November 5, 2022

Jair já era

 A horda bolsonarista bloqueou as rodovias e causou prejuízos, mas acabou abandonada literalmente na estrada pelo “mito”, que conseguiu a proeza de se isolar após receber 58 milhões de votos. Prova de que o capitão é inimigo de si próprio - Imagem: Caio Guatelli/AFP e Evaristo Sá/AFP

 O “CAPITÓLIO RODOVIÁRIO” FRACASSA,
BOLSONARO É FORÇADO A RECONHECER
A DERROTA E OFERECE AO BRASIL UM
DISCURSO MEDÍOCRE

 Fabiola Mendonça

1 8 C A R T A C A P I T A L . C O M . B R
OBrasil e o mundo espera-
ram 43 horas para saber
o que Jair Bolsonaro ti-
nha a dizer sobre o resul-
tado das eleições do do-
mingo 30. Esperaram em
vão. Em breves e esquecí-
veis dois minutos, o pri-
meiro e único presidente pós-ditadura
a não conseguir a reeleição desde a ado-
ção do mecanismo balbuciou meia dúzia
de chavões sobre liberdade, pátria, Deus
e família, manteve acesa a chama do gol-
pismo ao dizer que “os atuais movimen-
tos populares (os bloqueios nas estradas)
são fruto de indignação de injustiça de co-
mo se deu o processo eleitoral” e, apesar
do escasso tempo, conseguiu acrescentar
novas mentiras ao seu estoque infindável.
Foi um discurso rancoroso, lacônico, pe-
destre, faccioso, ao feitio do capitão: en-
dereçado à pequena fauna de aloprados e
fanáticos de sua base em detrimento da
maior parte dos 58 milhões de eleitores
que apertaram o número 22 nas urnas.

 
Os fanáticos, aliás, amotinados em mais
de 200 rodovias espalhadas por 20 esta-
dos, interpretaram o discurso como qui-
seram. Para eles, Bolsonaro havia dado a
senha para a continuidade dos protestos,
hasta la victoria. “Queremos a intervenção
federal, militar ou não”, repetiam os arru-
aceiros autômatos. Nem eles pareciam sa-
ber do que se trata. Intervenção federal vi-
rou um mantra, assim como o termo “des-
condenado” para se referir a Lula. Viu-se
de tudo. Orações, gritos de guerra e até a
comemoração de uma falsa notícia a res-
peito da prisão do ministro Alexandre de
Moraes, o inimigo número 1. A conivência
ou o apoio explícito de agentes da Polícia
Rodoviária Federal, corporação infectada
pelo bolsonarismo, animou a turba, mas a
decisão de Moraes, “sempre ele”, de multar
ou até prender o diretor-geral da PRF, Sil-
vinei Vasques, serviu como balde de água
fria no que tem sido chamado jocosamente
de “Capitólio rodoviário”, alusão à invasão
de eleitores de Donald Trump do Congres-
so dos EUA em 6 de janeiro do ano passa-
do. Ratificada pelos demais ministros do
Supremo Tribunal Federal, a ordem deu
ainda permissão às Polícias Militares para
dispersar as manifestações, em nome da
ordem pública, que afetaram o abasteci-
mento de combustíveis e itens básicos, va-
cinas incluídas, em vários pontos do País.

 
E o que disse Bolsonaro a respeito? No
discurso mofina da terça-feira: “As ma-
nifestações pacíficas serão bem-vindas,
mas os nossos métodos não podem ser
os da esquerda, que sempre prejudica-
ram a população, como invasão de pro-
priedades, destruição de patrimônio e
cerceamento do direito de ir e vir”, pa-
lavras balbuciadas a fórceps, depois do
apelo de empresários prejudicados pela
paralisação. Como o pronunciamento
dúbio não teve efeito e os financiadores
de campanha continuaram irritados, não
restou outra opção ao derrotado senão ser
mais explícito. Em uma live na noite da
quarta-feira, visivelmente contrariado,
o presidente pediu aos seguidores o
desbloqueio das rodovias. No caso do
procurador-geral, Augusto Aras, e do
ministro da Justiça, Anderson Torres,
imperou o silêncio. Aras queria conceder
24 horas para a PRF explicar os bloqueios,
proposta considerada um insulto por
Moraes, que preferiu, de próprio punho,
tomar providências imediatas ante a
gravidade dos fatos. Enquanto isso,
vídeos expunham a cumplicidade de
policiais rodoviários. Em um deles, um
agente orienta os bolsonaristas a manter
o paredão por 72 horas (circulava então
a tese de que na quarta-feira 2, em pleno
Finados, a tal intervenção “federal” seria
deflagrada). Em outra imagem, um policial
corta a grade de acesso ao aeroporto de
Guarulhos para facilitar os bloqueios.

 
A omissão de Aras levou um grupo de
mais de 180 procuradores federais a
cobrar a investigação da participação de
autoridades do governo nos protestos. A
rápida instalação de banheiros químicos
e mesas com comida e bebida sugerem a
pertinência do pedido. Não só, trazem
indícios de que as manifestações nada
tiveram de espontâneas e provavelmente
foram bancadas por empresários e
agricultores insatisfeitos com o resultado
das urnas. Durante o feriado e após a
intervenção das PMs, acionadas por
governadores, entre eles aliados de
primeira hora de Bolsonaro, o golpe na
estrada começou a minguar: o número
de interdições havia caído pela metade
e a expectativa era de uma desobstrução
total das vias até a sexta-feira 4.

 
O comportamento mesquinho de
Bolsonaro lança dúvidas sobre
seu futuro. Embora tenha re-
cebido 58 milhões de votos e
ressaltado o feito no discurso
minúsculo, o capitão ainda te-
rá de provar, sem a caneta, o foro privile-
giado, os conselheiros do “Centrão” e o cer-
cadinho na porta do Palácio da Alvorada à
disposição, se tem mesmo envergadura pa-
ra liderar a metade do Brasil que não vota-
ria em Lula nem se ele se pintasse de ver-
de-amarelo. Ou se sua eleição quatro anos
atrás não passou de um acidente de per-
curso grave, quase fatal, mas superado. “O
Bolsonaro parece ser alguém com pouca
disposição para o trabalho, para organizar
as coisas. Então, a gente precisa ver se ha-
verá um grupo disposto a mantê-lo como
um tipo de líder, mesmo que não faça mui-
ta coisa, que trabalhe em torno dele como
se fosse um partido político. Eu acho difí-
cil os empresários que bancavam o bolso-
narismo continuarem nessa toada, a não
ser os mais ideológicos, como o Luciano
Hang. Os outros, a começar pela turma do
agronegócio, são mais aliados de ocasião,
estão mais interessados em não ficar mal
em qualquer governo”, acredita o cientis-
ta político João Feres Júnior, professor da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

 
“Bolsonaro pode sair de cena, mas os bol-
sonaristas vão continuar seu legado de
desobediência das leis e de críticas ao
sistema. Vide Carla Zambelli com a arma
em punho pelas ruas de São Paulo a per-
seguir um cidadão desarmado”, avalia a
cientista política Vera Chaia, da PUC-SP.

 
Segundo Túlio Velho Barreto, cientista
político da Fundaj, o bolsonarismo repre-
senta a expressão contemporânea do nazi-
fascismo no Brasil, algo que não é novo, re-
mete ao Integralismo dos anos 1930, cujo
lema era o mesmo: “Deus, Pátria e Famí-
lia”. “De inexpressivo deputado federal,
Bolsonaro tornou-se líder a partir da omis-
são, conivência e leniência daqueles que,
no interior das instituições, mais precisa-
mente no Legislativo e no Judiciário, pode-
riam tê-lo barrado, ainda que tardiamente,
desde 2016, quando votou pelo afastamen-
to de Dilma Rousseff enaltecendo a dita-
dura e um torturador”, afirma. “A tolerân-
cia com seu comportamento e discurso le-
vou-o a dar visibilidade e a liderar a extre-
ma-direita, até então ‘adormecida’, que se
manifestava apenas a partir de pequenos
e inexpressivos grupos, sem nunca ter dei-
xado de existir. Portanto, deu-lhe visibili-
dade e voz, e a empoderou.” Fora do gover-
no, pondera Barreto, a tendência é Bolso-
naro perder importância e se cercar tão so-
mente do núcleo mais ideológico no Con-
gresso. “A força política e o capital eleitoral
dessa extrema-direita tendem a se redu-
zir comparativamente ao que temos hoje.

 
Mas, para isso, será fundamental punir ri-
gorosamente Jair Bolsonaro pelos crimes
cometidos ao longo do seu mandato, até pa-
ra que sirva de exemplo. E também alguns
de seus familiares e apoiadores mais radi-
cais, a exemplo de Carla Zambelli e Rober-
to Jefferson, sob pena de se repetir o que 

aconteceu com o próprio Bolsonaro, ou
seja, participar do jogo democrático para
contestar e destruir a democracia.”
Como sempre acontece na vida políti-
ca brasileira, é esperado que muitos alia-
dos de Bolsonaro no Congresso migrem
para a base do governo Lula, sobretudo os
parlamentares do Centrão, cuja linha de
atuação (hay gobierno? Soy a favor) sub-
verte um conhecido lema anarquista.

 
Arthur Lira, presidente da Câmara, foi
um dos primeiros a reconhecerem a vi-
tória de Lula na noite do domingo 30. “O
Brasil deu mais uma demonstração da vi-
talidade da sua democracia, da força das
suas instituições e de nosso povo. A von-
tade da maioria manifestada nas urnas ja-
mais deverá ser contestada e seguiremos
em frente na construção de um país sobe-
rano, justo e com menos desigualdades.”

 
Na quarta-feira 2, após Bolsonaro quebrar
o silêncio e o ministro da Casa Civil, Ci-
ro Nogueira, abrir as portas para o pro-
cesso de transição, circulava pelo notici-
ário a informação de que líderes do Cen-
trão fizeram chegar a Lula um recado: es-
tão prontos para negociar os termos do in-
gresso na base de apoio do futuro governo.

 
Bolsonaristas radicais, Zambelli e Dama-
res Alves incluídas, também publicaram
mensagens nas redes sociais na qual ad-
mitiam, de forma enviesada, a derrota. Ri-

cardo “passar a boiada” Salles, ex-minis-
tro do Meio Ambiente, apelou: “O resul-
tado da eleição mais polarizada da histó-
ria do Brasil traz muitas reflexões e a ne-
cessidade de buscar caminhos de pacifi-
cação de um país literalmente dividido ao
meio. É hora de serenidade”. A mensagem
soa como um pedido de salvo-conduto do
futuro deputado, alvo de inúmeras inves-
tigações por crimes cometidos durante
sua passagem pela pasta. Apesar de cir-
cularem áudios do senador Flávio Bolso-
naro a estimular os bloqueios golpistas das
estradas, o filho do presidente comentou
no Twitter o resultado das urnas, sinali-
zando ter reconhecido a derrota. “Obriga-
do a cada um que nos ajudou a resgatar o
patriotismo, que orou, rezou, foi para as
ruas, deu seu suor pelo país que está dan-
do certo e deu a Bolsonaro a maior vota-
ção de sua vida! Vamos erguer a cabeça e
não vamos desistir do nosso Brasil! Deus
no comando!” Junta-se ao grupo Hamil-
ton Mourão, vice-presidente da Repúbli-
ca e senador eleito pelo Rio Grande do Sul,
que enviou cumprimentos ao seu substi-
tuto, Geraldo Alckmin, e recebeu de vol-
ta um telefonema do companheiro de cha-
pa de Lula. Em entrevista a O Globo publi-
cada na quarta 2, Mourão foi explícito, ao
contrário de seu chefe: “Não adianta cho-
rar. Nós perdemos o jogo”.

 
Analistas políticos citam o des-
preparo de Bolsonaro para li-
derar a extrema-direita, apesar
de reconhecê-lo como um polí-
tico popular e carismático, am-
parado por uma máquina de
difamação e mentiras nas redes sociais.

 
Quem seria capaz de substituí-lo? Dois
nomes têm sido recorrentemente citados:
Tarcísio de Freitas, eleito governador de
São Paulo sem nunca ter morado no esta-
do mais rico da federação, e Romeu Zema,
que conquistou um segundo mandato em
Minas Gerais ainda no primeiro turno.

 
Detalhe: as últimas oito eleições presiden-
ciais jogam por terra a tese de que governa-
dores de estados influentes ficam automa-
icamente habilitados a disputar de forma
competitiva o poder central. “Bolsonaro
nunca foi figura tão forte, líder de massas.

 
Não é uma liderança que tem um enrai-
zamento no eleitorado que ativa uma me-
mória positiva dos brasileiros. Ele apenas
ganhou força nesses últimos anos com o
avanço do neoconservadorismo, mas em
outro momento pode vir a ser outra lide-
rança. Os seguidores de Bolsonaro estão
sem líder, estão meio soltos, neste momen-
to estão órfãos. O que que vai acontecer
com eles?”, pergunta Joyce Martins, cien-
tista política da Universidade Federal de
Alagoas. “Fora do poder, nem ele nem seus
aliados fiéis terão a mesma força. Então,
pode ser que haja, sim, esse fenômeno de
‘rei morto, rei posto’.” Ao demorar a reco-
nhecer a derrota, acrescenta a professora,
o presidente deixou de dialogar com sua
base e orientá-la a respeito de sua atuação
na oposição. “Apesar da erosão do País, ele
sai enfraquecido, porque ele não pode tu-
do, nem é aquilo que pensou que era: ‘Ah,
eu posso dizer o que eu quiser a vida intei-
ra e a vida inteira vou ser referendado por-
que eu tenho as redes sociais, tenho as li-
deranças religiosas do meu lado’. Aquilo
não era verdade e o eleitor percebeu.”

 Não só na política haverá uma reaco-
modação do poder. A mídia bolsonaris-
ta igualmente mede os rumos dos ven-
tos. No mais notório caso de desfaçatez e
oportunismo, o Grupo Jovem Pan, covil
extremista e central de difusão de fake
news, punida pela Justiça Eleitoral du-
rante a campanha, não perdeu um es-
casso minuto para se adequar aos no-
vos tempos. “Rei morto, rei posto”, co-
mo ressaltou Joyce Martins. Azar dos
mais aguerridos correligionários do
capitão que faziam as vezes de jorna-
listas. Augusto Nunes, Caio Coppolla,
Guilherme Fiúza, Maicon Mendes e
Carla Cecato, licenciada para apresentar
o programa eleitoral de Bolsonaro, aca-
baram demitidos sumariamente. É pro-
vável que não passem muito tempo na fi-
la do desemprego. Eleito em São Paulo,
Tarcísio de Freitas terá sob seu controle
a TV Cultura. Quem sabe...

 
A tendência, concordam os analistas
ouvidos por CartaCapital, é Bolsona-
ro – não o bolsonarismo – ingressar em
um período de ostracismo político. Terá,
além disso, o incômodo de prestar contas
ao Judiciário, em decorrência das várias
investigações que correm contra ele, por
omissão na pandemia, ameaças às insti-
tuições e suspeitas de corrupção. A partir
de janeiro, as ações serão enviadas à pri-
meira instância e o capitão ficará à mercê
da Justiça comum. Há quatro inquéritos
contra o ainda presidente no STF, além
das denúncias encaminhadas pela CPI da
Covid e barradas por Aras, o “engaveta-
dor-geral” da República. “É preciso rever
o papel do Ministério Público, que, nos úl-
timos anos, tem deixado muitos gaps. Há
que ter formas de fazer maior cobrança
e maior prestação de contas. O procura-
dor-geral não pode ter o poder soberano
de fazer arquivamentos. Isso tem de ser
cuidado pelos próximos governos, pelos
próprios próximos Parlamentos”, ponde-
ra Lênio Luiz Streck, jurista e professor
de Direito Constitucional. Caso Bolsona-
ro venha mesmo a responder por seus cri-
mes, será um bom começo.

 

CARTA CAPITAL

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