Para Camila Rocha, bolsonaristas arrependidos ficaram sem opção e decidiram voto só na última hora
Um bolsonarismo purificado, decantado e cada vez mais homogêneo emergiu das urnas no dia 2 de outubro, diz a cientista política Camila Rocha, que desde 2019 conduz pesquisas para entender como os eleitores do presidente pensam e com o que se identificam.
Não só o PL, partido de Jair Bolsonaro, conquistou a maior bancada da Câmara dos Deputados e do Senado como também tem vários dos candidatos mais votados para o Legislativo federal e nos estados. Quase todos compartilham a mesma característica: formam uma espécie de núcleo duro do bolsonarismo, diz a pesquisadora.
A esses candidatos correspondem pessoas que votaram em Bolsonaro há quatro anos e que, com o passar do tempo, adotaram um discurso que praticamente copia as declarações do presidente nas lives e nas redes sociais. Pelo resultado da eleição neste ano, é um grupo expressivo.
Eles foram impactados por ação específica em prol do legado de Bolsonaro. Criticam a mídia tradicional, são contra uma possível legalização do aborto, esgrimam contra uma suposta ideologia de gênero e falam em Deus, família e liberdade.
Segundo Rocha, uma outra parcela dos que elegeram Bolsonaro em 2018 se decepcionou com o presidente e até se arrependeu do voto, mas ficou sem alternativa. São pessoas que não votam no PT de jeito nenhum e acabaram ficando com o atual presidente em cima da hora, por falta de opção.
"Tem gente que fala em voto envergonhado. Eu acho que é um voto silencioso. A pessoa ficou esperando para ver o que ia acontecer", afirma Rocha. Até por isso, diz ela, não dá para falar em erro dos institutos de pesquisa, por ser difícil detectar esse tipo de movimentação.
Autora do livro "Menos Marx, Mais Mises – O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil" (Todavia), baseado em sua premiada tese de doutorado, Rocha diz que o segundo turno está aberto e que o sucesso de Bolsonaro é fatal para a nova direita e para o PSDB.
Bolsonaro ficou atrás de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na disputa presidencial, mas o PL, partido do presidente, vai ter a maior bancada da Câmara dos Deputados e do Senado, superando o PT. O que explica esse desempenho no Legislativo? Na Câmara, esse desempenho já era razoavelmente esperado. O PL lançou muitas candidaturas, é o partido do presidente, tinha toda a máquina bolsonarista, a exposição do Bolsonaro etc.
Talvez as pessoas tenham ficado mais surpresas com a eleição dos senadores, porque os institutos de pesquisa têm mais dificuldade de mensurar essa intenção de voto, por ser um tipo de cargo para o qual as pessoas tendem a prestar menos atenção. Só na última hora elas decidem em quem votar. Então, quem vai votar no Bolsonaro, por exemplo, identifica no dia o candidato do presidente e vota nele.
E houve figuras que o Bolsonaro passou o governo todo exaltando. É o caso da Tereza Cristina [reeleita senadora, ex-ministra da Agricultura]. E o próprio Tarcísio [de Freitas, ex-ministro da Infraestrutura], candidato a governador de São Paulo. Bolsonaro sempre reforçou a imagem do Tarcísio como um dos melhores ministros, um gestor e, principalmente, alguém que faz estradas e obras, que é uma coisa de que o interior de São Paulo gosta muito.
O PL teve também muitos dos candidatos mais votados do país. Os fatores que explicam isso são os mesmos? Uma coisa que a gente observou foi o fortalecimento do núcleo duro do bolsonarismo. Das figuras mais próximas do presidente, mesmo que não tivessem bom desempenho, como o caso do [Eduardo] Pazuello, [ex-ministro da Saúde], ou mesmo mais apagadas, como o [general Hamilton] Mourão, [vice-presidente].
Nas pesquisas qualitativas, uma coisa que a gente observou ao longo do tempo foi que o eleitorado do Bolsonaro foi se purificando, se decantando e ficando cada vez mais homogêneo, no sentido de reproduzir o discurso do núcleo duro do bolsonarismo.
Um tempo atrás, a [deputada federal] Carla Zambelli e outros bolsonaristas formaram uma frente para defender o legado do Bolsonaro. E eu acho que isso contribuiu para esse resultado, porque tinha uma parte do eleitorado totalmente focada nessa narrativa bolsonarista homogênea. E, claro, os demais eleitores se pulverizaram nas outras candidaturas.
Qual é a agenda desse núcleo duro? A gente observava [nas nossas pesquisas] que as pessoas reproduziam "ipsis litteris" o discurso do Bolsonaro nas lives e nas redes sociais. Por exemplo, todo mundo falava que não gostava da Globo, da mídia tradicional. Todos assistiam aos mesmos programas, como a Jovem Pan, ou se informavam por canais bolsonaristas –não que fosse só nesses canais, mas todos eles se informavam também por esses canais.
Todos são ferrenhamente antipetistas, contra a ideologia de gênero, contra a possível legalização do aborto. Enfim, todos esses temas clássicos do bolsonarismo. Até havia diferenças em relação a armas, por exemplo, mas a narrativa principal, essa coisa de Deus, família e liberdade, era o que movia as pessoas.
E o outro lado dessa moeda, que é o derretimento de alguns nomes fortes do bolsonarismo na última eleição, como Alexandre Frota e Joice Hasselmann? É a consolidação desse bolsonarismo purificado e decantado. É uma prova de que o que de fato mobiliza o eleitorado bolsonarista, seja ele mais ou menos convicto, é essa proximidade das candidaturas com o núcleo duro. Quanto mais distante a pessoa está do núcleo duro, quanto mais crítica ela é, pior o desempenho.
Pesquisas de intenção de voto não indicavam que candidatos bolsonaristas teriam o bom desempenho eleitoral que tiveram. A sra. comentou sobre o Senado, mas o fenômeno se repetiu em alguns estados e em relação ao próprio Bolsonaro. Por quê? Durante esses anos fazendo essas pesquisas, a gente observou o seguinte fenômeno. Uma parte desse eleitorado do Bolsonaro se transformou em bolsonarista convicto e se cristalizou. Mas uma outra parte ficou decepcionada, até mesmo arrependida de ter votado nele, principalmente por conta do desempenho na pandemia.
Só que esses decepcionados, ao mesmo tempo em que falavam "o Bolsonaro não é tudo aquilo que eu imaginei, fez coisas que não achei legais", também diziam "não quero votar no Lula e no PT, então vou esperar uma alternativa". E muitas dessas pessoas diziam: "Se não aparecer nenhuma alternativa, provavelmente vou votar no Bolsonaro como menos pior". E a terceira via não decolou.
Tem gente que fala em voto envergonhado. Eu acho que é um voto silencioso. A pessoa ficou esperando para ver o que ia acontecer. A gente sabe que os institutos de pesquisa têm dificuldade de detectar quando um eleitorado se move numa direção de um dia para o outro, ou de forma muito rápida. As pessoas às vezes levam as pesquisas muito a ferro e fogo, mas são projeções.
Ou seja, a sra. não trata isso como erro dos institutos, mas como uma movimentação de última hora que as pesquisas não são capazes de detectar por suas próprias características? Exatamente. É uma coisa da técnica de pesquisa, da dificuldade de perceber esse tipo de movimentação.
Em 2018, uma das principais explicações para o desempenho de Bolsonaro tinha sido o impulso da Lava Jato. Quanto daquelas explicações ainda fazem sentido? O que se manteve é que praticamente todos os eleitores que entrevistei consideravam o Lula e o PT corruptos. Essa marca da corrupção é muito forte. Não é à toa que os adversários do Lula ficam reforçando isso, porque continua sendo a grande fraqueza dele e do PT.
Teve um comercial de TV que só insistia nisso: "Você vai votar num ladrão?". E aí junta com antipetismo, que afasta muito os eleitores do Lula e faz com que acabem optando pelo Bolsonaro. Uma coisa que eu via muito nas pesquisas era as pessoas falando algo assim: "Ah, eu tô entre o ladrão e o idiota".
Outra coisa que esse eleitorado meio decepcionado com Bolsonaro falava é assim: "Ele não é tudo aquilo que eu pensei, mas teve a pandemia, ele não conseguiu governar direito, então vamos dar uma segunda chance". Inclusive gente que nem votou no Bolsonaro falava em segunda chance.
Além disso, teve o arrefecimento do impacto da pandemia. As pessoas não queriam mais falar daquilo. Todo mundo queria deixar a pandemia para trás. As pessoas queriam pensar muito para o futuro e sempre reclamavam que a campanha do Lula falava muito do passado.
A campanha do Lula insistiu muito no tema da pandemia e da defesa da democracia. Essas bandeiras não têm influência? Não é que a pandemia não teve efeito. A gente sabe que muita gente, principalmente mulheres, deixou de votar no Bolsonaro por causa dessa imagem dele como desumano. Mas a pessoa não necessariamente votou no Lula.
Sobre a questão dos ataques à democracia, o Bolsonaro, durante a campanha, pegou mais leve. A campanha dele ficou num modo de "stand by", sem desautorizar quem era mais radicalizado, mas também não explicitava esse discurso. Ao mesmo tempo, a campanha do Lula não insistiu em dizer que Bolsonaro é um risco para a democracia, que é autoritário, que celebra a ditadura militar.
No segundo turno, Bolsonaro vai continuar nessa toada intermediária ou vai buscar uma radicalização, já que pode ter se sentido fortalecido pelo desempenho do bolsonarismo nas urnas? Certamente a militância bolsonarista vai estar muito mais energizada. Mas imagino que ele deva continuar na mesma linha, de dar sinais sobre as urnas, de falar de eleições limpas. Já está dado que vai desacreditar os institutos de pesquisa, e isso por si só vai ajudar no discurso bolsonarista. Mas falas explícitas de golpe, isso eu acho que eles vão evitar.
A sra. diria que tem um favorito no segundo turno? Foram milhões de votos de diferença no primeiro turno, mas segundo turno é outro jogo. Um mês de campanha é muito tempo, e as pessoas vão estar focadas nos dois. Vai ser uma disputa muitíssimo acirrada. Um cenário de reeleição do Bolsonaro não pode ser descartado. E erros de campanha vão contar muito.
Num artigo publicado na Folha em 2021, a sra. dizia que a permanência de Bolsonaro no poder em 2022 seria fatal para a nova direita. Essa conclusão se mantém? Sim. A gente pode observar isso empiricamente. Por exemplo, o Novo diminuiu no Congresso. Como a gente falou, outras candidaturas que se posicionaram abertamente contra Bolsonaro no campo da direita foram muito mal. Partidos que tinham pessoas conservadoras, meio bolsonaristas, mas pragmáticas, fora do núcleo duro, também não foram bem. Pelos dados, foi fatal não só para a nova direita, mas também para o PSDB.
Dá para dizer que Bolsonaro tomou de vez o lugar dos tucanos na polarização PT X PSDB, que vingou de 1994 a 2014 no plano federal? Tomou. O PSDB derreteu. O mais marcante nesse sentido da hegemonia do bolsonarismo no campo da direita é o estado de São Paulo. É um estado historicamente governado pelo PSDB. Mesmo antes da formação do PSDB, é o mesmo grupo político. E tudo indica que o Tarcísio vai ser eleito.
O Brasil caminha para um bipartidarismo na prática, com um partido progressista e um conservador, ou há espaço para crescer uma terceira via? Uma coisa que a gente observou no final do ano passado, começo deste ano, é que existia mais ou menos 40% de eleitores "nem-nem". Eles estavam à espera de uma alternativa que não se concretizou. Então existe demanda nesse sentido [de uma terceira via].
O problema está menos com o eleitorado e mais com o sistema político. A gente teve um número de recorde de pessoas eleitas pelo PL. Do outro lado, a federação do PT conseguiu crescer. O PSDB se esfacelou. Partidos como PSB, PDT, PSOL, Rede, ou mesmo MDB, não têm musculatura até o momento para conseguir indicar uma candidatura à Presidência.
FOLHA
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