, conseguir visibilidade e apoio na cidade (e além) era fundamental para que a luta fosse bem sucedida. Mas, para além disso, foi ficando cada vez mais claro para quem viveu o processo que algo especial acontecia aqui. Especial e inspirador diante do festival de absurdos que vivemos país afora.

Nosso problema começa no dia 23 de dezembro, quando os cortes nos horários das barcas são anunciados pela empresa em cartazes afixados nas estações. A forma como a coisa foi feita causa imediata perplexidade, por alguns motivos:

- não existiu qualquer estudo de impacto das mudanças ou qualquer comunicação anterior à comunidade

- os cartazes falavam em "atendendo a decisão judicial", o que tirava a decisão das mãos de uma empresa simplesmente e nos encurralava ainda mais

- foi feito em período especialmente sensível: na antevéspera do natal, período também de recesso no judiciário e no poder legislativo

- a violência dos cortes era inédita. Desde sempre convivemos com certa imprevisibilidade, com mudanças de tempos em tempos, quase sempre pra pior. A última mudança, em 2016, já reduzia horários, criando pelo menos um intervalo de 3 horas no meio do dia, o que já causou bastante transtorno, já que dependemos desse transporte como única forma de entrar em sair. O que acontecia agora era de outra ordem, um corte de 30% durante a semana e 50% nos fins de semana.

Como há alguns anos já temos instâncias representativas funcionando bem - associação de moradores e conselho comunitário de segurança -. conseguimos rapidamente buscar informações sobre como agir e organizar reuniões. Já no dia 26 fizemos nossa primeira assembléia, com a presença de duas pessoas da defensoria pública. Para nossa surpresa, apareceram cerca de 500 moradores. Para se ter uma idéia, seria algo como uma reunião de associação com 20 mil moradores em um bairro como Copacabana.

Daí seguiram-se dois adiamentos na justiça até que foi finalmente marcada uma audiência de conciliação. O processo na origem não nos envolvia: era movido pela CCR Barcas contra o governo do Estado, alegando impossibilidade de cumprir o contrato de concessão, em razão da diminuição no fluxo de passageiros (IMPORTANTE NOTAR: essa diminuição - que eles alegam ser de 50% - seria da linha Niterói- Praça XV, uma vez que o morador de Paquetá não tem outra opção de transporte e a nossa população cresceu no mesmo período). A defensoria pública então pediu para ser parte do processo, alegando ter uma terceira parte diretamente interessada e jamais contemplada: A POPULAÇÃO. Então, para essa audiência de conciliação, o juíz determinou que fosse apresentada uma contraproposta à grade de horários que a CCR tentava impor como solução para os seus problemas financeiros.

Bom, vamos lá, tudo o que foi escrito acima era pra chegar nesse ponto, o grande PONTO DE INFLEXÃO DA LUTA, o ponto de virada que determinou tudo o que veio:

Nossas assembléias permaneceram sempre cheias e o clima sempre foi de irmandade, de "estamos todos no mesmo barco", o que não significa que não houvesse polêmica e visões divergentes. Essas ficaram bastante concretas agora, quando, pela primeira vez, havia um pedido oficial para que nos pronunciássemos através da defensoria pública. Em assembléia, não foram poucos os que defendiam alguma negociação, uma redução de danos na tentativa de mantermos os dedos e entregarmos alguns anéis. Entre eles, pessoas bastante importantes para nós e respeitadas no processo da luta. Negociar era a sugestão da defensoria (que sempre respeitou nossas decisões) e das nossas entidades, compreensivelmente preocupadas com a possibilidade de perdermos tudo. No entanto, em assembléia histórica, a população decidiu por não negociar horários, a nossa contraproposta era a manutenção da grade anterior, que já nos atendia de forma bastante precária.

Aqui cumpre observar algumas coisas:
 
- essa pode parecer uma decisão radical, uma negativa a um processo normal de negociação, mas ela, na verdade, consolida a questão central da nossa luta: o RESPEITO. Não foi por acaso que #respeitaPaqueta ficou sendo nosso grito e nossa marca. Em outras palavras, a nossa decisão apontava a compreensão de que não negociaríamos porque negociação nunca houve. A tentativa de impor algo de forma tão violenta merecia uma resposta a altura. O que acontecera no dia 23 de dezembro não tinha outra nome que ataque. Como em BACURAU, estávamos sendo atacados. E diante de um ataque, é preciso se defender;

- a resposta dada pelas lideranças no processo (associação, CCS) a essa decisão foi exemplar. Uma vez decidido pela REVOGAÇÃO, essa foi a motivação e o sentido da luta, sem um porém, sem um passo atrás. Sempre houve clareza dos riscos, mas nunca fomos suicidas

- quando falamos na violência das mudanças de horário, não é em sentido figurado. O que aconteceu nesse bairro após o anúncio das mudanças, só quem mora aqui sabe. Não foram poucas as pessoas que encerraram contratos e se mudaram da ilha em janeiro, inviabilizadas por uma empresa que resolveu nos sequestrar para resolver seus problemas. Após a implementação de fato de novos horários (que chegaram a vigorar por algumas semanas), o faturamento com o turismo caiu algo em torno de 60-70%, e vários estabelecimentos deram aviso prévio para seus funcionários;

- a decisão pela REVOGAÇÃO foi então respaldada por um estudo de impacto que fizemos nós mesmos. Ao longo de 4 dias, mais de 400 questionários foram distribuídos nas barcas, além de visitas a instituições importantes como escola e hospitais. A conclusão foi de que os horários que tínhamos antes já nos atendiam de forma bastante precárias.

Mas nada disso sensibilizou o JUÍZ. A decisão veio em nosso desfavor, concedendo apenas alguns ajustes àquela grade do dia 23, acordados por CCR Barcas e Secretaria de Transportes. Esses ajustes nos foram apresentadas em reunião com a secretaria na véspera da audiência, em um papel mal ajambrado, com alguns ajustes feitos apenas em dias de semana. O juíz não chegou a sequer passar os olhos em nosso relatório ("eu não pedi isso, eu pedi uma GRADE"), e nos deu alguns dias para que, caso quiséssemos, "mexêssemos dez minutos pra cá ou pra lá nos horários", mas sem alterar os cortes.

Em assembleia bem menos polêmica, decidimos por não fazer qualquer ajuste “de dez minutos”, seguiríamos na luta por RESPEITO e pela REVOGAÇÃO COMPLETA da grade. Essa sugestão do juiz foi inclusive pedagógica para reafirmarmos nossa decisão coletiva, pois pequenos ajustes pontuais “de dez minutos pra cá o pra lá” poderiam ser feitos e resolveriam em parte o problema de alguns, gerando novos problemas para outros. Era exatamente essa a situação: não poderíamos atuar em função de uns em detrimento de outros; não entraríamos em uma luta fratricida que, ao final, deixaria mais sequelas que soluções.

Daí em diante, foi o que conhecemos. A grade implantada “para ajustar a oferta à demanda” e “para realizar melhorias operacionais” (informes da CCR afixados nas estações) foi o caos que já anunciáramos: barcas lotadas, uso e abuso das barcas lentas e sem ar condicionado (o tempo entre as viagens da nova grade permitiam que só elas fizessem a travessia), atrasos, confusão, desgaste. Mais gente se mudou, mais dinheiro se perdeu, mais a imagem da ilha de desgastou para o turismo (quem veio a Paquetá nos fins de semana do período em que vigorou essa grade, possivelmente não volte mais aqui).

Do nosso lado, inúmeros atos, oficinas de cartazes e camisetas, textos, vídeos, debate, assembleias, matérias na imprensa, além de uma massificação cada vez maior do movimento, além dos apoios que vinham do continente e de mais longe.

Nosso pleito era justo e se fez visível, e, com a volta aos trabalhos da ALERJ, conseguimos um acordo que revogou a grade e nos permitiu respirar até o final desse ano.

Tudo isso pra dizer que, sim, a luta no bairro é fundamental. É concreta e é pedagógica. Que, sim, precisamos retornar ao trabalho de base. Mas é preciso fundamentalmente pensar sobre o que exatamente significa isso. O trabalho de base em Paquetá não resultou porque tivemos uma vanguarda a frente apontando o caminho. Tivemos lideranças sim, fundamentais, porque foram capazes de sentir o pulso da população, conhecer as suas necessidades e a sua ousadia e apostar nisso, muitas vezes contrariando as suas próprias certezas. A solução está mais perto da gente do que a gente pensa.



February 23, 2020

Sem as marchinhas de Nássara, o carnaval não seria o mesmo


Quando Nássara fez 80 anos, fui entrevistá-lo para a Folha de S. Paulo. Estamos em 1990, e o aniversariante não me ouve: com a idade, ficara mais surdo que uma porta. Escrevo as perguntas num bloco de papel; ele, sentado à minha frente na mesa da sala, as responde de viva voz, já que apenas perdera a audição. “Surdo, mas não mudo.”
Por que não usa um aparelho auditivo?, gesticulei. Já experimentara todos; nenhum dera certo. “Só operando. Mas eu não sou trouxa de me operar com essa idade só pra ouvir melhor, correndo o risco de estragar outra coisa, né?”, complementou, encerrando o assunto.
Nássara, ironicamente, tinha orelhas grandes; sinal de vida longa, observei-lhe; mas o fato é que ele só duraria mais seis anos, morrendo justo no dia 11 de novembro, seu 86º aniversário.
Ironia era mesmo o seu forte, não fosse ele um gozador full time, falando, desenhando e compondo. O título de “caricaturista do samba” tinha duplo sentido.
Foi depois de ouvir, semana passada, um bloco pré-carnavalesco do bairro entoar a marchinha Alá-lá-ô! e duas outras mais ou menos da mesma época, que me convenci de que, neste domingo de carnaval, precisava homenagear um de seus patriarcas, um daqueles músicos cujas composições, de perene appeal popular, nunca deixaram de animar a fuzarca de Momo.
Descartei os mais manjados e festejados –Braguinha, Lamartine, Ary Barroso –, parei e ajoelhei-me diante de Antônio Gabriel Nássara, por sinal o autor, com Haroldo Lobo, de Alá-lá-ô!, sucesso carnavalesco de 1941. E também de Periquitinho Verde (1938), de parceria com Sá Róris, Balzaqueana (1950) e Sereia de Copacabana (1951), as duas últimas em dupla com Wilson Batista.
Seis meses depois de abafar no Carnaval de 1950, a irresistível marchinha Balzaquean – aquela que termina assim: “Papai Balzac já dizia/Paris inteira repetia/Balzac acertou na pinta/Mulher só depois dos trinta” – estourou na França, durante os festejos do centenário de morte do escritor, numa versão providenciada pelo ator Michel Simon. “Excusez du peu”, acrescentava Nássara sempre ao relatar essa façanha binacional.
Com trono cativo na música popular, no rádio, no humorismo e até na publicidade (fez o primeiro jingle para o rádio, exaltando a excelência dos pães da Padaria Bragança, em Botafogo, zona sul do Rio), o irrequieto nativo do imperial bairro de São Cristóvão que se criou na Valhala do samba que foi Vila Isabel, na companhia de Noel Rosa (seu parceiro uma vez), Almirante, Braguinha, Orestes Barbosa e Haroldo Barbosa, abafou no Carnaval de 1933 com a marcha Formosa, impulsionada pela dupla Francisco Alves-Mário Reis.
Era o menos farrista da turma, não porque fosse caseiro, abstêmio ou evangélico, mas porque largava do batente no jornal O Globo –onde paginava, retocava fotos e desenhava caricaturas – caindo pelas tabelas. Num país sério e civilizado, teria ficado milionário ao longo das quatro décadas em que animou os salões com suas marchinhas, sem precisar dos caraminguás da aposentadoria de jornalista.
No traço e na música, Nássara retratou como nenhum outro o Rio em que tudo era levado no lero, na parolagem esperta, na sedução oral –geralmente ao redor de um banco de praça (melhor ainda se na Cinelândia) ou de uma mesa no Café Nice e outros enclaves boêmios do centro da cidade. Seu estilo supereconômico e eficaz de desenhar, um minimalista avant la lettre, transformou-o no ídolo de mais de uma geração de humoristas. Jaguar levou-o para o Pasquim. Cássio Loredano dedicou-lhe um livro. Millôr...
Millôr escreveu apenas o seguinte:
“De uma certa maneira, o Rio é uma invenção de Nássara, Orestes e Noel. Inventores também do papo-furado, foram se distraindo e a cidade cresceu em volta deles.” Muito amigos, com Millôr o destemperado Nássara nunca brigou. Mas Lamartine e Braguinha não escaparam de sua iracúndia, que, apesar dos decibéis por vezes alcançados (“cambada de piolhos!”, era o seu insulto preferido), convergia sempre para um carinhoso cessar-fogo.
Seu jeito para o desenho levou-o a estudar arquitetura, que largou no quarto ano, e a cursar a Escola de Belas Artes. Tentou imitar J. Carlos, em cujo “traço simplificado” se amarrou, mas estava predestinado a ter um estilo mais do que próprio, personalíssimo.
Noel Rosa também quis ser caricaturista, mas não deu certo.”Só sabia decalcar os desenhos do J. Carlos”, me contou o próprio Nássara, a quem Noel chegou a pedir emprego em jornal. Os dois, aliás, conversavam sobre isso quando, num certo fim de tarde, apareceu Di Cavalcanti. “O Rosa (ele só chamava Noel assim) mostrou pro Di um de seus desenhos, o Di olhou, olhou, e, cantando as primeiras estrofes de Nuvem que Passou, saiu pela tangente: ‘Ô, Noel, quem compõe belezas como esta não precisa trabalhar em jornal.”
Nássara conseguiu acumular as duas vocações. Caricaturou meio mundo, avacalhou outro tanto. Satirizou e parodiou gente e música daqui e lá de fora. Em cima da canção italiana Cuore Ingrato, compôs, com seu mais fiel comparsa, Eratóstenes Frazão, a marcha Coração Ingrato, premiada pela Prefeitura do Rio em 1935. Brincou com Mamãe Eu Quero na última estrofe de Periquitinho Verde; inspirou-se na Valsa dos Patinadores pra compor um verso de Nós Queremos uma Valsa; gozou os nazistas derrotados em Stalingrado, na trocadilhesca Danúbio Azulou; a quatro mãos com Wilson Batista, abrasileirou e carnavalizou a espanhola La Paloma em Pombinha Branca.
Nássaro atravessou mais de uma dezena de presidentes da República e suas gozações alcançaram a era Paulo Maluf. Se ainda vivo e na ativa, teria feito meia dúzia de marchinhas sobre a família Bolsonaro, o laranjal do Queiroz e o “Posto Ipiranga”, para alegrar o carnaval de rua deste ano.

February 19, 2020

Have Zombies Eaten Bloomberg’s and Buttigieg’s Brains?



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MADRID — I’m in Spain right now, talking about zombie ideas — ideas that should have been killed by evidence, but just keep lurching along. In the modern United States, most important zombie ideas are on the right, kept undead by big money from billionaires who have a financial interest in getting people to believe things that aren’t true.
But sometimes zombie ideas also manage to eat centrists’ brains. Sure enough, some of the most destructive zombies of the past dozen years have shambled their way into the Democratic primary fight, where a couple of centrists are repeating ideas that were thoroughly debunked years ago.
And as it happens, the experience of Europe, and Spain in particular, provides some of the bullets we should be using to shoot these particular zombies in the head.
So let’s start with the origins of the 2008 financial crisis, a topic that remains relevant if we want to avoid repeating past mistakes.
Although few saw 2008 coming, in retrospect it was a classic banking panic, the type of thing that happened frequently before the 1930s. First, lenders got caught up in a gigantic housing bubble; then, when the bubble burst, much of the financial system just froze up.
What made this panic possible, after two generations of relative financial calm? The answer, clearly, was the erosion of effective financial regulation over the previous few decades.
But right-wingers refused to accept the obvious. Instead, they pushed an alternative narrative in which liberals somehow caused the crisis by forcing poor innocent bankers to lend money to people of color (they weren’t usually that explicit, but that was the clear message). This narrative was so nakedly self-serving that it’s hard to believe that anyone took it seriously; but some influential people bought it. And among those people was Michael Bloomberg.
At this point the evidence against the liberals-did-it story is overwhelming. The surge in bad loans came neither from government-sponsored agencies nor from regulated banks, but from unregulated mortgage originators. The fallout was so severe because investors believed, wrongly, that fancy financial instruments protected them from risk.

And, crucially, the housing bubble was an international phenomenon: Spain had a bigger bubble than we did, followed by a worse slump. Did U.S. liberals force Spanish banks to make bad loans?
But zombie ideas can’t be killed by evidence. Perpetrators of the liberals-did-it lie are still out there, still getting space to spread their disinformation in mainstream media.
Elizabeth Warren argues that Bloomberg’s embrace of a false right-wing narrative about the financial crisis should disqualify him for the Democratic nomination. But I’d be willing to cut him some slack if he’d admit that he was taken in by right-wing disinformation. If he isn’t willing to make that admission, she’s right.
At the same time that Bloomberg is being called out on his housing bubble zombie, Pete Buttigieg is facing justified criticism for buying into another zombie idea — the obsession with government debt. That obsession did much to hobble recovery from the financial crisis.
To be fair, deficit panic wasn’t as naked a scam as the claim that do-gooders caused the financial crisis, although some of the loudest voices decrying the evils of deficits were obvious phonies. What happened instead was that many important people imagined that inveighing against the dangers of debt made them sound serious, because that’s what all the other serious people were doing.
At this point, however, the debt obsession has been thoroughly debunked by both economic research and experience. We live in a world awash in private savings looking for someplace to go, with investors willing to lend money to governments at incredibly low interest rates. It’s actually irresponsible not to put this money to work investing in the future, both by building physical infrastructure and through programs that help children develop their potential.
Now, the Trump administration is doing it wrong — borrowing large sums, but squandering the money on tax cuts for corporations and the wealthy. But even bad deficit spending boosts the economy to some extent, and it is the reason America is still growing reasonably fast while Europe, still in the grip of austerity ideology, is stagnating.
Look: It’s easy to make the political case that Democrats should nominate a centrist, rather than someone from the party’s left wing. Candidates who are perceived as ideologically extreme usually pay an electoral penalty; this is especially true if, like Bernie Sanders, they actually pose as more radical than they really are.
But a key part of centrism’s appeal is the belief that centrists are realists, who understand how the world works. It’s much harder to make the case for centrists who repeat manifestly false claims, especially if those claims were essentially right-wing propaganda.
As I said, you can make a good case for the proposition that Democrats should, in the end, nominate a centrist. But a centrist whose brain has been eaten by zombie ideas? Not so much.

The New York Times


1966: o ano em que o Brasil teve uma ideia impensável


E a Frente Ampla?

Heloisa Murgel Starling

Imagine três inimigos históricos: Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart. Lacerda usou todos os pretextos a seu alcance para melar a posse de Kubitschek na Presidência da República, em 1955. Também atiçou as rebeliões comandadas por oficiais da Aeronáutica contra o governo de JK — Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959) —, moeu o desempenho presidencial de João Goulart e foi a mais incendiária liderança civil do golpe militar de 1964.
Juscelino, por seu lado, fabricou uma legislação sob medida para vetar discurso de Lacerda na televisão ou no rádio. Já Goulart enviou mensagem ao Congresso solicitando a decretação do estado de sítio no país para que ele pudesse intervir na Guanabara e deixou preparada a ordem de prisão do governador — no caso, Carlos Lacerda. Partidários de JK ou de Jango só se referiam a Lacerda como “corvo” e “golpista”; os lacerdistas retrucavam à altura: Jango era “comunista”; Juscelino, “corrupto máximo”.
Imagine, agora, uma ideia impensável. Entre os meses de outubro de 1966 e abril de 1968, os três personagens que se abominavam decidiram conversar, encontraram uma linguagem comum e acertaram uma aliança — batizada “Frente Ampla”. Jango era uma das principais lideranças do campo das esquerdas; JK estava “à esquerda da direita e à direita da esquerda”, como se autoproclamavam seus correligionários, ao centro do espectro político; Carlos Lacerda capitaneava a fina flor do conservadorismo no país.
O golpe militar de 1964 deu início a um governo sustentado por um formato abertamente ditatorial — vale dizer, que não é limitado constitucionalmente — e avançou contra os expoentes do regime anterior. Juscelino, acusado de corrupção, estava refugiado em Lisboa; Jango, no exílio em Montevidéu. Ambos com direitos políticos cassados.
Os três personagens passaram a vida execrando uns aos outros e tinham a perder com a aliança política: “O doutor Getulio sairá do seu túmulo para nos condenar”, esbravejou Leonel Brizola, que não quis saber de conversa.
A Frente Ampla foi a mais improvável das alianças políticas brasileiras. Sacudiu o país, como previu Tancredo Neves, animadíssimo com a ideia. Reuniu praticamente todas as correntes políticas — incluindo comunistas e trotskistas, com Mário Pedrosa à frente —, aglutinou grupos à direita inconformados com a ditadura, protagonizou os primeiros comícios oposicionistas desde o golpe militar, abriu a discussão política em reuniões públicas, debates e manifestações de rua. Fabricou um programa mínimo, capaz de reunir os opostos em torno de causas comuns pelas quais valia a pena lutar: restauração do poder civil, soberania nacional, anistia, pluripartidarismo, direito de greve, constituinte, eleições diretas.
“Era um projeto perigoso demais e não podia durar: com um decreto duro, o general Costa e Silva extinguiu a Frente Ampla em 5 de abril de 1968”
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Os militares jamais perdoaram Carlos Lacerda, a quem consideraram, desde aquele momento, um traidor: em dezembro de 1968, seu nome encabeçou a lista de cassações do AI-5 e ele foi preso. Nunca mais voltaria à vida política.
Com o tempo, a Frente Ampla acabou quase esquecida; virou um comentário breve na historiografia sobre o período. Mas, vista com olhos de hoje, talvez ela ainda se preste a oferecer algo essencial sobre o entendimento da democracia no país.
Numa situação de crise como a que vivemos atualmente, sobretudo nas circunstâncias em que a crise atinge o pensamento, a política e os valores, uma alternativa é recorrer ao passado para pensar com ele, sem se deixar dominar pela ilusão de que no tempo cronológico existe lugar para a repetição — afinal, o tempo não é retilíneo e a história é ingovernável.
Então, a experiência da Frente Ampla talvez sirva para informar a nós, no futuro, que democracia não é só um sistema baseado em instituições: eleições, voto, partidos, agências de governo. É igualmente um modo de vida e uma forma de sociedade, para usar a definição de Tocqueville. E que o vigor de uma sociedade democrática está ajustado ao cultivo de determinados princípios e valores políticos, entre eles a tolerância.
Virtude do entendimento, a tolerância só existe no encontro entre os divergentes. Significa a descoberta respeitosa do outro e se materializa no diálogo entre duas ou mais pessoas para que germine a prática democrática.
Não sei a opinião do leitor. Mas desconfio de que esteja na hora de nós começarmos a imaginar ideias impensáveis no Brasil.

Heloisa Murgel Starling, historiadora e cientista política, é professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

 

February 13, 2020

Meninos da capa de 'Clube da Esquina' processam Milton, Lô e EMI por imagem

Capa do disco 'Clube da Esquina', que teve foto feita pelo fotógrafo Cafi


“A cara do Brasil” é uma das expressões mais recorrentemente usadas para falar da capa de “Clube da Esquina”, disco de 1972 estabelecido como um dos clássicos da música brasileira. A imagem, tão reconhecida quanto as próprias canções, exibe duas crianças sentadas em uma estrada de terra —uma delas, descalça e com um pedaço de pão na mão; a outra, olhando desconfiada para a câmera.

Por anos, a crença popular era de que aqueles garotos eram Milton Nascimento e Lô Borges, principais nomes por trás das canções de “Clube da Esquina”. Na verdade, eram Antônio Carlos Rosa de Oliveira —o Cacau—, e José Antônio Rimes —o Tonho—, dupla que passou quatro décadas sem saber que estava numa das capas de disco mais icônicas do país. Desde 2012, eles pedem na Justiça R$ 500 mil por danos morais e uso indevido da imagem

 Os alvos do processo, que tramita no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, são Milton, Lô, a gravadora EMI, que lançou o disco, e a editora Abril, que reeditou o álbum em CD como parte de uma coleção em 2012. A EMI foi incorporada pela Universal, que, caso a Justiça aja de forma semelhante ao famoso caso de João Gilberto, pode herdar o processo.

Até quando 'chicagadas' de Guedes vão ser argumento para conformismo?

Muito da vista grossa em relação ao milicianismo político deve-se à linha econômica do ministro 

  



São escandalosas as manifestações de Eduardo Bolsonaro, ex-futuro embaixador em Washington, sobre a repórter Patrícia Campos Mello, em dobradinha com o depoimento mentiroso de Hans River, suposto operador digital da campanha de Jair Bolsonaro, à CPMI das Fake News.

"Eu não duvido que a senhora Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o senhor Hans, em troca de informações para tentar prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro", afirmou Eduardo.

Só quem quer ainda não vê no núcleo do atual governo federal uma ameaça à democracia. Sim, pode-se dizer que o sistema democrático em seus pilares mais elementares, como separação de Poderes etc., vigora no país. Mas isso não quer dizer que não se veja ameaçado. A ameaça não se concretiza quando vitoriosa, mas por ser ameaça.

Muito da vista grossa de setores supostamente esclarecidos do establishment e da elite em relação ao milicianismo político em curso deve-se à linha econômica do ministro Paulo Guedes. Trata-se de uma agenda até defensável em alguns aspectos, mas atrasada, antipopular e desastrada. Guedes, um Chicago Boy do tempo de Reagan, não para de fazer (desculpe o trocadilho chulo) suas “chicagadas”.
Enquanto o ajuste fiscal permanece uma quimera e o teto de gastos e a reforma da Previdência não entregam o que foi alardeado, a tal “revolução” do Posto Ipiranga, saudada por muitos, até de boa-fé, quando da posse e após anúncios de PECs mirabolantes, rasteja.

A economia está basicamente estagnada e o quadro social, ambiental e educacional naufraga.

Enquanto criaturas do pântano dominam a cena, Guedes, o que mereceria apoio, fala em AI-5 e ataca servidores chamando-os de parasitas.

Economistas liberais ilustrados identificados como de centro-direita, como Armínio Fraga e André Lara Resende, entre outros, vão se manifestando com crescente estridência contra esse programa atrasado —em sentido contrário ao da velha Fiesp, o aparelhão de Paulo Skaf e do empresariado decadente da Paulista.

Diante da atmosfera de pesadelo que toma o país, a pergunta que não quer calar é: até quando as “chicagadas” de Guedes vão servir de argumento para o conformismo com tudo isso?


 

February 7, 2020

Mercado sinaliza que, por retorno, opera até contra democracia

Na foto, a vista do painel eletrônico da Bolsa de Valores de São Paulo

Alexa Salomão


Mês após mês, diferentes áreas do atual governo deram demonstração de falta de traquejo para lidar com a democracia e flertaram com o autoritarismo. A sociedade reagiu nas redes sociais. Representantes dos demais Poderes se manifestaram. Mas o setor empresarial e o mercado financeiro não se abalaram.

Mês após mês, a cada polêmica, o reflexo na Bolsa e no dólar foi zero.
O argumento recorrente para esse comportamento é que a entidade batizada de mercado financeiro, que reúne bancos e corretoras, é amoral e apolítica. Sua única preocupação é garantir o retorno dos investimentos de seus clientes, e só há reação quando esse retorno é ameaçado. Se a área econômica do governo é bem gerida, não importa o resto.

Não importa se há aumento de queimadas na Amazônia. Não importam denúncias de corrupção num governo que se elegeu como paladino da Justiça. Não importam manifestações oficiais falando sobre a volta do regime de exceção de um AI-5. Não importa o revisionismo da história para trocar golpe por revolução. Não importa o movimento evangélico na gestão pública para banir personagens místicos dos livros infantis.
Não importa se um vídeo oficial da Secretaria da Cultura, recomendado pelo presidente em sua live semanal, seja uma paródia da estética nazista.

Há três problemas nesses argumentos.

Primeiro, não há economia pujante sem democracia sadia. E a democracia é um organismo vivo no qual tudo está interligado. Se um dos elementos capengar, o restante fica contaminado e degringola —mais cedo ou mais tarde. E o ruído na política é um dos agentes mais corrosivos da democracia. Não faltam exemplos na história, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político.
Para ficar em dois casos recentes. Na Turquia, a crise financeira começou com a prisão de um pastor americano acusado de se envolver em uma tentativa de golpe contra o governo de Erdogan. Na Venezuela, a insistência do chavismo em se agarrar ao poder conseguiu destruir até a indústria local de petróleo, apesar de ela ser uma das mais importantes do mundo.

Segundo, não é verdade que a gestão da economia brasileira esteja blindada do resto do governo —e o mercado financeiro tem feito vista grossa.
A indústria global de fundos, representada por 230 gestoras, que administram US$ 16 trilhões, emitiu carta de protesto contra as queimadas e a aparente letargia do governo brasileiro em relação à questão. O mercado ignorou.
A reforma administrativa está descansando numa gaveta porque a ala política do governo não quer mais reformas, que qualifica de amargas e ameaçadoras para as ambições eleitorais de apoiadores. O mercado ignorou.

O presidente em pessoa interferiu na agência que regula o setor de energia no momento em que estava em discussão, de forma transparente, a revisão do pagamento da energia solar. O mercado ignorou.

Terceiro, ao tratar como polêmica menor um número crescente de controvérsias nos campos sociais, culturais e ambientais, o mercado está sendo mais passional do que técnico, pois não é segredo que apoiou a eleição de Bolsonaro.
Pode deixar de precificar adequadamente os riscos para milhões de investidores brasileiros, boa parte deles pequenos poupadores que buscam resultados melhores em produtos mais arriscados, já que a queda dos juros tirou retorno de produtos clássicos e mais seguros, como títulos públicos.

Ao ignorar a indignação generalizada com o tom nazista do pronunciamento do já ex-secretário da Cultura, o mercado sinalizou o pior: que, se a economia ficar de boa, opera até contra a democracia.
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