October 26, 2025

PAI E FILHO


JOAO BATISTA JR

Em janeiro deste ano, causou alvoroço a noticia de que Milton Nascimento participaria de um show na casa de espetáculos Vivo Rio, no bairro do Flamengo. Como o artista está aposentado dos palcos desde 2022, quando fez 80 anos e encerrou uma turnê mundial, a apresentação seria uma raríssima oportunidade de vê-lo ao vivo. O show tinha um objetivo precioso para Milton: arrecadar fundos para a Portela, que decidira fazer do cantor o tema do seu desfile na madrugada de 5 de março no Sambódromo.
 
Poucos dias antes do espetáculo no Vivo Rio, Milton mandou dizer à direção da Portela que estava com vontade de ir à quadra da escola de samba para retribuir a homenagem que iriam lhe fazer e para cantar acompanhado da bateria. Era uma forma de agradecer aos músicos, costureiras, carpinteiros, pintores, ferreiros, escultores, aderecistas, passistas e todos aqueles que ajudariam a levar para a Marquês de Sapucaí o desfile ‘Cantar será buscar o caminho que vai dar no Sol - Uma homenagem a Milton Nascimento’.
 
Ficou combinado que a aparição na Portela seria em 12 de fevereiro, um dia antes do show no Vivo Rio. Às 19h30 daquela quarta-feira, o cantor de 82 anos deixou sua casa no bairro de Itanhangá, na Zona Oeste do Rio, e seguiu de van até a quadra da Portela, no bairro Oswaldo Cruz, na Zona Norte. Estava acompanhado de seu filho, Augusto Nascimento, e de alguns músicos que fizeram parte de sua última turnê mundial, como o guitarrista Wilson Lopes e o bandolinista Hamilton de Holanda. “Eu quero sentir a vibração de todos na Portela", me disse Milton na van.
 
O percurso durou pouco mais de uma hora. Ao longo do trajeto, foi o cantor que escolheu as canções a serem ouvidas no carro. "Tenho escutado muito Jackson 5, Angela Maria, Paul McCartney e minhas próprias músicas. Nunca escutei tanto as minhas músicas como agora", contou. Já quase no meio do caminho, Milton pediu para ouvir Vera Cruz, que lançou em 1968, em parceria com Márcio Borges, e que diz:
‘Hoje foi que a perdi,
mas onde já nem sei.
Me levo para o mar.
Em Vera me larguei
e deito nesta dor.
Meu corpo sem lugar.’
 
Desde 2022, quando recebeu o diagnóstico de Parkinson, Milton vive com limitações motoras: passos curtos, a boca enrijecida do lado esquerdo e os dedos trêmulos. Naquele percurso até a quadra da Portela, porém, seu cérebro seguia em forma. Ele parecia um homem com total consciência de que vivia um momento bastante feliz de sua vida. Seria o primeiro artista vivo a ser homenageado pela maior campeã do Carnaval carioca, a Portela tem 22 títulos) e se preparava para lançar, em março, o documentário ‘Milton Bituca Nascimento’, dirigido por Flávia Moraes. Além disso, estava de casa nova: seis meses atrás, ele havia se mudado de um imóvel de quatro andares para uma residência de apenas um piso térreo, com vista para a Pedra da Gávea. 
 
Por volta das 21 horas, a van do cantor se aproximou da escola de samba e foi logo rodeada por vários portelenses alvoroçados. Ajudado por seu filho, Milton subiu ao palco e sentou-se em uma poltrona azul, na qual recebeu os cumprimentos do mestre-sala Marlon Lamar e da porta-bandeira Squel Jorgea.
 
A quadra da Portela estava abarrotada. Ao beijar o manto azul e branco da escola, os olhos do cantor encheram-se de lágrimas. Um time de músicos e passistas no palco então puxou duas das canções mais populares do artista. Primeiro, ‘Nos bailes da vida’, de 1981, escrita por Milton e Fernando Brant, aquela que diz que o artista tem de ir aonde o povo está. Depois, ‘Maria Maria’, dos mesmos compositores, lançada em 1978. Foi uma catarse geral. As 2 mil pessoas que lotavam o barracão da escola cantaram junto com Milton como se estivessem em um karaokê coletivo.
 
Na volta para casa, dentro da van, Milton descreveu assim o que sentiu no palco da escola: "Eu acho que a Portela quer me matar do coração." E deu uma risada. No dia seguinte, preferiu almoçar com amigos e músicos em sua casa. Comeu arroz com feijão e bife, ao lado do cantor Criolo, do compositor e cantor Flávio Venturini e do baterista Lincoln Cheib. Saíram todos juntos para a apresentação no Vivo Rio.
 
Depois do desfile da Portela, quando Milton atravessou a Sapucaí no último carro alegórico, e do lançamento do documentário, Augusto Nascimento começou a achar seu pai um tanto esquecido, com pouco apetite e o olhar muitas vezes fixo em um único ponto, como contou à ‘piauí’. O cantor também estava repetitivo, indo e voltando nas mesmas histórias em questão de minutos, o que era ainda mais estranho, porque Milton costumava passar horas contando passagens diferentes de sua vida. Ele tinha perdido algo da vivacidade que aparentava em fevereiro, quando conversamos sobre assuntos variados, desde sua vida em Belo Horizonte até o gosto de ver novelas à noite.
 
Augusto achou melhor chamar o clínico geral Weverton Siqueira, que acompanha Milton há dez anos. Em abril, começaram a ser realizados testes clínicos no cantor, com perguntas para averiguar diferentes domínios cognitivos, como atenção, capacidade de cálculo, orientação de espaço e linguagem. O médico disse a Augusto que, pela primeira vez em uma década, tinha se assustado com o declínio cognitivo de Milton. Em razão disso, pediu mais uma bateria de exames. "Quando vi que o meu pai apresentava uma piora brusca no quadro cognitivo, perguntei ao médico se seria uma loucura fazer uma viagem de motorhome com ele pelos Estados Unidos", contou Augusto. "O médico me respondeu que, se a ideia era cair de fato na estrada, a hora seria agora." O filho resolveu comprar as passagens.
 
Em 7 de maio, Milton e Augusto embarcaram para Dallas, no Texas. No dia seguinte, foram a um show de Paul Simon, que ficou feliz de saber da presença ilustre e pediu ao iluminador para mostrar Milton Nascimento na plateia. Depois do show, os dois músicos se encontraram. Em 9 de maio, pai e filho seguiram para Phoenix, capital do Arizona, onde alugaram um motorhome confortável, com cozinha, banheiro e duas camas. Mas o veículo só servia de casa durante o dia. À noite, os dois dormiam em residências alugadas por meio do Airbnb.
 
Com Augusto na direção, a dupla percorreu 4 mil km durante dezesseis dias, atravessando os estados de Arizona, Utah, Idaho, Wyoming e Montana. “Meu pai sempre viajou do meu lado, como copiloto." Às vezes, o cantor não queria fazer determinados passeios, mas, depois de ser convencido de que valia a pena, acabava se divertindo. “Fiquei feliz de caminhar pelos parques empurrando meu pai na cadeira de rodas", diz o filho, que visitou com ele o Grand Canyon e o Parque Nacional de Yellowstone.
 
Durante a viagem, Augusto notou algumas alterações cognitivas em Milton, que não identificava o que era ironia ou brincadeira. “Mas ele estava totalmente presente, ainda que com as limitações de um homem de 82 anos com questões de saúde." Milton se lembrava bem das casas em que tinha se hospedado com o filho durante a viagem e descrevia com clareza os lugares de que mais gostara. Também escolhia as músicas a serem tocadas no percurso, e foram os Beatles que embalaram grande parte da viagem, com os álbuns ‘Abbey Road’, ‘Yellow Submarine’ e ‘Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band’, um dos favoritos do cantor.
 
Na volta ao Rio, Milton falou muito da viagem. “Meu pai contava para todo mundo como se tivesse sido a melhor coisa da vida dele", recorda Augusto. O filho achou que tinha valido a pena aquela aventura. Um dos que ouviram as histórias foi o médico Weverton Siqueira, que se encontrou com o cantor logo depois da chegada. "Estive com o Bituca [o apelido de Milton] na semana em que ele voltou dos Estados Unidos. Ele me descreveu os passeios em detalhes, mas logo depois houve uma aceleração do quadro de forma muito rápida", diz o médico.
 
Mineiro de Belo Horizonte e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Siqueira conheceu Milton em 2015. À época, o quadro de depressão do artista se agravara e ele não queria sair da cama nem receber amigos. Indicado por um antigo professor em quem o cantor tinha grande confiança, Siqueira viajou de Belo Horizonte ao Rio para examinar o paciente. "Foi uma consulta seca, com respostas monossilábicas. Eu me vi diante de um homem cansado e desesperançado", conta o médico.
 
Quando ele perguntou a Milton se estava com algum problema digestivo, o cantor respondeu: "Não." Quando indagou se o coração estava funcionando bem, a resposta foi: "Tá bem." Siqueira, então, decidiu recorrer a um método heterodoxo. "Fiz uma pergunta que me fez ganhá-lo: E como está o seu outro coração?", me referindo à situação emocional dele.” Milton fez um breve silêncio e disse: "Nunca nenhum médico me perguntou isso." A partir de então, estabeleceu-se entre os dois uma relação de empatia e confiança. O músico tímido destrambelhou a falar. Contou sobre sua vida, dizia se sentir rodeado por muita gente e, ao mesmo tempo, solitário.
 
Um dos problemas relacionados à sua saúde era não ter um médico que centralizasse os cuidados. O cardiologista receitava um remédio, depois o neurologista indicava outro, e assim por diante. Milton tinha uma polifarmácia em casa, tomava altas doses de medicamentos, um interferindo no resultado do outro, e não havia ninguém para olhar com lupa o conjunto de seus sintomas. "Ele tinha muitos médicos soltos, que não comunicavam entre si e um excesso de remédios que causavam efeitos colaterais. Ao tomar as rédeas dessa questão, ele ressuscitou", descreve Siqueira.
 
A ressurreição ocorreu em um momento particularmente feliz: coincidiu com o florescimento da relação de Milton com seu filho.
 
Augusto Nascimento nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, filho de um engenheiro e de uma administradora de empresas. Quando tinha 2 anos, sua família se mudou para Juiz de Fora, em Minas Gerais. Antes que ele chegasse à adolescência, seu pai biológico, com quem tinha uma relação conturbada, se afastou da família. O encontro com Milton aconteceu em 2007, quando Augusto estava com 13 anos, na casa de amigos cujos pais eram próximos do cantor. Quando o jovem fez 15 anos, sua mãe decidiu voltar para o Centro-Oeste e ele ficou sozinho em Juiz de Fora. Milton, que sempre teve o desejo de ser pai, gostava de ir à cidade entre um show e outro, e passou a se encontrar com Augusto com frequência. O passatempo predileto dos dois era ver filmes.
 
O cantor vivia nessa época um processo acentuado de depressão, entrando e saindo de clínicas, sem que a imprensa soubesse. Diabético, ele esquecia de tomar insulina e se alimentava de forma desregrada. Chegou a ter que desmarcar shows em cima da hora para fazer exames ou ser internado, como ocorreu em 2013, depois de uma crise familiar que agravou o seu estado de saúde. A melhor amiga do cantor, Sue Saphira, que cuidava de suas contas pessoais, lhe disse que ele precisava parar de emprestar dinheiro a parentes e amigos, que nunca lhe pagavam. Do contrário ficaria sem um tostão.
 
O cantor nunca se preocupou muito com a saúde. Durante algum tempo se escorou na bebida, sobretudo em Campari. Nos anos 1990, durante uma viagem ao Japão com a amiga e então empresária Marilene Gondim, estava no hotel quando ocorreu um forte terremoto. "Tudo tremia, as coisas caíam. Eu fiquei com medo de morrer”, me contou ele, em fevereiro passado. Naquele momento, no Japão, fez uma promessa - sobre a qual manteve segredo.
 
Ao voltar da viagem, foi visitar sua mãe em Três Pontas, em Minas Gerais. Quando entrou na casa, Lília Campos pegou na mão do filho e o levou até o pomar. Em silêncio, ela apontou para uma laranjeira, plantada por Milton e que nunca tinha dado nenhum fruto. A árvore agora estava cheia de folhas e laranjas. "A minha mãe apenas me disse: 'Eu sei que você parou de beber"", ele recordou. A partir de então, Milton nunca mais ingeriu bebida alcoólica. Promessa cumprida.
 
Mas o estrago já era grande. Em 1996, ele perdeu muito peso por causa da vida desregrada: alimentava-se mal, dormia de forma desordenada, queixava-se de indisposição constante. Um dia, em Nova York, onde fora gravar o álbum ‘Nascimento’, acordou com a boca muito inchada. Gondim, que viajara com ele, pensou que era um problema dentário, mas achou melhor passar em um médico. Feito o exame de sangue, descobriu-se que Milton tinha diabetes e estava naquele momento com um quadro de hiperglicemia.
 
De volta ao Brasil, bastante magro, Milton gravou uma participação no programa de humor ‘Sai de baixo’, da Rede Globo. "O Bituca ama novela e amava esse programa, gravou feliz da vida", lembra Gondim, a única ex-empresária com quem o músico e seu filho mantêm boa relação. A participação desencadeou uma rede de mentiras. Em dezembro de 1996, a Folha de S. Paulo disse na matéria ‘Milton grava Sai de Baixo mais magro’ que havia gente falando que o cantor estava com Aids. Gondim fez um
comunicado à imprensa, anexando o diagnóstico assinado pelo médico americano Steven Lamm, da Universidade de Nova York, segundo o qual Milton sofria de um quadro grave de diabetes tipo 2 e não tinha qualquer doença infectocontagiosa. Não adiantou muita coisa. O boato custou a arrefecer.
 
As coisas não melhoraram nos anos seguintes. No início da década de 2010, Milton só era chamado para se apresentar em casas de shows modestas e em cidades pequenas, muitas vezes com estrutura pouco condizente com a sua estatura artística. Como ocorreu em janeiro de 2015, em Pedralva, município do Sul de Minas com cerca de 10 mil habitantes. "Esse show, que já tinha sido adiado, não deveria ter acontecido", diz o guitarrista Wilson Lopes, amigo e integrante da banda de Nascimento desde 1993. "Bituca estava abatido, eu questionei para que o show não acontecesse."
 
Aos 72 anos, Milton subiu ao palco apoiado em um homem. Sentou-se em uma cadeira e não conseguiu cantar uma música sequer. "Não cantou nada, não tinha a menor condição", recorda Lopes. "O que salvou foi a plateia: logo na primeira música, todos começaram a cantar. Daí entendi que aquele show seria aquilo. Eu até me emocionei, Bituca transcende. A plateia entendeu tudo e sequer pediu bis." O médico e compositor Luiz Paulo Goulart, amigo de Milton, definiu assim o episódio em Pedralva: "Um encontro histórico entre a fragilidade humana e a força da música que une as pessoas." Semanas depois da apresentação, Lopes foi à casa de Milton no Rio. Encontrou o amigo apático e sem forças.
 
Depois desse show fatídico, Milton mergulhou fundo na depressão e suas internações se tornaram mais frequentes. No hospital, invariavelmente ficava sozinho, sem companhia. Hoje, Augusto avalia que muitos que rodeavam Milton assistiram ao declínio do cantor sem fazer nada. "Para tirarem o restinho de ouro que tinha na mina, ele vivia dopado, aéreo, alheio a tudo, mas cumpria uma agenda de shows", diz. "Ele vivia rodeado de gente, mas era solitário. Ninguém se importava com ele, na verdade." Era uma espécie de Britney Spears, que foi obrigada a fazer shows para enriquecer o pai abusador e controlador.
 
À época, Augusto tinha 21 anos e já estava estudando direito em Juiz de Fora. Milton começou a ir com frequência à cidade mineira. Como não aguentava mais ficar sozinho, se hospedava durante dias no apartamento de quarto e sala alugado pelo estudante.
 
Foram meses de idas e vindas entre o Rio e Juiz de Fora, até que, no começo de 2016, a casa do músico no Rio precisou ser reformada porque o telhado estava infestado de cupim. Milton decidiu se mudar para Juiz de Fora. Alugou uma casa, e Augusto foi morar com ele. Naquele momento, a apatia do cantor era tamanha que ele nem escutava música nem tocava qualquer instrumento. Passava o dia diante da tevê, com um balde do lado, por causa de violentas crises de vômito. Augusto aprendeu a ministrar insulina, a medir pressão, e os dois começaram a ter a vida familiar que nunca haviam tido. Pouco a pouco, Milton apresentou sinais de melhora, incrementada com a prática de exercícios físicos e as consultas com psiquiatra.
 
Foi Milton Nascimento quem perguntou a Augusto: "Você quer ser meu filho?" Assim como o cantor buscava um filho, o jovem buscava um pai. "A nossa relação só se consagrou e se consolidou porque eu tinha a mesma lacuna de vida", diz Augusto. "Eu não tinha um pai, ele não tinha um filho. Além disso, eu também era sozinho, minha mãe tinha se mudado para Cuiabá. Havia espaço para ele na minha vida, e na vida dele para mim."
 
A adoção é uma experiência da qual Milton pode falar com propriedade. Sua mãe, Maria do Carmo Nascimento, era de Juiz de Fora e deixou a cidade ainda jovem para tentar a vida no Rio de Janeiro. Foi trabalhar como empregada doméstica em uma casa na Tijuca e, depois de um romance com um motorneiro chamado João, deu à luz Milton. Quando a criança tinha 2 anos, Maria do Carmo morreu de tuberculose. Uma das filhas dos patrões, Lília, havia se apegado fortemente ao menino, mas Milton foi enviado para a avó materna, em Juiz de Fora.
 
Ele passava o dia sentado na calçada em frente à casa da avó, em completo desalento. Até que um dia, viu se aproximar um carro, com Lília, e o marido dela, Josino Campos. Os dois tinham ido buscar o menino para viver com eles em Três Pontas. "Existia esse amor louco entre nossa mãe e aquela criança", conta Jaceline Silva Campos Basílio, de 61 anos. "Ela não aguentou ficar muito tempo sem ele." Milton só foi oficializado como filho do casal aos 45 anos de idade, quando a adoção foi adotar uma criança muitas vezes e não registrada em cartório.
 
Em Três Pontas, Milton era o filho negro de um casal de brancos. Mas não era o único filho adotivo de Lília e Josino Campos. O casal adotou também Fernando e Elisabeth, duas crianças brancas, e só teve uma filha biológica. "Eu sou a única filha legítima", diz Jaceline, que nasceu quando o cantor, o mais velho dos irmãos, já tinha 21 anos e vivia fora de Três Pontas. O irmão Fernando faleceu por complicações da diabetes. A irmã Elisabeth, de 66 anos, vive em Três Pontas. Milton ainda tem contato com Jaceline.
 
Embora não fossem ricos, Lília e Josino Campos participavam da vida social de Três Pontas. Ela trabalhava como professora de música e cantava em um coral, aproveitando as lições que tivera com Heitor Villa-Lobos na adolescência, no Rio de Janeiro. Josino era técnico em eletrônica e radialista. Nada disso impediu a criança de ser vítima de racismo. Milton foi proibido de entrar no Clube Literário Recreativo Trespontano e não pôde ir ao seu próprio baile de formatura, entre outras atrocidades. "Era o contexto de décadas atrás. Isso não quer dizer que a cidade era racista", justifica Jaceline, que também vive em Três Pontas. Apesar disso, o amor de Milton pela cidade nunca arrefeceu e ele fez ali alguns shows gratuitos, às vezes com amigos, como Chico Buarque, Fafá de Belém e Gonzaguinha. "Teve uma vez que faltou água e comida na cidade porque todo mundo daqui e dos arredores veio ver o show", recorda Jaceline.
 
A amiga Sue Saphira conta que Milton sempre sonhou ser pai. "Ele quis, deu certo. Quando resolveu adotar o Augustinho, eu estava tão ressabiada por ver meu amigo sofrer por tentar e não conseguir que passei uns dois anos chamando o Augustinho de Augusto", diz Saphira, que conheceu Milton em 1966, em um festival de música em Salvador. "Mas Bituca tem o tempo dele, existe um tempo 'bituquês', que é sem pressa. Ele sabia, no fundo, que no tempo dele tudo daria certo."
 
Milton teve três relacionamentos longos com mulheres, o segundo deles com uma comerciante paulista. "Nos anos 1960, era uma dádiva. Dormíamos com quem queríamos sem sentimento de culpa. Depois veio o black is beautiful, e branco e preto transavam sem racismo. Talvez por eu ser paulista e loira, nós tivemos um caso de amor", disse ela à ‘Folha de S.Paulo’, que identificou a comerciante apenas como Káritas. A reportagem saiu em agosto de 1997, por ocasião de um show de Milton Nascimento.
 
Em 1972, Káritas deu à luz a Pablo Ferreira, fruto de outro relacionamento, e Milton ficou entusiasmado com a ideia de estabelecer uma relação paternal com o menino, para quem compôs uma canção, chamada Pablo. Em maio de 1974, quando iria se apresentar na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (USP), o cantor pensou em levar Pablo ao palco. Káritas não concordou. Como o álbum ‘Milagre dos Peixes’ (1973) tivera várias canções censuradas pela ditadura, ela temia que o show fosse alvo de alguma violência política. Mas nada ocorreu. No momento que Milton cantou ‘Pablo’, diversos pais levantaram os seus filhos para o alto.
 
Na época, o então secretário de Segurança Pública de São Paulo, coronel Erasmo Dias, havia dito que não queria a presença de Milton nos palcos da capital, como relata a jornalista mineira Maria Dolores no livro ‘Travessia: a vida de Milton Nascimento’. (Erasmo Dias gostava de perseguir alunos: em uma invasão à PUC-SP em 1977, prendeu 854 pessoas. Em 2023, governador Tarcísio de Freitas homenageou o coronel, batizando com o nome dele um entroncamento de rodovias em Paraguaçu Paulista, cidade natal de Dias.)
 
Algum tempo depois do show na USP, Milton recebeu uma ligação em que a pessoa do outro lado da linha, depois de citar o nome e o endereço de Káritas e Pablo, falou que, se o cantor continuasse se apresentando em universidades paulistas, o pior poderia acontecer. Assustado, Milton retornou ao Rio e se afastou da namorada e da criança. Pablo não tinha completado 3 anos. “O Bituca sofreu intimidações e resolveu sair para preservar o Pablo e a mãe dele. O meu amigo se afastou, não falou nada para ninguém por cuidado com as pessoas", diz Saphira. "Não à toa, tempos depois escreveu uma música chamada ‘Sofro calado’."
 
Milton Nascimento quis entrar com um processo de adoção, por se incomodar com o fato de o filho não ter o seu sobrenome no documento de identidade. Os dois contrataram uma advogada de Juiz de Fora. Augusto conta que, de início, sua mãe, Sandra Kesrouani, achou estranho o pedido de adoção, mas acabou apoiando. Ele segue sem ter contato com seu pai biológico, a quem se refere como "genitor". 
 
O processo de adoção durou pouco mais de um ano. Ao final de 2017, veio a sentença final. Quando souberam do veredicto, Milton e Augusto estavam no Aeroporto da Zona da Mata, em Juiz de Fora. O cantor deu um grito e abraçou o filho. As pessoas em volta olharam, surpresas. Depois da sentença, Augusto se recorda de apenas um gesto de delicadeza da parte dos amigos: "A Sue foi a única pessoa que, quando soube da adoção, me mandou flores." 
 
Em um primeiro momento, o mundo da música foi tomado por uma série de intrigas pesadíssimas. Alguns chegaram a dizer que Augusto não passava de um interesseiro. "Eu nunca liguei para isso, sabia que o tempo seria o senhor da razão", diz ele. "Muitos que me atacaram deixaram o meu pai agonizar, pensando apenas em sugar algum lucro. Eu tinha o objetivo de colocar esse ídolo da música em seu espaço devido, fazer shows em lugares à altura, pensar em documentário, organizar a casa e melhorar o quadro de saúde."
 
Milton não sabia quanto gastava por mês nem o tamanho do seu patrimônio. Certa vez, só quando recebeu uma cobrança do imposto municipal de um terreno em Alfenas, no interior de Minas, Augusto tomou conhecimento dessa propriedade de doze hectares do cantor. "Para você ter uma ideia, o meu pai era padrinho de batismo de 180 pessoas, que sempre pediam ajuda para festas, casamentos etc." Adotado oficialmente como filho, Augusto se tornou o único herdeiro de Milton.
 
No começo de 2017, com o quadro de depressão controlado, o cantor disse ao filho que estava com vontade de voltar a fazer shows. Sentia saudades da rotina de ensaios, do palco, de pegar a estrada. O primeiro aconteceu no dia 25 de março de 2017, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. "Quando saiu do palco, ele me abraçou e disse no meu ouvido que era para eu marcar mais." Augusto enviou uma notificação aos antigos empresários, com os quais o artista não tinha um contrato formal assinado, informando que ele próprio passaria a empresariar o seu pai.
 
Milton venceu a depressão para viver, na última década, alguns dos momentos mais especiais de sua vida. Sua última turnê pelo país lotou estádios em várias capitais, apesar de ele, naturalmente, já não ter o vigor de alguns anos atrás. Fez shows na Dinamarca, Noruega, Itália, Alemanha e França, entre outros países. Lançou um novo álbum, ‘Milton + Esperanza’, ao lado da cantora americana Esperanza Spalding, em 2024. Passou as festas de fim de ano com a família materna de Augusto, e ficou amigo íntimo de Said Kesrouani, o avô de seu filho, com quem começou a trocar ligações telefônicas. "A minha família também adotou o meu pai", diz Augusto.
 
Em fevereiro deste ano, antes do show no Vivo Rio e do desfile da Portela, Milton viajou a Los Angeles para a entrega do Grammy Awards. O disco ‘Milton + Esperanza’ estava concorrendo na categoria Melhor Álbum de Jazz Vocal (mas não foi o vencedor). Na noite da entrega dos troféus, já vestido de smoking e pronto para o evento, ele soube que não teria espaço à mesa dos artistas especiais. O seu lugar seria uma acomodação na arquibancada. Em protesto, ele não compareceu à cerimônia. Esperanza postou nas redes a sua revolta com a situação. "Esta lenda vida deveria estar sentada aqui", escreveu ela em um cartaz com a imagem de Milton, que fotografou e postou no Instagram.
 
No mês passado, o Grammy Latino (premiação diferente do Grammy Awards) anunciou a indicação de Milton Nascimento em três categorias: Melhor Canção em Língua Portuguesa - por ‘Um vento passou’ (para Paul Simon), Melhor Interpretação Urbana em Língua Portuguesa - por ‘Demoro a dormir’, ao lado de Djonga, e Melhor Vídeo Musical Versão Longa, pelo documentário ‘Milton Bituca Nascimento’. A premiação será no próximo dia 13 de novembro.
 
Poucas semanas após o retorno da viagem de motorhome pelos Estados Unidos, Milton Nascimento recebeu um novo diagnóstico médico. Augusto contou à piauí que ele está sofrendo de demência por corpos de Lewy (DCL). É o terceiro tipo mais comum de demência, resultado da degeneração e morte de células nervosas no cérebro, que se deterioram quando apresentam depósitos anormais de proteína alfa-sinucleína, chamados "corpos de Lewy". A DCL tem sintomas parecidos com os do mal de Alzheimer e, no que diz respeito às questões motoras, ao Parkinson - por isso, o diagnóstico anterior de Milton era de Parkinson. “O andar arrastado, a boca enrijecida e os dedos fazendo repetições como se estivessem dedilhando são características dessas doenças", explica Siqueira, o médico do cantor.
 
Na DCL, no entanto, de forma mais específica, os pacientes manifestam alucinações visuais e auditivas, perdem a noção de profundidade e apresentam sinais de irritabilidade. "As demências nem sempre têm progressão gradativa e contínua. Pode ocorrer uma queda brusca e forte de cognição, o que é chamado de efeito escada", diz Siqueira. É o caso de Milton.
 
O cantor tem sido atendido por clínico geral, neurologista e nutricionista. Também dispõe da ajuda de enfermeiros durante 24 horas por dia. Toda essa estrutura pode ajudar a retardar o aparecimento de certos sintomas, mas o quadro é irreversível e progressivo. Uma das maiores dificuldades atuais é alimentá-lo.
 
No dia 21 de junho passado, quando estava em Teresina a trabalho, Augusto recebeu uma ligação de sua casa no Rio. Milton não conseguia se levantar da cama nem comer. O filho ligou para amigos, que levaram o cantor ao hospital e embarcou às pressas para o Rio. Milton estava com um quadro de desidratação, bastante comum nesse tipo de demência, e teve alta depois de tomar soro.
 
Nas últimas semanas, o cantor tem recebido poucas visitas. Amigos deixaram de procurá-lo ou ligar para ele, porque, além das limitações para interagir, agora não é conveniente fazer uma foto para postar nas redes sociais. Márcio Borges, seu parceiro de vida e de Clube da Esquina, é uma exceção: esteve com Milton na primeira semana de setembro. Mas o cantor não estabelece diálogos e está alheio a tudo. Uma de suas raras reações é chamar o filho para se sentar ao seu lado no sofá da antessala do seu quarto, onde há duas almofadas estampadas com as capas dos álbuns ‘Yellow Submarine’ e ‘Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band’.
 
O quarto de Milton é decorado com uma foto enorme em que ele aparece abraçado à amiga Elis Regina, um boneco com a figura de Paul McCartney e um capacete assinado por Ayrton Senna. Há inúmeros prêmios em exibição, com destaque para os cinco gramofones – os troféus do Grammy-, dispostos em cima do piano, na antessala. No mesmo local, está o seu primeiro troféu: o de melhor intérprete, por ‘Travessia’, na segunda edição do Festival Internacional da Canção, em 1967. Na mesinha ao lado de sua cama, fica o objeto mais valioso. É uma cópia da nova certidão de nascimento de Augusto, em que consta, ao lado do nome da mãe, Sandra Kesrouani, o nome do pai: Milton Nascimento.
PIAUI 

 

 


 

 

O Messias de Lula

 

O Messias de Lula


Com a provável indicação do chefe da AGU para o Supremo, o presidente aposta em uma reaproximação com os evangélicos


Por Maurício Thuswohl  

 A “Parábola do Semeador”, narrada nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, conta a história de um lavrador que espalhou sementes em diferentes tipos de solo. Algumas ficaram pelo caminho e foram devoradas por aves. Outras caíram em terreno pedregoso e até germinaram, mas logo secaram por falta de raí­zes. Houve também as sufocadas por espinhos. Só as que encontraram terra fértil vingaram e deram frutos. Assim é a palavra do Senhor: só frutifica quando acolhida por corações dispostos a ouvi-la.

É com base nessa sabedoria que Lula tenta construir um novo canal de diálogo com o eleitorado evangélico, um dos segmentos mais refratários ao seu governo. Entre os fiéis, a taxa de desaprovação (61%) ainda supera, com folga, a de aprovação (35%), segundo levantamento do Instituto Quaest divulgado em setembro. O presidente sabe: reverter, ainda que parcialmente, esse cenário pode ser decisivo na disputa pela reeleição no ano que vem.

Alguns gestos na direção dos evangélicos vêm sendo feitos pelo governo, pelo PT e pela esquerda em geral desde o início do terceiro mandato de Lula. O mais importante deles deve ser a escolha de Jorge Messias, advogado-geral da União e fiel da Igreja Batista Cristã de Brasília, para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal com a aposentadoria precoce de Luís Roberto Barroso. O anúncio só deve ocorrer na próxima semana, após o retorno do presidente de visitas oficiais à Indonésia e Malásia. Lula já está com “convicção formada”, afirmou à CNN Brasil o líder do governo no Senado, Jaques ­Wagner (PT). “Entendo que ele ainda não tenha oficializado porque faltam algumas conversas para azeitar as indicações.”

    Entre os fiéis, a desaprovação ao governo (61%) é bem superior à aprovação (35%)

Nordestino, jovem, leal ao governo, com sólida formação jurídica, presença forte nas redes sociais e integrante de uma igreja cristã tradicional, Jorge Messias reú­ne diversos predicados para ocupar uma cadeira no STF – apesar dos apelos de movimentos sociais por maior representatividade racial e de gênero em um tribunal que, em 134 anos, teve apenas três mulheres e nenhuma ministra negra. Sua indicação é vista, porém, como estratégica para reconquistar terreno num setor que se tornou majoritariamente hostil ao petismo. Lula perdeu para Bolsonaro em 11 dos 14 estados com maior proporção de evangélicos, segundo o Censo do IBGE.

O presidente aposta na capacidade de Jorge Messias dialogar não apenas com evangélicos tradicionais, mas também de se aproximar do segmento neopentecostal, majoritariamente ligado ao bolsonarismo. Dois episódios recentes ilustram esse potencial. O primeiro foi o encontro entre Lula e o bispo Samuel Ferreira, líder nacional da Assembleia de Deus Madureira – uma das maiores denominações do País, que apoiou Bolsonaro em 2022. A reunião contou com a presença da ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, e do deputado Cezinha de Madureira (PSD), e terminou em uma roda de oração. “Oramos a Deus pelo Brasil e por Messias. Dissemos ao presidente que pode contar conosco e que trabalharemos por seu indicado junto ao Senado”, afirmou o parlamentar, antes de arrematar: “Não é por ser de esquerda que a pessoa não é de Deus”.

Nas fileiras bolsonaristas, nem todos demonstram abertura. “Um evangélico de esquerda, sem interlocução, não agrada à Frente Parlamentar Evangélica”, desdenhou o deputado Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara. Já os pastores mais estridentes da direita, como Silas Malafaia e RR Soares, têm preferido o silêncio diante da possível indicação ao STF.


No campo evangélico tradicional (e também fora dele), surpreendeu a incomum dobradinha entre Jorge Messias e André Mendonça, ministro do STF indicado por Bolsonaro em 2021, após intensa campanha junto à base religiosa conservadora. O magistrado “terrivelmente evangélico”, ligado à Igreja Presbiteriana e ex-titular da Advocacia-Geral da União, tem procurado colegas da Corte e senadores para afirmar que, entre os nomes cogitados para suceder a Barroso, Messias é seu favorito.

O contato entre o atual e o provável futuro ministro foi facilitado por parlamentares como o deputado Cezinha, ex-presidente da Frente Parlamentar Evangélica, e o senador Jaques Wagner, para quem Messias já trabalhou como chefe de gabinete. A aproximação começou, porém, quando Mendonça disputava sua vaga no STF, e Messias atuou junto a senadores do centro e da esquerda para superar resistências ao bolsonarista. Agora, Mendonça deve retribuir. “Nunca criamos problemas para a indicação de Messias. Temos respeito e carinho por ele, que é um grande jurista. Tenho certeza de que Mendonça ajudará o Messias”, afirma o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas.

Curiosamente, a maior resistência à indicação de Mendonça em 2021 partiu do presidente do Senado, Davi ­Alcolumbre (União Brasil), o mesmo que agora se opõe a Messias. Na época, o senador articulava em favor do então procurador-geral da República, Augusto Aras. Desta vez, seu preferido é o também senador Rodrigo Pacheco (PSD). Ainda assim, o martelo foi batido a favor de Messias em uma reunião entre Lula e Alcolumbre, na terça-feira 21. Coincidência ou não, na véspera do encontro, o Ibama autorizou a Petrobras a iniciar testes de exploração no bloco FZA–M–59, na Margem Equatorial, a cerca de 500 quilômetros da Foz do Rio Amazonas e a 175 da costa do Amapá. De olho nos royalties do petróleo, que podem beneficiar seu estado, Alcolumbre tem especial interesse na liberação da licença.

    Antes de viajar para a Ásia, Lula comunicou ao presidente do Senado sobre sua decisão

Recorrendo a um bem-humorado trocadilho, o advogado e procurador de Justiça aposentado Lenio Streck diz que Lula vai “matar dois coelhos com uma ‘messiada’ só”, ao indicar o advogado-geral da União ao STF. “O presidente nomeia um ministro qualificado e alinhado com o governo, e ainda conquista um trunfo na difícil missão de aproximar a esquerda dos evangélicos.” Para Streck, professor de Direito Constitucional na Unisinos e pós-doutor pela Universidade de Lisboa, Messias é um jurista calejado nas disputas institucionais. “Na AGU, Messias mostrou-se uma espécie de camisa 10 do governo. Ministros da Justiça e advogados-gerais levam vantagem por lidarem diretamente com os temas mais sensíveis da República. Messias soma a isso um elemento muito brasileiro: o peso das religiões.”

Deputado federal pelo PSOL, o pastor Henrique Vieira avalia que a indicação de Messias pode acenar aos conservadores, mas não necessariamente à base evangélica como um todo. “É um erro supor que o diálogo com os fiéis se dá apenas pelo conservadorismo.” alerta. “Generalizar esse campo e pensar que dialogar é sempre ceder, e não debater com respeito às diferenças, é um equívoco. É a repetição de uma estratégia fracassada, que depois é apropriada pela direita.”

Para Vieira, o governo não deve limitar-se ao diálogo com grandes lideranças religiosas, mas buscar uma conexão direta com a base evangélica, que é plural e diversa. “Não se trata de um bloco homogêneo. Pautas socioeconômicas como emprego, renda, isenção do Imposto de Renda e direito à moradia falam diretamente com esse público, que compõe a classe trabalhadora”, afirma. O deputado destaca ainda a importância de evitar a “partidarização dos púlpitos” e elogia a postura de Lula, que tem cobrado da esquerda um diálogo mais amplo com os eleitores cristãos. “Essa atitude tende a gerar respeito entre os fiéis. É um caminho possível de aproximação.”



Nos últimos dias, Lula voltou a comentar a relação política com os evangélicos. Durante um congresso do PCdoB, afirmou que “2026 será um ano sagrado” e que a esquerda precisa “agir de forma diferente” ao dialogar com o segmento. “Os evangélicos não são contra nós – nós é que não sabemos conversar com eles. O erro é nosso. Nos distanciamos do povo. Nossa linguagem e nosso discurso estão muito longe da compreensão de milhões que gostariam de nos ouvir. O desafio é convencer quem ainda não está conosco a caminhar ao nosso lado”, disse.

A ordem no governo e no PT é reconstruir antigas pontes – e erguer novas – com o eleitorado evangélico. A um ano das eleições, quem assume protagonismo nessa missão é a primeira-dama, Janja da Silva. Neste mês, ela participou, em Caruaru, do sétimo encontro promovido pela Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito com mulheres cristãs. Outros já ocorreram em Brasília, Salvador, Manaus e Rio de Janeiro. Católica, Janja destacou em suas redes sociais a “potente troca de experiências” nas reuniões. “Momentos como esse, de escuta e compartilhamento de vivências, encorajam cada uma de nós a seguir de cabeça erguida.”

Coordenadora da Frente e organizadora do primeiro encontro, realizado no Rio, Nilza Valéria Zacarias diz que as mulheres têm recebido bem o diálogo com a primeira-dama. “Elas querem ser ouvidas sobre o trabalho que realizam em suas igrejas e comunidades, aliviando o sofrimento de quem mais precisa. São elas que acolhem outras mulheres, distribuem alimentos e promovem atividades no contraturno escolar, para afastar crianças das ruas. As conversas têm girado em torno de necessidades concretas, solidariedade e políticas públicas que gerem oportunidades.”

Nilza Zacarias destaca que Janja é uma aliada importante na promoção de políticas públicas. Ela lembra ainda que, nas periferias, cresce o número de mulheres que frequentam igrejas: “Faz todo sentido dialogar com elas. Nenhuma mulher é apenas evangélica. Ela também é mãe, trabalhadora, cuidadora, empreendedora. As igrejas funcionam como espaços de organização social, onde essas diferentes dimensões se encontram”.

    Janja e benedita têm participado de encontros com mulheres evangélicas

Estrela do programa radiofônico Papo de Crente e também coordenador da Frente, o pastor Ariovaldo Ramos afirma que os encontros entre mulheres evangélicas e a primeira-dama têm sido positivos, sobretudo por promoverem conhecimento mútuo. Ele ressalta, porém, que o propósito da entidade – defensora do Estado laico – nunca foi estabelecer um canal direto com o governo. “Nosso objetivo é mostrar aos fiéis que as chamadas pautas de esquerda são as que mais se alinham com a mensagem de Cristo. Criamos o programa de rádio, publicamos revistas temáticas com base no estudo bíblico e realizamos encontros para aprofundar esse debate”, explica.

Presente no evento com Janja no Rio, a deputada federal Benedita da Silva (PT) avalia que os encontros aproximam o governo dos evangélicos e ajudam a esclarecer a relação entre fé, cidadania e política. “Um exemplo é a compreensão de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos se inspira na Bíblia e nos valores cristãos”, diz. Integrante do núcleo evangélico do partido, a parlamentar reforça que “a fé sem obras é morta” e defende a coerência entre discurso e prática. “A palavra deve estar alinhada à melhora das condições de vida do povo e à soberania nacional. Do contrário, perde o sentido.”

Benedita é uma das apostas de Lula para conquistar o eleitorado evangélico na campanha do próximo ano. O presidente é o principal fiador da sua candidatura ao Senado, um apoio decisivo na ­disputa interna do PT no Rio. Para a deputada, o diálogo com esse público deve respeitar e valorizar a fé, além de reconhecer que as igrejas são comunidades que oferecem não apenas suporte espiritual, mas também oportunidades de trabalho e assistência aos mais vulneráveis. “O PT precisa mostrar, com dados concretos, as políticas públicas que fortalecem a família e esclarecer que Lula jamais combateu qualquer religião, muito pelo contrário”, afirma, citando iniciativas como a Lei da Liberdade Religiosa e a oficialização do Dia do Evangélico e da Marcha para Jesus. “Esses fatos incontestáveis comprovam que Lula e o PT nunca perseguiram os evangélicos e demonstram que a liberdade religiosa, tão valorizada por nós, só é garantida quando o Estado é laico, conforme determina a Constituição.”

Gleisi Hoffmann foi designada por Lula para ampliar o diálogo com “pastores progressistas” e parlamentares evangélicos de esquerda e centro. A ministra também coordena o esforço de outros ministros com boa relação junto a esse público, como Wellington Dias (Desenvolvimento Social) e Anielle Franco (Igualdade Racial). Nas conversas dos últimos dois meses, Hoffmann recebeu várias propostas e sugestões sobre a postura do governo. Entre as ideias apresentadas ao presidente estão a realização de um encontro nacional com evangélicos e a criação de uma assessoria especial para esse segmento na estrutura governamental. “As demandas estão na mesa”, diz.



No PT, a aproximação com o eleitorado evangélico passa pela Setorial Evangélica e pela Fundação Perseu Abramo. Em maio, a instituição ligada ao partido ofereceu aos militantes o curso “Fé e Democracia para Evangélicos e Evangélicas”, com o objetivo de preparar filiados para dialogar com esse segmento. Para as eleições municipais de 2024, o PT distribuiu uma cartilha orientando seus candidatos em todo o País sobre como se relacionar com os fiéis. O material destacava “o que fazer”, como valorizar a fé e a família, defender a verdade e os direitos humanos, falar sobre liberdade religiosa e ressaltar leis aprovadas pela legenda. Já as orientações sobre “o que não fazer” incluíam críticas a pastores e a cultos, menções a fundamentalismo e citações exageradas da Bíblia.

No que depender da vontade de algumas de suas lideranças, o PT ainda vai ter uma igreja evangélica pentecostal para chamar de sua. Vice-presidente nacional do partido, o prefeito de Maricá, Washington Quaquá, está montando na cidade fluminense a Igreja Jesus Libertador, que, segundo ele, terá uma orientação progressista. Quaquá defende que a disputa da narrativa política no meio evangélico não deve ficar restrita a pastores, muitos deles alinhados ao bolsonarismo. “O PT é um partido do povo e abriga diversas religiões, contando com muitos evangélicos entre seus filiados”, observa. “Precisamos ouvir e organizar a nossa base evangélica.”

O prefeito destaca a afinidade entre o discurso petista e os valores cristãos: “Temos todos os princípios de solidariedade e defesa dos pobres. Somos mais cristãos do que muitos que fazem estardalhaço se dizendo cristãos. Por isso, toda iniciativa de aproximação com as igrejas evangélicas é muito positiva”. Questionado por CartaCapital sobre se a “igreja petista” estará funcionando durante as eleições do ano que vem, Quaquá responde: “A Igreja Jesus Libertador já foi criada e está se estruturando. Aguardem”. • 

CARTA CAPITAL  

October 17, 2025

Loucura? Não, método

 

 Uma engrenagem planetária disciplinada movimenta a extrema-direita


Por Celso Pinto de Melo ...

Loucura? Não, método

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E nos tensos interregnos das transições entre o velho que se recusa a desaparecer e o nascer de novos tempos que fenômenos mórbidos proliferam. A política da extrema-direita, nos Estados Unidos ou no Brasil, é muitas vezes tratada como incoerente e irracional. É fácil zombar de seus rituais: pedidos de auxílio a extraterrestres, invocações ao AI-5 em meio a bandeiras verde-amarelas, a invasão do Capitólio com fantasias de viking. Tudo parece improviso de lunáticos. Por trás da aparência de caos, há, no entanto, uma engrenagem internacional disciplinada, operando com objetivos claros e articulada por think tanks ultraconservadores, como a Heritage Foundation.

Documentos como o Project 2025 e o Project Esther são faces complementares dessa estratégia. O primeiro organiza um manual para a captura do aparelho de Estado, o segundo mobiliza pânicos morais enraizados em interpretações religiosas. Ambos se apoiam em redes transnacionais que conectam igrejas, partidos, agências de desinformação e até editoras evangélicas brasileiras, como a Casa Publicadora das Assembleias de Deus. O objetivo é reconfigurar as democracias liberais, submetendo o Estado a uma moral religiosa conservadora, restringindo direitos civis e reinstalando uma ordem social hierarquizada sob o pretexto da defesa da liberdade.

Nos EUA, o Project 2025 propõe demissões em massa no serviço público, substituindo técnicos por militantes ideológicos, a fusão ou extinção de agências ambientais e educacionais, a imposição do nacionalismo cristão como doutrina oficial, o uso do Insurrection Act de 1807 para reprimir protestos e o desmonte de políticas de diversidade e inclusão. Algumas medidas foram testadas no governo Trump, como a saída do Acordo de Paris e os cortes em agências reguladoras. No Brasil de Bolsonaro, práticas semelhantes se expressaram no aparelhamento de órgãos públicos, no ataque a instâncias de controle e na disseminação sistemática do ódio e da desinformação.

A engrenagem não se restringe ao eixo EUA–Brasil. Ela conecta-se em eventos como as Conferências de Ação Política Conservadora, que reúnem líderes como Viktor Orbán, Giorgia Meloni, ­Santiago Abascal e Javier Milei em torno de uma pauta comum. Trata-se de uma internacional autoritária que compartilha métodos, recursos e legitimidade simbólica. Um alvo central é a produção de conhecimento crítico. A ofensiva anticiência desqualifica universidades, cientistas e educadores, promovendo teorias conspiratórias sobre gênero, globalismo, vacinas e clima. Pretende não apenas privatizar a educação, mas colonizar os currículos com dogmas, esvaziando as humanidades e enfraquecendo a capacidade de questionar o estabelecido.

O Project Esther, por sua vez, articula a dimensão religiosa. Enraizado na doutrina escatológica do dispensacionalismo, vê o Estado de Israel como cumprimento de profecias e transforma a política externa em ato de fé. Nos EUA, organizações como a Christians United for Israel dão corpo a essa visão. No Brasil, ela se difunde por meio de igrejas como a Assembleia de Deus, o Ministério Internacional da Restauração e a Sara Nossa Terra, impulsionada por lideranças como Silas Malafaia, Marco Feliciano, René Terra Nova, Robson Rodovalho e Damares Alves. Esse discurso confere uma pretensa superioridade moral às alianças entre fé e mercado político, criando justificativas religiosas para agendas autoritárias. No Brasil, esse roteiro ganhou expressão simbólica. O patrimônio cívico foi sequestrado e convertido em estandartes de guerra cultural. A bandeira verde e amarela passou a ser usada ao lado daquelas de Israel e dos EUA, compondo uma iconografia que associa nacionalismo a religiosidade e subordinação geopolítica.

    Uma internacional autoritária compartilha táticas, recursos e legitimidade simbólica

Eduardo Bolsonaro desempenha papel ativo como elo entre a CPAC brasileira e a Heritage Foundation, além de participar de eventos ligados ao sionismo cristão, projetando o Brasil como parte da mesma rede internacional. A Frente Parlamentar Evangélica reforça a lógica no Legislativo, enquanto o discurso fundamentalista serve como instrumento para minar a laicidade e os direitos civis. Nada disso é improviso: o ruído é tático. Escândalos performáticos funcionam para confundir, atrair atenção e deslegitimar o debate racional, enquanto o aparelho de Estado é manipulado nos bastidores.

Um aspecto adicional precisa ser destacado: o “método” não reside apenas nas instituições formais, mas também no ecossistema digital. Plataformas como Facebook, Twitter/X, YouTube e ­TikTok se consolidaram como canais de difusão de pânico moral e mobilização militante. Controlados por poucas big ­techs, seus algoritmos amplificam conteúdos polarizadores e premiam a desinformação e o discurso de ódio. A disputa não ocorre apenas no Congresso ou nas ruas, mas no espaço digital. Campanhas como o ­Brexit, a eleição norte-americana de 2016 e os disparos em massa no ­WhatsApp em 2018 no Brasil inauguraram uma era em que a manipulação das redes digitais é parte central do roteiro global. Nesse contexto, a aliança recente entre CEOs das big techs e a extrema-direita não é contingente, mas estratégica: redefine a esfera pública ao flexibilizar a moderação, amplificar o extremismo e contornar regulações. O resultado é um espaço assimétrico, onde algoritmos e infraestrutura privada se transformam em armas políticas, fragilizando a democracia, a ciência e as soberanias nacionais.

Não podemos nos deixar petrificar pelos olhares dessa Medusa. Assim como Perseu, para derrotá-la é preciso identificar suas limitações e tensionar suas vulnerabilidades. O que está em jogo vai além de eleições. É a própria estrutura democrática e laica da vida pública que se encontra sob ataque. Universidades, imprensa, agências reguladoras, direitos de minorias e o princípio da igualdade perante a lei são alvos preferenciais. A soberania nacional também é corroída, seja pelo alinhamento automático a interesses externos, pelo negacionismo climático ou pelo armamentismo travestido de nacionalismo. O resultado é um projeto de submissão sob a aparência de independência. Resistir a essa ofensiva não significa imitá-la em intolerância ou autoritarismo, mas fortalecer as vias democráticas. Isso implica defender a ciência, a educação pública e o pensamento livre, revitalizar órgãos de controle e agências reguladoras, reconquistar símbolos nacionais como patrimônio plural, denunciar o uso político da fé e reafirmar a laicidade do Estado como pilar de uma democracia inclusiva.  •

CARTA CAPITAL  

Senhores das armas


O aumento das tensões leva à explosão do gasto militar 
mundial e estimula o discurso belicista até no Brasil

Por João Paulo Charleaux... 


O gasto militar mundial bateu recorde em 2024 e tudo indica que deve continuar a subir neste e nos próximos anos, sem sinal de desaceleração. Desde o fim da Guerra Fria, em 1991, o mundo não gastava tanto dinheiro com armamentos como agora, e o Brasil dá sinais de querer acompanhar essa corrida.


No ano passado, o planeta atingiu o maior patamar de gastos bélicos em mais de 30 anos. Foram 2,7 trilhões de dólares, aumento de 9,4% em relação a 2023. Estados Unidos, China, Rússia, Alemanha e Índia lideram o ranking, nessa ordem, e respondem, juntos, por 60% do total global. Em termos de crescimento porcentual­, a nova corrida às armas é puxada por uma Europa que interpreta a invasão da Ucrânia como prenúncio de uma ação hostil da Rússia contra o continente. A sensação de insegurança europeia ganhou novo impulso após o presidente norte-americano, Donald Trump, ter se aproximado de Vladimir Putin, dando sinais de que o apoio dos EUA à Otan não é tão sólido e inquestionável como no passado. Mais recentemente, os voos de drones russos sobre países europeus tornaram ainda mais palpável a previsão de uma guerra, justificando a mobilização de recursos que agora consumirão o equivalente a ao menos 2% do PIB das nações do Velho Continente.


Na América Latina, as ações hostis dos EUA contra a Venezuela e o Brasil acenderam a luz amarela. Desde os anos 1960, a região não se sentia tão explicitamente fustigada pelos norte-americanos. No caso brasileiro, a hostilidade veio na forma de sanções unilaterais contra integrantes do Supremo Tribunal Federal envolvidos no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e na imposição de altas taxas contra exportações de uma série de produtos. Uma conversa entre os presidentes Lula e Trump na segunda-feira 6 abriu, porém, uma via de negociação antes inexistente entre as duas maiores economias do continente. Na Venezuela, o caso é ainda mais grave, com os EUA a deslocar tropas para o Caribe, perto da costa do país governado por Nicolás Maduro, a quem prometeram derrubar com o uso da força.


    Em 2024, os investimentos bélicos passaram de 2 trilhões de dólares


A inesperada militarização do entorno brasileiro e a escalada de declarações e atos inamistosos dos norte-americanos contra o Brasil ocorreram pouco antes de o ministro da Defesa, José Múcio, defender o aumento dos gastos militares. Em 30 de setembro, Múcio foi ao Senado reclamar dos atuais 135 milhões de reais previstos para a pasta em 2025. “Eu vim atrás de ajuda”, implorou aos integrantes da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, explicando que “a diplomacia e a defesa são como irmãs inseparáveis: duas armas à disposição do Estado para vencer a guerra da sobrevivência neste mundo de constantes transformações”.


A declaração é um eufemismo para as ameaças que o Brasil começa a perceber de forma mais clara contra si e em seu entorno. Semanas antes, o ministro de Minas e Energias, Alexandre Silveira, havia dito, na cerimônia de posse dos novos diretores da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear, no Rio de Janeiro, que “arroubos internacionais muito graves no mundo” atual justificariam o Brasil pensar no uso da tecnologia atômica “também para a defesa nacional”. “Um país como o nosso – prosseguiu o ministro –, que tem 11% da água doce do planeta, clima tropical, solo fértil e tantas riquezas minerais, precisa levar muito a sério a questão nuclear.” Na sequência, o ministério divulgou nota criticando o que chamou de “especulação” em torno das declarações do titular da pasta, e lembrou que o Brasil cumpre com suas obrigações nacionais e internacionais contra as armas atômicas.


As obrigações às quais a pasta se refere estão inscritas na Constituição de 1988, que proíbe o uso da energia nuclear para fins militares. O País resiste, no entanto, em aderir a documentos internacionais que reforçariam essa obrigação. O principal deles é o Tratado Sobre a Proibição de Armas Nucleares, que o Brasil assinou em 2017, mas ainda não ratificou. Para levar esse processo de adesão até o fim, o documento teria de passar pelo Congresso, mas se encontra retido nas mãos do relator, o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL–SP), que disse a ­CartaCapital ter “urgência zero” na tramitação. “O Brasil precisa de autonomia, tecnologia e coragem para enfrentar o mundo como ele é, não como alguns idealistas gostariam que fosse”, afirmou o parlamentar em seu voto contrário à adesão ao tratado internacional que busca impedir a fabricação, estocagem, uso ou transferência de armas nucleares no mundo.


Para Cristian Wittmann, professor da Universidade Federal do Pampa, o aumento mundial de gastos militares é uma resposta “aos conflitos em curso e ao enfraquecimento do Direito Internacional e do multilateralismo”. Na avaliação do acadêmico, também integrante da Campanha Internacional pela Abolição das Armas Nucleares, organização vencedora do Nobel da Paz em 2017, há hoje uma falta de confiança nos mecanismos criados para prevenir e coibir as guerras, o que faz com que os países voltem a considerar as armas nucleares como “uma forma nacional de afastar a interferência externa”. No caso do Brasil, Wittmann vê um “distanciamento dos princípios históricos brasileiros, de afastar o uso militar da energia nuclear”. Ele enxerga “uma contradição por parte de um governo que diz querer fortalecer o multilateralismo, mas que adota uma postura nacionalista, de aumentar o próprio gasto militar”, como pediu ­Múcio em sua visita ao Congresso.


Quando falam em aumento de gastos, em todo caso, políticos e militares brasileiros mencionam sempre investimentos em tecnologia de ponta, como os caças Gripen comprados da Suécia e os submarinos com propulsão nuclear, construídos em parceria com a França, mas a verdade é que 78% do total é consumido com pessoal. Nos EUA, esse porcentual­ é de apenas 22%. Entre salários da ativa e pensões, o País gastou 77,4 bilhões de reais em 2024 com as Forças Armadas. •

CARTA CAPITAL 


O aumento das tensões leva à explosão do gasto militar mundial e estimula o discurso belicista até no Brasil

POR JOÃO PAULO CHARLEAUX... 


October 15, 2025

Elsa Lanchester

 
MARIO BAGG 

 

Super-ricos de estimação

 

Super-ricos de estimação

 

 O professor australiano Carl Rhodes examina o mito do “bom bilionário” e o processo de legitimação das fortunas


Por Leonardo Moura 

A consciência pública sobre a concentração extrema de renda nas mãos de bilionários ainda é emergente, mas nunca esteve tão em evidência nos debates. Uma das vozes mais relevantes e provocadoras nesse campo é a do professor Carl ­Rhodes, da University of Technology Sydney, na Austrália.
Professor titular de Negócios e Sociedade, Rhodes tem se destacado por questionar as formas como o capitalismo contemporâneo mina os princípios da democracia liberal. Em defesa de uma prosperidade compartilhada e do entendimento sobre o papel das políticas públicas, ele propõe uma reformulação profunda do papel das empresas na sociedade.
Em seu livro mais recente, Stinking ­Rich: The Four Myths of the Good ­Billionaire (Podre de Rico: Os Quatro Mitos do Bom Bilionário), publicado pela Bristol University Press, Rhodes examina criticamente os caminhos usados para se legitimar a fortuna e o prestígio dos chamados “bons bilionários”.
Ele os divide em quatro arquétipos: o vigilante, que afirma proteger o mundo por meio de sua riqueza; o meritocrático, que atribui o sucesso exclusivamente ao esforço individual; o heroico, que se apresenta como visionário que transforma o sistema; e o generoso, que busca reconhecimento moral por meio da filantropia.
Autor de vários livros e articulista de opinião de veículos como The Guardian e ABC News, Rhodes possui mais de 11,6 mil citações de acordo com o Google ­Scholar, reflexo da influência de sua obra nos campos da ética empresarial, teoria organizacional e crítica ao poder corporativo.
Antes de dedicar-se à trajetória acadêmica, ela trabalhou em cargos de liderança em empresas como Citibank, Boston­ Consulting Group e AGL. 

 “Antes, escondia-se a riqueza por medo de revoluções, de reações populares. Hoje, ostenta-se”

 
CartaCapital: O que o motivou a escrever Stinking Rich?
Carl Rhodes: Foi uma coincidência que o livro tenha saído no mesmo ano da reeleição do Trump. Na verdade, terminei de escrevê-lo em meados de 2024. A questão dos bilionários – o aumento tanto no número deles quanto em sua visibilidade – me pareceu urgente, porque ela reflete o aumento da desigualdade dentro dos países, entre países, e até entre gerações. A pergunta que me guiou foi: como eles conseguem escapar impunes? Antes, escondia-se a riqueza por medo de revoluções, de reações populares. Hoje, ostenta-se. Veja o caso de Jeff Bezos (fundador da Amazon), casando-se ostensivamente em Veneza. Eles se tornaram ícones culturais, muitas vezes vistos como figuras morais ou benevolentes. O livro tenta desmontar esse mito e questionar como as democracias liberais permitem que uma desigualdade extrema se disfarce de excelência.
 
CC: Você acredita que o governo Trump ajudou a expor a moralidade que envolve os bilionários? Especialmente considerando que muitos empresários de tecnologia passaram a demonstrar, sem constrangimento, que agem guiados por interesses privados, mesmo quando influenciam políticas públicas?
CR: Sim, esse é um ponto de inflexão importante. As democracias liberais convivem com uma tensão constante entre o capitalismo e os ideais democráticos. Mas hoje é cada vez mais evidente que a economia serve aos interesses de poucos. Governos, universidades e instituições públicas que representam a sociedade estão sendo marginalizados. As corporações existem por força da lei e da sociedade, mas se comportam como uma espécie de Frankenstein, adaptando-se aos tempos. Bilionários mudam de lado político conforme lhes convém. Elon Musk, por exemplo, passou de democrata a republicano. O próprio Trump já apoiou os democratas. A ideologia central deles é o individualismo, o interesse próprio.

CC: Esse individualismo ressoa na classe média, que parece esquecer que não é pobre nem bilionária, mas acaba por legitimar a cultura dos bilionários?
CR: É uma boa observação. A classe média, sobretudo em tempos neoliberais, substituiu a solidariedade pelo individualismo. A classe média baixa está desaparecendo rapidamente, e o populismo de Trump alimentou-se dessa exclusão. A classe média profissional, aquela com diploma de nível superior e acesso a postos de trabalho avançados, ainda se sente segura, mas é uma ilusão. O “sonho americano” prometia sucesso para todos. Hoje, só uma minoria alcança isso. Tornou-se um sonho vazio. Mesmo assim, muitos acreditam estar do lado certo da desigualdade, validando sistemas que os excluem.
 
CC: Em seu livro anterior, Woke ­Capitalism, o senhor explorou como as corporações privadas se apropriaram de movimentos progressistas e pautas políticas… Como vê a relação entre ­wokeísmo, privatismo e cultura dos bilionários?
CR: Acho que estamos entrando na era pós-woke. Mas, no auge do wokeísmo, as empresas se apropriaram de movimentos de base, como Occupy Wall Street, Black Lives Matter e Me Too para promover suas­ marcas. Só que esses movimentos foram esvaziados de conteúdo econômico: direitos trabalhistas, salários, distribuição de renda. O wokeísmo virou estratégia corporativa. Agora que o clima político mudou, muitas dessas empresas, como a Meta, abandonaram essas causas. O que sobra é o velho interesse próprio.
 
CC: O que pensa sobre os entusiastas da singularidade e a cultura tech que defende deixar a Inteligência Artificial “crescer livremente”, como uma criança?
CR: Há muito exagero e fantasia nessa visão típica de uma cultura “tech bro”. Mas o que mais me preocupa é o pano de fundo cultural: um revival autoritário, marcado por um certo tipo de masculinidade. Não se trata apenas de tecnologia, mas da visão de mundo por trás dela. Vemos isso em figuras como Andrew Tate (influenciador digital conhecido pela retórica misógina e ostentação agressiva de uma masculinidade tóxica), Jordan ­Peterson (psicólogo canadense que se tornou referência para movimentos conservadores com sua crítica às políticas identitárias) e outros. É uma onda reacionária, ligada ao autoritarismo político.

 “A pergunta que me guiou foi: como eles conseguem passar impunes”, diz o pesquisador
 
CC: Isso se conecta com outro tema: o anti-intelectualismo. No Brasil, as humanidades são frequentemente desvalorizadas em relação às ciências exatas. Como o senhor vê seu próprio trabalho nesse ambiente, especialmente como professor em uma universidade tecnológica?
CR: É difícil. Enfrentamos o mesmo anti-intelectualismo aqui na Austrália. Meus primeiros livros eram muito acadêmicos, ninguém lia. Agora tento escrever para um público mais amplo, participar do debate público. As humanidades conseguem analisar cultura e sociedade de formas que nenhum algoritmo é capaz. Precisamos fazer mais, não menos. Recentemente, uma grande universidade daqui propôs acabar com os departamentos de Sociologia e Política. Isso é alarmante, mas torna o nosso trabalho ainda mais urgente. Precisamos afirmar o valor das nossas disciplinas e nos manter engajados publicamente, com mídia, podcasts, palestras, livros.
 
CC: Sermos vozes públicas nos ajuda a posicionar as humanidades num mundo que quer se tornar “silicon tudo”?
CR: Sem dúvida. Precisamos fazer parte da vida e da educação públicas. Nenhum de nós vai mudar o mundo sozinho, mas cada um pode contribuir para um debate democrático mais amplo. Mesmo que o nosso impacto pareça pequeno, ele importa. Esperança não é acreditar que as coisas vão melhorar: é desejar que melhorem.
 
CC: Algumas pessoas dizem que estamos vivendo o pior momento da história da humanidade. O senhor concorda?
CR: Não necessariamente. Houve muitos períodos sombrios. Recentemente li ­Radical Hope, do Jonathan Lear, uma reflexão filosófica sobre o chefe Plenty Coups da Nação Crow, durante a destruição da cultura indígena pelos brancos nos EUA. Apesar de tudo, ele manteve a esperança. Lear chama isso de “esperança radical”: aceitar a realidade e, mesmo assim, sustentar valores e virtudes voltados ao futuro. É assim que tento pensar. •
CARTA CAPITAL  



O professor australiano Carl Rhodes examina o mito do “bom bilionário” e o processo de legitimação das fortunas


Por Leonardo Moura  

 

PAZ SEM VOZ

 

 

Paz sem voz

Os palestinos serão privados de suas escolhas, mas os negócios têm tudo para prosperar


Por Arturo Hartmann e Sergio Lirio ...

 
Exatos dois anos depois do ignominioso atentado do Hamas que deixou um rastro de 1,2 mil judeus mortos e foi o estopim para uma vingança selvagem de Israel, elevada ao patamar de genocídio, conforme as conclusões recentes dos especialistas a serviço das Nações Unidas, um cessar-fogo na Faixa de Gaza foi anunciado na noite da quarta-feira 8 pelo presidente dos Estados Unidos, ­Donald Trump, principal fiador das negociações. Embora os termos do acordo de longo prazo apresentado pelo republicano favoreçam, sem nenhum pudor, o aliado Benjamin Netanyahu e continuem absolutamente vagos, as circunstâncias dificultaram qualquer tentativa de sabotagem das partes envolvidas. Diante do cenário de terra arrasada, da morte de quase 70 mil palestinos, segundo cálculos subestimados, e do desespero cotidiano dos sobreviventes submetidos ao racionamento de água, comida e remédios, confinados em um campo de concentração a céu aberto, o Hamas se viu em um beco sem saída. Netanyahu e a ala de extrema-direita que o apoia, por sua vez, estavam sob pressão crescente de aliados ocidentais, cada vez mais incomodados com os crimes de guerra em curso no enclave, e dos próprios eleitores, ansiosos pela volta dos reféns.

As negociações no balneário de Sharm el-Sheikh, no Egito, duraram dois dias. A chegada de Steve Witkoff, enviado da Casa Branca para Oriente Médio, Jared ­Kushner, genro do presidente e um dos elaboradores do plano, e Ron Dermer, principal conselheiro de Netanyahu, na quarta-feira 8 foi o prenúncio de um desfecho iminente e positivo das conversas. Na noite do mesmo dia, Trump anunciou os termos iniciais do acordo. O Hamas se compromete a libertar 20 reféns ainda vivos na primeira fase, em troca de 2 mil prisioneiros palestinos em poder de ­Israel, 250 dos quais condenados à prisão perpétua, e 1,7 mil detidos durante a invasão ao enclave. As ruas de várias cidades israelenses e em Gaza foram tomadas por celebrações. “Não sou o único feliz, toda a faixa está feliz, todo o povo árabe, todo mundo está feliz com o cessar-fogo e o fim do derramamento de sangue”, afirmou à agência de notícias Reuters ­Abdul Majeed­ Abd Rabbo, morador de Khan Younis, uma das localidades palestinas mais arrasadas pelos ataques israelitas. Tel-Aviv também concordou em iniciar a retirada das tropas e a permitir a entrada de ajuda humanitária. Quando? Depende da aprovação dos demais integrantes do governo. “Ao contrário dos relatos da mídia árabe, a contagem regressiva de 72 horas começará somente após o acordo ser aprovado na reunião de gabinete”, afirmou Netanyahu, em uma tentativa de demonstrar algum controle da situação.


Trata-se de um começo alvissareiro para um cessar-fogo de longo prazo, após sucessivos fracassos, mas o problema continua a ser o meio e o fim do acordo. Para Shawan Jabarin, diretor da Al-Haq, organização palestina de direitos humanos, o problema central do que ele chama de “ultimato de Trump aos palestinos” é que ele “condiciona a suspensão dos contínuos­ ataques genocidas de Israel e o extermínio em massa dos palestinos em Gaza a um conjunto de termos unilaterais ditados pelos Estados Unidos”. De fato, na ocasião do anúncio do plano, feito ao lado de Netanyahu após uma reunião na Casa Branca, o presidente norte-americano afirmou que, caso o grupo palestino não aceitasse o acordo, Israel teria “total apoio para acabar com o trabalho de destruir a ameaça”. Condicionar a entrada de ajuda humanitária à aceitação dos termos, prossegue Jabarin, é um prêmio à ilegalidade sem limites cometida por Israel. O ativista refere-se aos itens 7 e 8 do documento de 20 pontos, segundo os quais a entrada imediata de ajuda humanitária será coordenada por agências internacionais logo após a assinatura do acordo.

A questão mais controversa da proposta continua a ser o mapa da retirada do exército israelense, que atualmente controla 82% de Gaza, sob zonas militares e ordens de evacuação. No item 16 do documento, a saída é subordinada a “marcos ligados à desmilitarização” dos grupos palestinos, definidos em conjunto por Israel, a Força Internacional de Segurança que vier a ser formada e os países garantidores do acordo. Khalil al-Hayya, representante do Hamas­ no Egito e um dos sobreviventes do ataque israelense a um prédio em Doha, no mês passado, afirma que o grupo mantém a exigência de retirada completa dos soldados judeus, o que incluiria a zona do perímetro, uma faixa na fronteira de Gaza criada por Israel, e do Corredor Philadelphi, na divisa com o Egito. Seja para agradar ao público extremista interno, seja para complicar as negociações, Netanyahu tem declarado estar fora de cogitação a retirada total das Forças Armadas do território.

De acordo com a rede de tevê Al ­Jazeera, baseada em informações de oficiais do ­Hamas, os debates principais na terça-feira 7 giraram em torno da libertação dos reféns israelenses ainda em poder do grupo e a retirada do exército israelense. O Hamas tenta vincular a devolução de reféns às etapas de desmilitarização do território. Dessa maneira, o último sequestrado seria devolvido quando o último soldado deixasse o enclave. Isso pode ser um problema, pois o item 4 do plano determina que “dentro de 72 horas depois de Israel publicamente aceitar o acordo, todos os reféns, vivos e mortos, serão devolvidos”. Não só. Trump deseja criar um momento épico de libertação de todos os reféns, uma fotografia para projetar a imagem de líder “pacifista” e reforçar sua campanha particular – e obsessiva – pelo Prêmio Nobel da Paz. Dará tempo? O vencedor ou os vencedores da premiação seriam anunciados na sexta-feira 10, depois do fechamento desta edição.



O cronograma de retirada das tropas era um impasse esperado nas discussões, principalmente depois da revelação de que o item 16 do plano havia sido ajustado por imposição de Netanyahu, uma alteração feita sem o conhecimento das lideranças árabes que tinham concordado em apoiar os termos anteriores apresentados pelo presidente dos EUA durante uma reunião privada na Assembleia-Geral da ONU. A mudança deu a Tel-Aviv o poder de se negar, de forma unilateral, a desmilitarizar o território caso constate, segundo seus critérios, que as ameaças não tenham cessado.

Se olhassem para o passado, os negociadores de agora perceberiam que a estratégia de dar vantagem a um dos lados, em geral a Israel, foi testada e fracassou. Em 1993, no famoso Acordo de Oslo, prevaleceu a fórmula “terra por paz”, ou seja, os israelenses retirariam exército e colonos gradualmente dos territórios ocupados à medida que os palestinos garantissem a segurança aos israelenses. Em outras palavras, feito o desmonte de qualquer tipo de resistência às arbitrariedades de Tel-Aviv. Deu-se o contrário. Com o enfraquecimento dos “inimigos”, Israel­ ampliou a ocupação e transformou em permanente o que era temporário. Ainda assim, os mediadores árabes e islâmicos, ­Catar, Egito e Turquia, insistiram para o Hamas aceitar o plano. Os líderes desses países teriam dito ao grupo tratar-se da última chance de um acordo. “Você não pode rejeitar um acordo com Trump, não importa o quanto esteja insatisfeito com alguns de seus termos”, resumiu, de forma anônima, um dos negociadores.

O Acordo de Oslo é ilustrativo da prevalência da retórica sobre a realidade. O tratado assinado na capital da Noruega foi recebido com entusiasmo semelhante ao plano de Trump. As três figuras centrais das negociações, Yitzhak Rabin, primeiro-ministro israelense, Shimon Peres, chanceler do país, e Yasser Arafat, presidente da Organização para a Libertação da Palestina, foram agraciados com o Nobel da Paz (talvez esse fato explique a obsessão do atual presidente dos EUA). A paz, de fato, nunca saiu do papel. Em 2001, a respeito do acordo, o longevo Netanyahu, responsável agora por cumprir o novo acerto, declarou: “Perguntaram-me antes da eleição se eu honraria… Eu disse que sim, mas que interpretaria os acordos de tal forma que me permitisse pôr fim a esse galope em direção às fronteiras de 1967. Como fizemos isso? Ninguém disse o que eram zonas militares definidas. Zonas militares definidas são zonas de segurança. No que me diz respeito, todo o Vale do Jordão é uma zona militar definida”.

    Jared Kushner, genro de Trump, é crucial no plano de reconstrução de Gaza, que vai movimentar bilhões de dólares


O sinal verde dado pelos países árabes e pela Turquia foram, de qualquer maneira, um trunfo do presidente dos Estados Unidos. “Eu falei com o presidente Erdogan­, ele é fantástico”, afirmou o republicano, sem perder a paixão por superlativos. “Ele está forçando bastante, ele é um cara poderoso. O Hamas tem muito respeito por ele. Eles têm muito respeito pelo Catar, pelos Emirados Árabes e pela Arábia ­Saudita”. O grupo palestino parece, no entanto, ter captado o espírito do plano norte-americano. Em entrevista ao Drop Site News, uma liderança do Hamas resumiu: “Essa proposta não foi apresentada para encontrar um fim para a guerra. Ou é a rendição total ou a continuação da guerra. É pegar ou largar”. A direção considera os termos “catastróficos, no curto e longo prazo, para a resistência e para toda a causa palestina”, mas sabe que a tragédia humanitária erodiu o apoio popular interno e o poder de influência nas conversas diplomáticas. Restavam duas alternativas: ou a entrega das armas ou assistir ao extermínio do que resta de palestinos em Gaza.

Apesar do horizonte político pouco promissor para a população local, o plano de Trump contraria em certa medida os radicais de direita de Israel, entre eles ­Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, cujo intuito era ocupar o enclave de forma definitiva depois de concluída a limpeza étnica. Trump estava inclinado a apoiar essa ideia, mas acabou convencido do contrário em uma reunião, no fim de agosto, da qual participaram Kushner, Witkoff e Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico cotado para liderar a administração tecnocrática de reconstrução de Gaza. O trio convenceu o presidente dos EUA de que a expulsão em massa de palestinos “não era necessária nem sábia”. E sugeriram ao republicano investir nas relações com os demais países do Oriente Médio em busca de uma solução para o conflito. O ataque israelense a um prédio em Doha em 9 de setembro, em uma caçada a lideranças do Hamas, criticada pela Casa Branca, afastou um pouco mais Trump de Netanyahu. Como resposta, a Casa Branca ofereceu um mimo aos cataris, por meio da ordem executiva “Assegurando a Segurança do Estado do Catar”, que inclui ação militar para proteger a integridade territorial do país no caso de ataque estrangeiro.



Não menos importante, há o fator Kushner na dinâmica do esforço diplomático. O genro de Trump esteve ligado à formulação, ao lado de Blair, do “Fundo de Reconstituição, Aceleração Econômica e Transformação de Gaza (GREAT, na sigla em inglês), que circulou entre políticos no primeiro semestre do ano. Em linhas gerais, o GREAT (acrônimo típico da grandilo­quência trumpiana) apontava os “benefícios estratégicos” para os EUA da tomada de Gaza: “Ganhos massivos de dólares, acelerar o IMEC (Corredor Índia–Oriente Médio–Europa, rota dos EUA para competir com a China), solidificar a arquitetura regional abraâmica (normalização da relação de países árabes com Israel), fortalecer o punho sobre o Mediterrâneo oriental e assegurar à indústria dos EUA o acesso a 1,3 bilhão de dólares em terras-raras do Golfo”. Kushner mantém fortes ligações com o fundo público de investimento do governo da Arábia Saudita. No mesmo dia do anúncio do “plano de paz”, ele divulgou a compra da Electronic Arts, empresa desenvolvedora de videogames, por 55 bilhões de dólares, por meio de sua companhia, a Affinity Partners, em sociedade com o fundo Silver Lake e o FPS. A vida dupla de investidor e diplomata tem rendido acusações de conflito de interesse ao genro de Trump. O senador democrata Ron Wyden, de acordo com o Le Monde, já perguntou a Kushner sobre o recebimento de polpudos depósitos do fundo saudita.

Além dos interesses familiares e da obsessão pelo Nobel da Paz, interferir no conflito entre Israel e a Palestina ecoa a estratégia de Trump condensada no chamado “Projeto 2025”, que norteou sua campanha presidencial. O capítulo “Departamento de Estado”, de autoria de Kiron Skinner, integrante dos Institutos Hover e Heritage, centros do pensamento reacionário, e ex-diretora de Planejamento de Políticas no primeiro governo do magnata, afirma que, em um escopo maior, “os EUA devem impedir o Irã de adquirir tecnologia nuclear e capacidade de lançamento (da bomba), e, mais amplamente, bloquear as ambições iranianas”. Entre as sugestões, além da reinstituição das sanções, estão “prover assistência de segurança para parceiros regionais” e “assegurar que Israel tenha tanto os meios militares quanto o apoio político e a flexibilidade para tomar as medidas que acreditar necessárias para se defender do regime iraniano e de seus proxies regionais, como Hamas, Hezbollah e a Jihad Islâmica Palestina”. A sugestão de Skinner tornou-se uma profecia autorrealizada, pois a pressão de Trump sobre o Irã chegou ao ponto de um ataque coordenado com Israel, incluindo a tentativa de decapitar a liderança militar e destruir usinas nucleares. Outro elemento estratégico para os EUA, e Israel, é retomar os Acordos de Abrãao, interrompidos em outubro de 2023, mas que poderiam ser reavivados a partir do consenso regional formado em caso de um eventual sucesso do plano de cessar-fogo.

    Mesmo entre os judeus dos EUA o apoio a Israel é declinante

O isolamento crescente de Netanyahu facilitou as negociações. Até mesmo a Casa Branca, parceira incondicional, demonstrou algum grau de irritação. No domingo 5, antes do início das negociações e por conta de uma certa ambivalência do primeiro-ministro israelense, o presidente dos Estados Unidos passou uma carraspana no aliado, segundo relatos do site Axios. “Eu não sei por que você é sempre tão (­fucking) negativo… Isto é uma vitória.” Completados dois anos de um massacre que, até o momento, de acordo com dados do Escritório da ONU para Assuntos Humanitários, matou 66.148 palestinos (total que pode crescer quando corpos forem retirados dos escombros), entre eles 18.430 crianças, destruiu 92% das casas e submeteu os sobreviventes a altos níveis de insegurança alimentar, a imagem de Israel no mundo só tem piorado. Pesquisa recente do Instituto Pew Research mostra que 39% dos norte-americanos acreditam que os israelenses “foram longe demais”. No fim de 2023, a porcentagem era de 27%. Já o número daqueles com “opinião desfavorável do governo” de Tel-Aviv subiu de 51%, no começo de 2024, para 59%. Entre os judeus norte-americanos, 61% dizem que Israel cometeu crimes de guerra contra os palestinos. E quatro em cada dez dizem que o ­país comete genocídio contra os palestinos.

A truculência com os integrantes da flotilha humanitária que rumava a ­Gaza isolou ainda mais o país. A tomada dos barcos por soldados israelenses e os relatos de maus-tratos a quem estava armado de comida, água e cobertores desencadearam protestos massivos ao redor do mundo. Em Roma, 250 mil italianos ocuparam as ruas por quatro dias, além de fechar portos e estações de trem. Sindicatos decretaram greves sob o lema “Bloquearemos tudo até que Gaza esteja livre”. Em Amsterdã, número semelhante nundou o centro da capital holandesa no domingo 5. Em Barcelona, cerca de 70 mil catalães clamaram pelo “boicote a Israel” e pelo “fim do bloqueio”. As tropas israelenses fizeram ouvidos moucos. Enquanto as reuniões no Egito buscavam um consenso, mais de 70 palestinos foram mortos entre a segunda-feira 6 e a quarta 8. Bombardeios foram registrados na quinta 9, antes de o gabinete de ­Netanyahu se reunir para dar aval ao cessar-fogo. •

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