Na despedida de sua cidade natal, Caratinga, em Minas Gerais, Ziraldo Alves Pinto queria se tornar o maior desenhista do mundo. Tinha 18 anos e já dava sinais de ser, por inteiro, sem modéstia, Ziraldo. Ao completar 90 anos nesta segunda-feira (24), o cartunista demonstra que não foi pequeno o esforço para cumprir o sonho megalomaníaco em sete décadas de carreira.
Ziraldo criou charges, cartuns, pinturas, cartazes, murais, histórias em quadrinhos, livros infantis e crônicas. Além disso, transbordou o limite de uma folha de papel e virou um intelectual público disposto a distribuir opiniões para salvar o mundo. Sempre se considerou um “aspite”, isto é, um assessor de palpites. Para evitar mal-entendidos, chegou a propor a adoção do ponto de ironia na língua portuguesa.
“Ele tem a volúpia de ser amado por todo o mundo. Era corajoso, enfrentou a ditadura, mas, sempre que uma pessoa brigava com ele ou parecia brigada, ele se transtornava. Ziraldo era também o oposto. Adorava receber visita enquanto estava trabalhando”, diz o crítico Sérgio Augusto.
O humor de Ziraldo se expandiu na revista O Cruzeiro e ganhou expressão política a partir de 1963, no Jornal do Brasil. Em 1974, uma torrente de discursos de congressistas da Arena em louvor ao ditador Ernesto Geisel, que havia citado o partido no discurso de posse, motivou uma charge em que o nome da Arena estava na saia de uma prostituta. Ela dizia, eufórica: “Ele sorriu pra mim… Ele sorriu pra mim…”.
“Foi a minha charge que mais repercutiu. Chamei a Arena inteira de prostituta. E a Arena não me processou”, ele disse a este repórter, em 2010. “O político não deve passar recibo.”
No Jornal dos Sports, em 1967, Ziraldo editou o suplemento Cartum JS, revelando os novatos Henfil e Miguel Paiva. Criado em 1969, no vácuo do Ato Institucional nº 5, o AI-5, o semanário humorístico O Pasquim contribuiu para a transformação de Ziraldo em um artista popular.
Como definiu Millôr Fernandes, o jornal reunia uma porção de pessoas que você não podia comprar com dinheiro. À essa altura, se não era o maior desenhista do mundo, Ziraldo se firmava como o maior de Caratinga e um dos melhores do Brasil.
Apesar das restrições da censura, o Pasquim descabelou seu estilo e fortaleceu sua oposição à ditadura militar. Ele sofreu três prisões, a mais mítica no final de 1970, na Vila Militar, junto com Tarso de Castro, o idealizador e mais ousado editor do jornal, além de Jaguar, Flávio Rangel, Paulo Francis, Luiz Carlos Maciel, Sérgio Cabral, Fortuna, José Grossi e Paulo Garcez.
Ziraldo lutava pela liberdade, mas não era bem um libertário. Manteve uma visão tradicionalista em relação às bandeiras sexuais e artísticas da contracultura dos anos 1960 e 1970, alinhando-se a Millôr, gênio conservador, nos ataques contra Caetano Veloso e Gilberto Gil no retorno do exílio.
A jornalista Maria Lúcia Rangel rememora a primeira e talvez única experiência de Ziraldo com a maconha, em Búzios. O cartunista entrou em parafuso. “Ele gritava para esposa dele na época: ‘Vilma, socorro!'”, diz Rangel entre risos. “Ele adorava os jovens. A gente ficava em volta da mesa dele, no apartamento da Lagoa. Essa geração faz falta pela inteligência. Na imprensa, não tem nada no lugar.”
O salto para a literatura infantil deu um rosto mais terno ao mineiro. A revista da turma do Pererê, editada entre 1960 e 1964, e os livros “Flicts”, de 1969, e “O Menino Maluquinho”, de 1980, viraram fenômenos editoriais. Convertido em avô tagarela das crianças brasileiras, ele passaria a visitar escolas em todas as regiões do país, sendo o arauto das reinações da infância.
Havia um saudável nacionalismo em seu impulso de criar histórias em quadrinhos com fisionomia brasileira.
Formado graficamente por desenhistas americanos e pelo imaginário de Batman e Capitão América, Ziraldo entregou ao país seus Pererê e Tininim. A onça, o jabuti, o macaco e o tatu entravam na infância de quem o lia.
Todo o seu trabalho foi uma declaração de amor “a esta bosta de país”, como dizia. À frente da Funarte, no governo de José Sarney, ele postulou o que seria chamado de “cultura da broa de milho”, um protecionismo romântico das manifestações populares.
A criação de personagens era outra vertente de seu gênio. A “Supermãe”, o “Mineirinho” e “Jeremias, o Bom”, revelam sua habilidade de criar um universo psicológico no espaço diminuto das tirinhas de jornal. Com a série “Zeróis”, passou a zombar dos super-heróis americanos que tanto o marcaram, parodiados em suas humanas fraquezas.
Muito antes de “O Menino Maluquinho” ser um sucesso nas telas ou virar uma série de animação na Netflix, ele quis ser cinema, criando cartazes para os filmes “Os Cafajestes” e “Os Fuzis”, de Ruy Guerra, além de “O Assalto ao Trem Pagador”, de Roberto Farias. Mas não emplacou o de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, rejeitado por seu diretor, Glauber Rocha, que preferiu entregar a missão ao designer tropicalista Rogério Duarte.
“Ziraldo é um dos pilares do design brasileiro, praticante dessa forma polivalente de desenhar, que é fazer quadrinhos, cartum e charge. Nesse sentido, leva o troféu porque vários de nós fizemos as três coisas, mas nenhum fez com a profusão e a competência dele”, afirma Laerte, que teve “o primeiro impacto de uma linguagem gráfica” ao ver uma capa da revista Pererê, em 1961.
“É um criador caudaloso e um sujeito audacioso, que defendeu pontos de vista bem claros, anti-ditadura e alinhado com a democracia. É um mestre”, diz a cartunista.
Um dos batutas do Pasquim, Jaguar destaca o papel de Ziraldo na proteção política dos cartunistas brasileiros. Em caso de prisão ou ameaça de violência, ele seria capaz de acionar uma rede de contatos com grandes humoristas e publicações internacionais.
“Ele era uma verdadeira máquina de desenhar. Nunca vi um camarada capaz de passar a noite inteira desenhando. Eu detesto desenhar. Primeiro, porque não sei desenhar”, diz Jaguar. “Ziraldo é uma espécie de Leonardo da Vinci de Caratinga. Ele escrevia, desenhava, dançava. E dizem também que o Leonardo da Vinci nunca brochou.”
No folclore geracional, Ziraldo era infalível na prancheta e na cama. “Sabe, minha vida não daria um bom romance, porque falta tragédia, falta drama na minha existência. Por exemplo, eu nunca brochei. É uma coisa fantástica”, gabou-se em entrevista à revista Playboy, em abril de 1980.
Aos 90, afetado por acidentes vasculares cerebrais, Ziraldo vive sem desenhar. Ao seu enteado, Claudio da Rocha Miranda, ele disse que depois de ter sobrevivido à Covid-19 e a todas as doenças imagináveis, só pode morrer de acidente de barco ou helicóptero.
FOLHA
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