Orientado por pastores como Silas Malafaia, que tem enorme capacidade de controle de suas comunidades pelo moralismo, Bolsonaro começou a usar esse moralismo como arma política. Com a economia em frangalhos e um governo catastrófico, o pânico moral entre os grupos vulneráveis é o que lhe resta
por Leonardo Rossatto Queiroz
O crescimento da fé evangélica no
Brasil é um dos fenômenos mais
impressionantes dos últimos sé-
culos quando o tema é a trans-
formação do perfil religioso de um
país. Isso ocorre por alguns motivos
em específico. Contudo, esses núme-
ros sozinhos não dão a dimensão do fe-
nômeno. O que os dados falam é que,
nas últimas duas décadas, 1,7 milhão
de brasileiros em média se tornaram
evangélicos a cada ano. Na prática, é
como se mais de 30 mil brasileiros pas-
sassem a professar a fé evangélica a ca-
da fim de semana de culto. A velocida-
de do fenômeno é muito intensa para
ser ignorada. Além disso, há um fator
importante envolvendo a transição: os
católicos em geral não são praticantes,
enquanto os evangélicos são costu-
meiramente engajados em suas comu-
nidades. Uma pesquisa realizada por
ocasião da 50ª Assembleia Geral da
CNBB, em 2012, mostrou que apenas
5% dos brasileiros que se declaravam
católicos eram realmente engajados
em suas comunidades.2 Para efeito de
comparação: no Censo de 2010, apenas
21% dos evangélicos se declaravam
“indeterminados”, não tendo atuação
em nenhuma comunidade. Na prática,
isso quer dizer que, se forem contados
apenas os praticantes, o Brasil já tem
mais evangélicos do que católicos des-
de o início da década passada: enquan-
to existiam 7 milhões de católicos pra-
ticantes no país, de acordo com o
levantamento feito para a CNBB, cerca
de 34 milhões de evangélicos frequen-
tavam suas comunidades regularmen-
te, segundo o Censo de 2010.
O perfil desse crescimento também é
importante: ele se dá especialmente en-
tre igrejas pentecostais e neopentecos-
tais. Uma pesquisa do Datafolha feita
em 20163 mostra isso: as cinco maiores
denominações evangélicas brasileiras
eram a Assembleia de Deus (34% do to-
tal de evangélicos), Batista (11%), Uni-
versal do Reino de Deus (8%), Congrega-
ção Cristã do Brasil (6%) e Deus é Amor
(5%). Dessas denominações, só os batis-
tas não se consideram pentecostais.
Essa mesma pesquisa do Datafolha
também embasa a tese de que os evan-
gélicos são mais engajados em suas co-
munidades ao mostrar que eles frequen-
tam os cultos mais que os católicos (65%
dos evangélicos dizem ir à igreja mais
de uma vez por semana, contra 17% dos
católicos) e contribuem mais (58% dos
evangélicos afirmam contribuir sempre
em suas comunidades, contra 34% dos
católicos). O Datafolha de 2020 ainda
mostra que os evangélicos são, propor-
cionalmente, a religião cristã mais fe-
minina do Brasil (58% são mulheres) e a
mais negra (59% são negros).
Com esses dados colocados, é possível
se aprofundar na questão da moralidade.
A moralidade é um elemento preponde-
rante nas religiões abraâmicas (judaísmo,
cristianismo e islamismo), visto que nelas
um elemento mensurador do relaciona-
mento entre a divindade e o ser humano
é o pecado. Pecado é aquilo que afasta o
ser humano da divindade desde a criação
do mundo, e esse conceito faz com que
as religiões abraâmicas sejam fortemente
pautadas pelo elemento moral, devida-
mente exposto nos livros de cada uma
das religiões em questão (a Torá para os
judeus, o Alcorão para os muçulmanos e
a Bíblia Sagrada para os cristãos).
Nesse contexto, a moralidade é a dis-
posição para se afastar daquilo que os
livros de cada religião entendem como
pecado. Ela é exposta como um “cami-
nho para a vida”, enquanto a imorali-
dade é uma espécie de “caminho para
a morte”. Todo o texto da Torá caminha
nesse sentido: os que obedecem aos
preceitos divinos são premiados com
uma conclusão feliz em sua jornada,
embora possam ter percalços no cami-
nho. Os que não obedecem, por sua vez,
são punidos com a morte em algum mo-
mento, normalmente de forma violenta.
No caso da fé cristã, a dinâmica fun-
damental está no tensionamento da
relação entre Deus e o ser humano: en-
quanto o pecado o afasta de Deus, algo
conhecido como “graça” é responsável
por reaproximá-lo. E aí entra o aspecto
que diferencia o cristianismo como reli-
gião: o agente dessa graça é Jesus Cris-
to e sua crucificação como ato de amor
sem motivação prévia (que é o conceito
de graça, o “favor imerecido”). A gran-
de questão da graça é que ela substitui
a moralidade nesse papel de “caminho
para a vida”. Agora as pessoas não são
mais salvas porque obedecem aos pre-
ceitos da Torá, mas porque foram res-
gatadas por um Deus que fez um ato de
amor sacrificial e estão gratas por isso.
Por que essa questão é importante?
Porque o moralismo é justamente o dis-
curso que coloca foco na moralidade em
detrimento de todos os demais aspec-
tos da fé cristã, incluindo aí a graça. E,
embora o discurso moralista tenha sido
preponderante em diversos movimen-
tos dentro do protestantismo, ele en-
controu no Brasil um terreno fértil para
crescer, especialmente entre os setores
mais vulnerabilizados da sociedade. Isso
ocorre por diversos motivos, mas um
deles precisa ficar claro: esse discurso
moral tem efeitos práticos.
O primeiro é a sensação de pertenci-
mento e exclusividade. Ela fica clara no
discurso das pessoas, mas também no
Datafolha de 2016: nessa pesquisa, 81%
dos católicos concordaram com a afir-
mação “Todas as religiões têm o mesmo
valor porque todas levam ao mesmo
Deus”. Entre os evangélicos, esse índice
ficou em 50%. Isso indica uma predispo-
sição maior dos evangélicos em consi-
derar sua religião como a única correta.
De acordo com essa mesma pesqui-
sa, 85% dos evangélicos já ouviram re-
comendações em suas igrejas contra
o consumo de bebidas alcoólicas (nas
igrejas católicas, foram 45%), 76% re-
ceberam recomendações para evitar
alguns programas de TV (foram 40%
entre os católicos) e 64% receberam re-
comendações sobre vestimentas (entre
os católicos, foram 27%). Além disso,
62% dos evangélicos receberam reco-
mendações sobre datas comemorativas
que devem evitar, 25% sobre alimentos
dos quais devem se afastar e 31% sobre
a necessidade de votar em candidatos
religiosos nas eleições (entre os católi-
cos, esses índices foram de 24%, 15% e
14%, respectivamente).
Esse é mais um indício de que, para
o evangélico, as orientações pastorais
estão mais presentes no cotidiano do
que para os católicos. E, em áreas de
alta vulnerabilidade, essas orientações
realmente fazem diferença, ajudando a
mitigar, por exemplo, os efeitos do al-
coolismo entre as classes mais baixas
da sociedade, bem como as consequên-
cias disso, tais como a violência contra a
mulher e mortes causadas por acidentes
de trânsito. As igrejas também trazem
consigo um componente importante de
vinculação social: em geral, são comuni-
dades de ajuda mútua, em que as pes-
soas se preocupam com as necessidades
das outras, sobretudo quando os grupos
são menores e estão em locais de maior
vulnerabilidade social.
Com o Estado ausente e a Igreja
sendo a única referência de um bem-
-estar social mínimo, o moralismo e
as privações decorrentes dele pas-
sam a ser um preço aceitável a pagar,
porque o acréscimo na qualidade de
vida é palpável: estar dentro da igreja
é estar mais distante do alcoolismo e
da violência (a ponto de existirem em
muitos presídios alas evangélicas, em
geral com salvo conduto para que seus
membros não pertençam a nenhuma
facção criminosa).4 Estar dentro da
igreja também é ficar mais longe do
analfabetismo: famílias evangélicas
costumam incentivar mais a leitura,
justamente pela prerrogativa de que a
leitura regular da Bíblia é necessária.
A questão é que o moralismo evangé-
lico no Brasil se traduziu cada vez mais
em um projeto de poder político, en-
cabeçado principalmente pelas igrejas
neopentecostais (Universal do Reino de
Deus, Internacional da Graça de Deus,
entre outras) e neopentecostalizadas
(como a Assembleia de Deus Vitória
em Cristo, de Silas Malafaia). Não existe
uma diferença formal entre pentecostais
e neopentecostais, mas um traço distin-
tivo entre os dois grupos é o fato de os
últimos usarem a ideia de que a pala-
vra tem poder em seus sermões, o que
confere um caráter mais individualista à
experiência religiosa e insere nas comu-
nidades a teologia da prosperidade: se
você tem fé, sua palavra tem poder – e,
se sua palavra tem poder, sua prosperi-
dade econômica prova isso.
É necessário ressaltar que o uso do
moralismo como arma política no Bra-
sil não se restringe aos neopentecostais:
a primeira vez em que o discurso moral
evangélico viralizou em uma campanha
presidencial foi em 2010, com o pastor
batista Paschoal Piragine Jr.5 Mas foram
os neopentecostais (especialmente a
Igreja Universal do Reino de Deus) que
abriram o caminho para tornar a parti-
cipação política dos pastores algo de-
sejável, ainda na década de 1990, como
mostra o sociólogo Ricardo Mariano em
seu livro fundamental sobre as igrejas neopentecostais.
Essa conciliação entre moralismo e
atuação política tornou-se uma arma
nuclear na mão de alguns pastores. E
isso já era sinalizado antes de 2018: a
pesquisa de 2016 do Datafolha mostrou
que 66% dos evangélicos não pentecos-
tais e 52% dos evangélicos pentecostais
concordavam com a afirmação de que
os valores religiosos devem ter influên-
cia nas decisões políticas do país. A
mesma pesquisa sinalizou que 44% dos
evangélicos concordavam com líderes
religiosos se candidatando a cargos polí-
ticos. Havia ali uma avenida aberta para
a exploração política da moralidade.
Foi esse caminho que Bolsonaro tri-
lhou. E foi uma trilha muito bem plane-
jada, que construiu junto aos evangé-
licos a imagem de Bolsonaro como um
“homem de Deus”, embora ele nunca te-
nha se declarado evangélico de fato. Em
2013, Bolsonaro celebrou seu casamento
religioso com Michelle Bolsonaro sob a
bênção de Silas Malafaia,7 ainda que am-
bos já fossem casados de fato desde 2007.
Em 2016, Bolsonaro foi batizado no Rio
Jordão pelo pastor Everaldo exatamen-
te no dia em que Dilma Rousseff sofria
impeachment no Senado.8 Esses passos
foram essenciais para que Bolsonaro ti-
vesse solidificada junto aos evangélicos
a imagem de um homem de família, que
respeita os valores cristãos. Um homem
moralmente aceitável, em contraposi-
ção ao governo do PT, acusado de imoral
pela bancada evangélica, sobretudo por
conta das políticas em relação às mulhe-
res e aos LGBTQIA+.
Orientado por pastores como Silas
Malafaia, que tem enorme capacidade
de controle de suas comunidades pelo
moralismo, Bolsonaro começou a usar
esse moralismo como arma política. Em
2018, espalhou fotos de manifestações
em que mulheres apareciam seminuas
como se elas fossem do #EleNão, com o
objetivo de provar que “ele era moral e
quem estava contra ele era imoral”. Na-
quele momento, foi uma estratégia mui-
to bem-sucedida: Bolsonaro acabou a
eleição com 69% dos votos evangélicos,
de acordo com a última pesquisa eleito-
ral antes do segundo turno.
É por isso que, em momentos de crise,
o discurso moral volta à tona enquanto
arma política. Bolsonaro sabe que pas-
tores como Malafaia vendem celebri-
dades como Anitta e Pablo Vittar como
símbolos de imoralidade para suas co-
munidades muito antes de elas se ali-
nharem contra o presidente. O sucesso
dessas celebridades seria uma “prova”
de que há toda uma “conspiração pela
imoralidade” que quer tirar Bolsonaro
do poder. Nesse cenário, Bolsonaro é o
símbolo da moralidade divina que com-
bate “o mundo imoral”.
Para isso, Bolsonaro usa “símbolos de
imoralidade”, recorrentes entre os evan-
gélicos, como a Rede Globo. É essa emis-
sora que promove o Carnaval, Anitta,
Pablo Vittar, as cenas de sexo nas nove-
las e o beijo gay no BBB, e também criti-
ca Bolsonaro. Nesse contexto, Bolsonaro
se torna o grande inimigo da imoralida-
de, o “cara que impede gays de se beija-
rem na rua”. Para isso, polemizar com
celebridades é essencial.
Esse discurso parece absurdo, mas faz
muito sentido no contexto das igrejas
evangélicas pautadas pelo moralismo. É
o público dessas igrejas que Bolsonaro
quer fidelizar até a eleição, porque são
os votos que ele julga possíveis. Com a
economia em frangalhos e um governo
catastrófico, o pânico moral entre os
grupos vulneráveis a ele é o que resta.
E o pânico moral tem outro efei-
to: desmobilização. Bolsonaro só tem
chance de ganhar a eleição se milhões
de pessoas que estão declarando voto
em Lula nas pesquisas não votarem. O
pânico moral não serve só para virar
voto para Bolsonaro. Serve para fazer
com que o eleitor do Lula se sinta de-
sincentivado a votar.
Bolsonaro sabe que o teto dele é bai-
xo. A solução é demonizar Lula, para
que as pessoas não queiram votar nele
também. Por isso tantas manifestações
de pastores dizendo que “cristão não
pode votar em Lula”, porque, se muitos
cristãos votarem em Lula, Bolsonaro
perderá a eleição. E Bolsonaro pode até
perder a eleição, mas o crescimento de-
mográfico dos evangélicos sugere que a
esquerda precisa de fato aprender a se
comunicar com essa parcela da socie-
dade, sob pena de o Brasil se tornar um
país cada vez mais conservador.
Contra Bolsonaro, em específico, ata-
car o discurso moral é relativamente fá-
cil. Existe vídeo dele fazendo piada até
com doente de Covid com falta de ar.
Sua insensibilidade atinge níveis ine-
narráveis e, embora ele tenha uma base
de apoio sólida, sua rejeição é ainda
maior. Parte do sucesso está em reagir
de perto e rápido a todos os ataques de
Bolsonaro, com linguagem apropriada e
mensagem direcionada para o público
específico. Outra parte está em construir
a imagem de um Lula afável, empático,
sensível às causas cristãs.
E o futuro? Qual será o legado dos
grupos progressistas em um país cada
vez mais religioso, em que as pessoas
estão cada vez mais professando uma fé
de forte conteúdo moral? Como evitar
que esse conteúdo moral seja instru-
mentalizado para a política por pas-
tores como Malafaia e políticos como
Bolsonaro? Um discurso racionalizante
não tem muita utilidade em um contex-
to em que as pessoas se guiam pela fé
e pelas melhorias práticas que ela pro-
porciona na vida delas.
Para não se tornar refém do discurso
moralista, a esquerda precisa se inspi-
rar em um aspecto pouco explorado
das comunidades evangélicas para re-
tomar aquilo que ela sabe fazer melhor:
a criação de redes de ajuda mútua ho-
rizontalizadas, com pessoas focadas no
atendimento das necessidades básicas
das pessoas ao redor. Porque é preciso
vencer a extrema direita, mas também
construir uma sociedade melhor, que
afaste todo e qualquer risco de o fascis-
mo retornar.
*Leonardo Rossatto Queiroz é cientista
social.
LE MONDE DIPLOMATIQUE
No comments:
Post a Comment