October 14, 2022

Godard podia ser desagradável

 


Helen Beltrame-Linné​

Já tinha decidido dedicar esta coluna a "Irma Vep", série do Olivier Assayas que estreou em maio deste ano simultaneamente no Festival de Cannes e na plataforma HBO, mas aí morreu Godard.

O editor generosamente me perguntou se gostaria de escrever a respeito e agradeci o convite com uma negativa: o morto receberia textos muito mais generosos de outras mãos. E assim foi, como se pôde ver na profusão de textos superlativos online e também na bela edição impressa da Ilustrada.

Contudo, numa contradição tipicamente godardiana, me pego escrevendo um texto para explicar por que não escrevi sobre aquele que foi um dos maiores artistas do século passado.

Godard era um gênio, não há dúvidas. Mas era antes também um provocador, que causou confusão a vida toda com declarações polêmicas e atitudes —inclusive na forma de filmes— que fugiam do lugar comum. Como ele nunca me pareceu um sujeito intempestivo, sempre creditei essas atitudes a um extremo calculismo. Dei risada sozinha quando veio a notícia de que morreu por suicídio assistido. E não por estar doente, mas simplesmente cansado ou entediado. Nada mais godardiano do que seguir causando polêmica mesmo com a própria morte.

Pouco antes de saber do ocorrido, eu havia visto um registro de Paul Schrader no Festival de Veneza defendendo que o cinema faz sentido quando bebe na tradição de histórias orais. Ou seja: há cinema quando há histórias. Já Godard via o cinema como linguagem e colocava a arte num nível de engajamento ideológico que nunca fez meu corpo arrepiar.

Godard sempre me parece um cineasta frio, um homem para o qual uma ideia vale mais do que qualquer sentimento ou, infelizmente, mais do que qualquer história. Como bem colocou Bia Braune: "Faltava algo àqueles seus tesouros. Um ‘je ne sais quois’ jamais revelado pelos enquadramentos originais e diálogos cirúrgicos." O cinema de Godard sempre teve um quê de colagem, mas o que mais se podia esperar de um homem que, declaradamente, nunca lia um livro inteiro?

Talvez tenha nascido daí o meu distanciamento de sua obra: nunca estivemos alinhados num mesmo entendimento sobre a vida. Godard era um estrategista, eu sou do time de Truffaut, por ele apelidado de "pequeno burguês apolítico".

Claro que, como todo gênio, Godard fez muito pela sétima arte e sua contribuição vai muito além de seus filmes, suas críticas e sua participação embrionária na nouvelle vague. O franco-suíço pensou a linguagem audiovisual como talvez nenhum outro tenha feito e promoveu uma revolução naquilo que se entende por cinema. O que seria do cinema sem Godard?

É uma pergunta impossível de responder, mas que, ao mesmo tempo, leva a outra interrogação incontornável: como foi que o cinema conseguiu existir apesar de Godard?

Um exemplo ilustrativo simples é o seu desentendimento com Truffaut. Depois de 20 anos de sólida amizade, Godard assistiu ao lançamento de "A Noite Americana", de 1973, dirigido pelo amigo francês, e escreveu duas cartas extremamente desagradáveis: uma ao diretor, outra ao ator Jean Pierre Léaud. A sequência é conhecida: Truffaut responde com uma carta contundente em que defende Léaud e enquadra Godard, selando o rompimento dos dois.

A briga histórica é apenas um de muitos momentos bizarros protagonizados por Godard. Suas frases de efeito polêmicas e machistas são inúmeras, reproduzidas em toda parte. Ele podia ser bastante desagradável —e não apenas porque fumava charuto.

Ora, mas para além do homem existe o seu cinema, muitos dirão. Aos filmes então: Godard fazia um exercício constante para evitar que suas obras fossem experiências imersivas. Sempre ficou claro em seus longas —seja pelo cortes picotados, seja pelos excessos intelectuais— que o espectador estava diante de um artifício.

Especialmente nos últimos anos, assistir aos seus longas se tornou, para mim, uma experiência desagradável. É possível que eu não tenha sido capaz de alcançar o que ele propunha, mas, quando o fiz, tudo me pareceu cerebral no pior sentido da palavra.

Sim, ele de fato assinou formulações brilhantes, como sua reflexão sobre os americanos, "cujo país nem sequer tem um nome": "Quais Estados Unidos? Os Estados brasileiros também são unidos, assim como os mexicanos."

Mas como contornar a forma como filmou as mulheres, como bem colocado por Lucia Monteiro: uma "quase caricatura do prazer visual teorizado pelos estudos feministas do cinema".

Li por aí que a morte de Godard seria o fim do cinema. Tenho dúvidas. Um colega jovem comentou que há poucos anos, na faculdade de cinema, virou bordão entre os colegas: "O que Godard faria?". O suíço fecundou o solo em que pisamos e não existe cinema sem o seu DNA, consciente ou não.

Voltando a "Irma Vep", há muito de Godard na sensualidade das mãos e boca de Alicia Vikander e também num cinema que aborda a artificialidade e organicidade da criação. Mas com uma diferença essencial: Assayas acredita que o cinema é mágico. E nisso discordamos do morto.





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