A Rua Santa Teresinha é uma passagem estreita por onde se chega à parte 
alta do Jacarezinho. Suas paredes têm incontáveis marcas de tiros. Nas 
últimas semanas, o lugar fez por merecer o apelido pouco honroso dado 
por moradores: Beco da Síria. Com pistola na cintura, um soldado do 
tráfico fica escorado em um poste, no meio da pequena via. Um pouco 
acima, um policial militar com fuzil protege a esquina do beco com a Rua
 Darci Vargas, em frente à sede da UPP. Estão separados por uma linha 
imaginária, a 50 metros de distância: de um lado, o Estado armado na 
favela; do outro, uma juventude perdida. Moradores que atravessam a 
passagem cruzam os dois, mas o medo faz muita gente mudar de caminho.
Estranha normalidade
Depois
 de sete mortes em 11 dias seguidos de tiros, a vida se restabelece com 
estranha normalidade no Jacarezinho. O comércio está fraco na Rua 
Comandante Gracindo de Sá, principal acesso à favela, ocupada por umas 
200 lojas enfileiradas nas duas calçadas. Pouco a pouco, esses pequenos 
negócios vão reabrindo depois de quase duas semanas com as portas 
fechadas, mas a multidão que caminha de um lado ao outro, entrando e 
saindo do complexo, passa apressada demais para comprar qualquer coisa. 
São 9h da última quinta-feira, dia em que as escolas da região voltaram a
 funcionar. O meio-fio continua cheio de óleo escuro, que escorreu dos 
32 transformadores explodidos por tiros nos últimos dias, e ainda há 
muito lixo espalhado pelos becos. Alguns saem de casa pela primeira vez 
em 15 dias, como a paraibana Luzia Gomes dos Santos, de 69 anos.
—
 Sair para quê, com aquele tiroteio? Só se for pra morrer. Estava cheia 
de dores e com hipertensão em casa, mas só hoje pude cuidar disso — 
disse a senhora na porta da Clínica da Família local, na Avenida Dom 
Helder Câmara, a poucos metros do acesso ao morro.
A favela tenta
 se recompor ao mesmo tempo em que contabiliza seus prejuízos, após a 
caçada vã da Polícia Civil ao assassino do agente Bruno Guimarães 
Buhler, morto aos 36 anos, com um tiro no pescoço, enquanto dava apoio a
 uma operação no local, no último dia 11. Após os confrontos diários, 
que puseram em risco a vida de 90 mil moradores, as incursões da Polícia
 Civil terminaram com cerca de 50 presos, mas nenhum fuzil apreendido. 
Agora, os moradores perguntam: de que adiantou?
— São operações 
que não resultam em nada — acredita o comerciante Sérgio Ricardo, de 54 
anos, criado no Jacarezinho. — Minha mulher ficou quase três horas presa
 dentro da loja essa semana e não quer mais voltar aqui. Seis tiros 
entraram na loja, um deles acertou a máquina de sorvete. O conserto 
custa R$ 1,6 mil, não sei como vou pagar — lamenta, antes de contar que 
assumiu o ponto há apenas dois meses, depois de se mudar de outro que 
julgava pior.
Ao seu lado, Brenda Araújo Silva, de 21 anos, diz 
que a loja de roupas onde trabalha chegava a vender R$ 3 mil aos sábados
 e domingos, e pelo menos R$ 500 nos dias de semana. Sua chefe exigiu 
que ela abrisse o estabelecimento mesmo debaixo de tiro. Assim como a 
mulher de Sérgio, Brenda ficava nos fundos da loja, pois as balas não 
davam trégua. Em uma semana, ela vendeu apenas uma blusa e uma calça. 
Brenda tem três filhos — o primeiro nasceu quando ela tinha 13. O 
caçula, de 1 ano e meio, já identifica o som dos disparos.
— 
Assim que os tiros começam, ele fica repetindo “pou, pou” — afirma 
Brenda. — Nunca foi tão perigoso viver aqui. Infelizmente, não temos 
para onde ir.
 
'Vieram para matar'
Uma
 moradora se aproxima e pede a palavra. Pamela Rangel, de 36 anos, diz 
sentir-se “no meio da guerra do Iraque”. Está indignada por “viver como 
prisioneira” em sua própria casa.
— Sabemos que aqui tem tráfico,
 fomos criados aqui, estudamos com bandidos na escola. Mas meu marido é 
mestre de obras e eu sou esteticista. Essa guerra não é nossa, muito 
menos do meu filho, que tem 2 anos e meio. Os policiais vieram aqui para
 matar — afirma. — Gostaria de entender por que somos tratados como 
lixo. É por sermos pobres?
Quatrocentos e trinta e quatro alunos 
voltaram às aulas naquela quinta-feira no Colégio Salesiano, rede 
filantrópica de ensino que mantém uma unidade na parte mais alta do 
Jacarezinho há quase cinco décadas. Com a igreja do colégio lotada de 
crianças, a diretora Adriana Costa dá as boas-vindas como se elas 
estivessem voltando de férias. Quando Adriana decreta o reinício das 
aulas, as turmas ficam de pé e caminham para as salas em pura algazarra.
 Elas se beijam e se abraçam, algumas cantam, todas sorriem. Só quem 
vive sob tiros sabe o valor de voltar à escola após tantos dias sem sair
 de casa.
— Agora é atualizar o calendário e pensar em como repor
 o conteúdo perdido. Vamos fazer um recreio especial hoje para as 
crianças. Elas estão felizes por voltar, mas precisam muito de amor — 
diz Adriana, de 48 anos, que começou a trabalhar na unidade aos 14, como
 auxiliar de secretaria.
Quem também cuida de seus alunos como se
 fossem filhos é Adino Estelino Santos, de 40 anos, fundador do Centro 
de Integração Cultural, Assistencial e Educacional (Cicape), que oferece
 aulas de judô, jiu-jítsu, muay thai e capoeira para 250 jovens da 
favela. Ele conversa com a reportagem enquanto monitora cinco 
funcionários da Cedae, que finalmente puderam voltar ao Jacarezinho para
 consertar um cano que jorrava esgoto. O Cicape também tinha um 
pré-vestibular comunitário, mas as aulas foram encerradas por causa da 
violência: os professores pararam de ir à favela para ensinar.
— Não vou desanimar, não. Cuido deles como meus filhos, e sinto que agora eles precisam de mim como nunca — afirma.
Adino
 já conseguiu tirar muitos jovens do tráfico de drogas. Jovens iguais a 
um menino de uns 10 anos de idade, magrelo, sem camisa e que empunhava 
uma pistola naquela tarde de sol, perto de uma rua chamada Esperança.
 
Favela de luto
O Jacarezinho está de luto pelos seus mortos, mas não há tempo para 
chorar. Na Rua Amaro Rangel, uma das principais vias de comércio do 
complexo, duas meninas, de 13 e 9 anos, trabalham para manter um 
mercadinho de verduras aberto. Rafaela e Alice são filhas de Sebastião 
Sabino da Silva, verdureiro que vendia fiado a quem precisasse. Tião, 
como era conhecido, acordava às 4h todos os dias. Estava em seu quarto 
casamento e era pai de sete. Enquanto sua mulher cuida de uma barraca, 
também de verduras, as pequenas tomam conta do mercadinho. Ele morreu 
com três tiros de fuzil, na terça-feira, dia 15. Contam na favela que 
foi alvejado por atiradores de um helicóptero, e que policiais não 
deixaram ele ser socorrido — diziam que era bandido. A Civil garante em 
nota que seus policiais "jamais deixariam de socorrer vítimas ou 
impediriam que outras pessoas o fizessem". 
— Minhas irmãs 
ficaram sem aulas e estão o tempo todo ajudando. É muito complicado. Meu
 pai se endividou um pouquinho, pois precisou comprar uma Kombi. As 
meninas ainda estão em choque, viviam com ele, mas a vida tem que seguir
 — afirma a filha Raquel, de 20 anos, que há três meses trocou o 
Jacarezinho por Água Santa. — Minha filhinha, Laura, completou um mês no
 dia em que ele morreu — conta, emocionada.
No ponto de mototáxi 
onde André Luís Medeiros trabalhava, seus colegas estão inconsoláveis. 
André morreu com três tiros numa perna quando esperava o dono de uma 
loja de rações, ao lado do ponto, fechar o estabelecimento. O 
mototaxista o levaria para sua casa, pois um blindado da polícia havia 
entrado atirando pela linha do trem, no começo da rua, a poucos metros. 
André não era pedreiro, mas construiu sozinho um quarto para sua filha, 
de 13 anos, que iria morar com ele. Torcedor fanático do Fluminense, não
 gostava de beber nem de sair: abria exceção para os jogos do tricolor 
no Maracanã, quando era possível. Estava juntando dinheiro para levar 
sua filha à Disney. Agora, a menina só dorme à base de remédios.
— Era muito trabalhador, ele mesmo consertava a moto quando dava 
defeito, estava com a mesma há dez anos. Quando queria fazer alguma 
coisa especial, a gente comia uma pizza — conta Julio Cesar Santos da 
Silva, presidente da cooperativa local de mototaxistas, um grupo de 70 
trabalhadores que aguardam há anos uma licença da prefeitura.
Em cada beco, uma lembrança
Enquanto anda pela favela, o presidente da associação de moradores, 
Leonardo Pimentel, de 30 anos, vai colhendo relatos de dor. Ele diz ter 
sido procurado por meia dúzia de advogados se oferecendo para abrir uma 
ação coletiva contra o estado, com um pedido de indenização para os 
familiares das vítimas, mas a Defensoria Pública já está cuidando disso.
 Uma liminar obtida pela Defensoria, na tarde de sexta-feira, cassou o 
mandado de busca e apreensão coletivo – carta branca para agentes da lei
 entrarem em todas as casas do Jacarezinho. Políticos também entraram em
 contato, mas Leonardo, querido pelos moradores — a maioria o chama de 
“presidente” —, rejeita aproximações neste momento.
— A 
comunidade, infelizmente, está desunida. Não são políticos que vão nos 
ajudar neste momento, somos nós, aqui dentro, que precisamos nos unir — 
afirma Leonardo. — Quero ver quem entra aqui no sufoco, quando a 
população precisa. Quem vem depois é porque quer algo em troca — 
argumenta, lembrando que 2018 é ano eleitoral.
Ele evita andar em
 alguns becos onde amigos dos tempos de escola foram mortos. Já perdeu a
 conta de quantos conhecidos morreram nos embates que se repetem na 
favela desde antes de ele nascer, quando o dono do Jacarezinho era o 
traficante Paulo Roberto de Moura Lima, vulgo Meio Quilo, um dos 
lendários fundadores do Comando Vermelho, morto em 1987 após cair de um 
helicóptero durante uma tentativa de fuga da prisão. Três mil pessoas 
foram ao enterro de Meio Quilo e a morte provocou tensão na cidade, o 
que fez o então governador, Moreira Franco, pedir intervenção das forças
 federais no Rio — um filme assistido muitas vezes pelos cariocas.
Após
 a morte de Meio Quilo, o aumento da violência foi perverso para o 
Jacarezinho: sobrou pouco das mais de 500 fábricas que existiam ao redor
 da favela até os anos 1990, e que faziam da região o segundo maior polo
 industrial da cidade — perdia só para São Cristóvão. Foram embora 
gigantes como General Electric, e o imenso terreno de sua fábrica virou 
objeto de disputa entre a prefeitura do Rio e a multinacional sediada em
 Boston, que tem uma dívida com o município da ordem de R$ 40 milhões, 
segundo uma fonte da Fazenda municipal. O Diário Oficial já publicou a 
intenção do município de desapropriar a área e construir ali edifícios 
do Minha Casa Minha Vida — a ideia do prefeito Marcelo Crivella é 
verticalizar a favela com mais de 5 mil apartamentos, em edifícios de 12
 andares. Procurada, a Secretaria de Urbanismo disse que aguarda o 
processo de desapropriação. 

 
'Alguém vai morrer'
  Bandeiras do Flamengo tremulam ao vento na Rua Darci Vargas, a única 
onde é possível acreditar que existe uma UPP na região, instalada em 
janeiro de 2013. Dez policiais patrulham a rua, alguns com o celular na 
mão. Sabem que só serão atacados se cruzarem a linha invisível. Um 
deles, entediado, brinca de cutucar um gato com o bico do fuzil. Perto 
dali, Valda Norberto, de 62 anos, tenta se acostumar à ausência da 
melhor amiga, Georgina Maria Ferreira, dois anos mais nova. Elas moravam
 juntas desde 1991.
— Georgina era conhecida dentro e fora do 
Jacaré. Tinha amizade com muita gente e conseguia emprego para as 
pessoas da favela. Sua vida era ajudar: não parava em casa, estava 
sempre levando água para um, consertando a energia de outro — recorda 
Valda, com os olhos inchados de tanto chorar. — Como ela era grandona e 
contagiante, as pessoas não sabem que lutava contra a depressão. Por 
isso, passava o dia ajudando os outros, e os gatos abandonados. Era um 
anjo.
Quando morre na favela uma pessoa como Georgina, uma rede 
complexa de conexões se desmancha no ar: como se muitas pessoas fossem 
atingidas pelo tiro na cabeça que a matou. Georgina morreu fazendo o que
 mais gostava: tinha ido ajudar a vizinha Dona Penha a fechar seu bar, 
durante um tiroteio. Era tão querida que, na sexta-feira, foram 
celebradas três missas e cultos de sétimo dia em sua homenagem. Dalva 
conta que Georgina “tinha um sexto sentido inexplicável”. Na semana 
passada, acordou angustiada. “Tive um sonho”, disse para a amiga. 
“Alguém vai morrer.”