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JOSÉ SÓCRATES
Ex-primeiro-ministro
de Portugal (de 2005 a 2011)
O Brasil não precisa de autorização
Na mesma semana em que visi-
tava a China, Lula foi convida-
do pelo Japão para a reunião
do G-7. Nessa semana assinalavam-se
os cem dias de governo e a mídia brasi-
leira aproveitava para expressar em ca-
sa o desapontamento com os resultados
da governança. Exatamente no momen-
to em que todo o mundo mostrava inte-
resse em atrair a atenção do presiden-
te da República, o jornalismo brasilei-
ro parecia apostado em lembrar Lula
que ele não tinha ainda resolvido to-
dos os problemas do País. Sinceramen-
te, ao menos para quem observa de fo-
ra, o problema não me parece ser do go-
verno, mas da mídia.
Na verdade, quem tem o mínimo de
capacidade de análise facilmente reco-
nhecerá que um dos mais sérios proble-
mas do Brasil nestes últimos quatro anos
consistiu no isolamento político interna-
cional. Esse isolamento nunca foi apenas
um problema externo, mas um proble-
ma para a política nacional – danos pa-
ra a política comercial, danos para o in-
vestimento externo, danos para a política
ambiental, danos para os cidadãos. Cem
dias depois, esse problema desapareceu,
o Brasil retornou ao palco da política in-
ternacional e voltou a ser um país res-
peitado e previsível. Isso não quer dizer,
obviamente, que todos concordem com a
sua política externa (voltarei a esse pon-
to), mas todos têm consciência de que a
vida política internacional fica mais rica,
mais representativa e mais diversa quan-
do veem o Brasil voltar a ocupar o seu es-
paço na cena global.
De forma breve, podemos dizer que
um dos mais sérios problemas do Brasil
reside no fato de ser uma potência polí-
tica sem consciência de si própria. Sem-
pre que falo nesse assunto costumo re-
cordar o interessante episódio contado
por Henry Kissinger num livro que publi-
cou no início deste século. Diz ele que, nos
anos 70, durante a Presidência de Gerald
Ford, a administração norte-americana
decidiu conceder ao Brasil o estatuto de
conselheiro especial. Na Comissão de Ne-
gócios Estrangeiros do Congresso foi, en-
tão, questionado se, ao conceder essa dis-
tinção ao Brasil, os Estados Unidos não
estavam a elevar o País ao estatuto de po-
tência mundial. Henry Kissinger respon-
deu assim: “O Brasil tem uma população
de 100 milhões de habitantes, vastos re-
cursos econômicos e um ritmo de desen-
volvimento muito elevado. Está a tornar-
-se uma potência mundial e não precisa
da nossa aprovação para isso”. Isso foi em
1976 e o Brasil tinha 100 milhões de habi-
tantes. Hoje tem 220 milhões e estamos
em 2023. Talvez seja altura de a mídia na-
tiva tomar consciência do que representa
para o Brasil voltar a ter uma política ex-
terna. Mas, enfim...
Todavia, o regresso ao palco interna-
cional é também um regresso à contro-
vérsia política, estando, como está, a polí-
tica internacional dominada pela guerra
da Ucrânia. A esse propósito parece evi-
dente que a Europa não tem a mesma po-
sição que o Brasil e quem parar uns mi-
nutos para pensar perceberá que essa di-
ferença corresponde a uma assimetria de
interesses perfeitamente compreensível.
Vejo na cena internacional duas posições:
uma pede a condenação da Rússia sem fa-
lar na paz, a outra fala da paz sem conde-
nar a Rússia. O Brasil acha que se deve
colocar entre as duas. Espero que o faça
lembrando também a Carta das Nações
Unidas e a proibição do uso da força fo-
ra da legítima defesa ou fora da decisão
do Conselho de Segurança. Compreen-
do que o Brasil queira afastar-se de um
discurso de escalada militar e de corri-
da aos armamentos. Mas será importan-
te não esquecer o direito internacional,
nem esquecer que estamos perante um
caso de invasão militar.
Seja como for, o Brasil tem agora uma
voz. E uma voz que se faz ouvir. Julgo
que isso faz toda a diferença e que deve
ser levado a sério pela Europa. O Brasil
tem seus próprios interesses e sua políti-
ca externa não é discípula nem seguido-
ra cega da política externa europeia. Ain-
da que alguns jornalistas insistam em tra-
tar o grupo de países ocidentais (sumaria-
mente Europa, Estados Unidos e Japão)
como comunidade internacional, esse não
é o mundo em que vivemos. A Europa pre-
cisa comportar-se com realismo político
– os problemas europeus não são, neces-
sariamente, os problemas do mundo. Pa-
ra atrair o Brasil para a sua esfera de atu-
ação é melhor procurar as vias de diálogo
e de compromisso. E, principalmente, não
achar que qualquer divergência de pontos
de vista deva ser tratada como uma agres-
são ou um ato hostil. A política externa é
um domínio sensível e o Brasil, para mais
uma vez citar Henry Kissinger, não preci-
sa de aprovação de ninguém para se afir-
mar como uma potência política mundial
de 220 milhões de habitantes. •
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