EVITAR A REELEIÇÃO DE BOLSONARO
É O MENOR DOS PROBLEMAS.
DECISIVAS SERÃO AS ESCOLHAS
A PARTIR DE ° DE JANEIRO
Por Sergio Lirio |
2 0 C A R T A C A P I T A L . C O M . B R
As primeiras folhas
de acácia deitam
na rua estreita e
o sol invade a sa-
la por um ângulo
obtuso. Delicada-
mente, o marrom
pede licença ao verde exuberante, que ain-
da não se deu conta da mudança de esta-
ção, enquanto o vento abranda o calor e
espalha a melancolia. Das janelas dos pré-
dios art déco, amarelos, verdes e verme-
lhos, eu e alguns aposentados observa-
mos, com silenciosa cumplicidade, a vi-
da preencher as calçadas do Bairro Azul,
enclave peculiar nas Avenidas Novas de
Lisboa, “instalação” na arquitetura clás-
sica da cidade. O Bairro Azul foi um pre-
sente do ditador António de Oliveira Sala-
zar aos homens e mulheres de bem, ergui-
do na primeira metade do século passado
como uma fortaleza inexpugnável em de-
fesa da tradição: Deus, pátria e família. A
morte poupou Salazar do desgosto. Não
restam vestígios da glória imperial, católi-
ca e colonial nas três vielas que formam o
pequeno reduto. Chineses e indianos dis-
putam o comércio local, entregadores pa-
quistaneses e brasileiros circulam frene-
ticamente entre os carros e pedestres. Às
sextas-feiras, muçulmanos peregrinam
até a mesquita e transformam a região em
uma pequena Meca. Nem as aves são as
mesmas. Periquitos fugitivos chegam em
bandos, animados, fanfarrões num bloco
de carnaval, para desespero de pombos e
gaivotas. Há outros deuses, outras pá-
trias, outras famílias.
Penso no Brasil. A fortaleza que divide
senhores e escravos é a única obra bem-
-acabada em 500 anos de história. Resis-
te ao tempo, inabalável. Não só. Renova-
-se a cada estação. Cada golpe contra a ci-
vilização, cada flerte com a barbárie, cada
barreira ao mínimo avanço é a argamassa
que rejunta os tijolos do atraso, em favor
de uma minoria. Convém, portanto, cele-
brar uma eventual derrota de Bolsonaro
no primeiro turno sem perder essa pers-
pectiva. Um terço dos brasileiros, no mí-
nimo, preferiria dar um segundo manda-
to ao presidente inepto e vulgar que man-
chou a imagem do Brasil no exterior, fez da
vergonha alheia produto de exportação,
atrapalhou o combate à pandemia, des-
truiu as estruturas do Estado e consagrou
o modo miliciano de governar. Outros tan-
tos, oportunistas, pularam do barco por
divergências meramente “estéticas” e vão
continuar em busca de um representante
à altura, alguém que não se lambuze com
pão e leite condensado e tenha pendor pe-
lo trabalho, para executar o mesmíssimo
programa – de preferência, sem o amado-
rismo do capitão e do Posto Ipiranga.
Remover Bolsonaro da cadeira de pre-
sidente é o primeiro passo sem o qual na-
da mais será possível. Ele é o bode na sa-
la. Todo e qualquer voto contra o capitão
é um voto em favor do Brasil. Será, no en-
tanto, o mais simples dos atos e execu-
tá-lo não passa de uma correção de ro-
ta tardia. Nos últimos seis anos, as ins-
tituições falharam, miseravelmente. O
Brasil falhou como projeto de nação. Im-
pedir a reeleição é um simples gesto de
contrição, um pedido de desculpas a nós
mesmos e, em especial, a quem mais so-
freu, não o brado retumbante de um po-
vo heroico. Decisivas serão as escolhas
a partir de 1° de janeiro. Os 33 milhões
de famintos, os desempregados, os mo-
radores de rua e os quase 700 mil mortos
pela pandemia pagaram a conta do gol-
pe contra Dilma Rousseff, da celebração
do lava-jatismo, da Ponte para o Futuro
de Michel Temer e da selvageria bolso-
narista. Quem será chamado à respon-
sabilidade daqui em diante? Como lida-
remos com os corresponsáveis pelo esta-
do de coisas? Bastará o pescoço de Bol-
sonaro para expiar as nossas culpas?
Lula, indicam as pesquisas, vencerá as
eleições. Se não neste domingo, daqui a
quatro semanas, salvo uma aventura gol-
pista cada vez mais improvável. Se a for-
tuna favorecer o País, um mandato mal
será suficiente para reconstruir os me-
canismos de intervenção pública. Se os
tempos forem difíceis, o risco de frus-
tração aumentará exponencialmente. O
bolsonarismo, ou no que vier a se trans-
formar esse movimento, ficará à esprei-
ta. Os oportunistas de agora e de sempre,
“democratas” de ocasião, estarão redimi-
dos e autorizados a repetir seus pecados.
Dará trabalho varrer os entulhos dos no-
vos tempos (garimpeiros e madeireiros
ilegais, clubes de tiro, militares arrivis-
tas, mascates e quitandeiros). Não é uma
disputa que se ganha no gogó. Ainda que
se trate de um governo de transição, co-
mo acena o ex-presidente, será preciso
nova abordagem para evitar a mesma ar-
madilha na próxima esquina. O que será
feito para impedir que a tragédia se repita
como farsa, ou vice-versa? Aprender com
o passado não faz parte da nossa índole,
convenhamos. Esquecer, deixar para lá,
é a escolha predileta. Melhor seguir em
frente sem olhar para trás, diz o senso co-
mum. No dia seguinte, glutões, tentamos
roubar o queijo da ratoeira.
Talvez seja uma questão
de clima e a primeira bri-
sa de outono em Portugal
não me deixe perceber que
a primavera no Brasil pre-
nuncia boas-novas, que este erro, ao me-
nos este, grosseiro, de eleger uma figu-
ra tão deplorável, não voltará a aconte-
cer. Talvez uma semente tenha brota-
do onde menos se espera. Ou talvez seja
uma questão de tempo, areia a escapar
entre os dedos. Um dia, sem que se per-
ceba, contra todas as previsões, à revelia
das nossas escolhas, a fortaleza ruirá e o
País será outro, pronto a cumprir um des-
tino diferente, como o Bairro Azul que
não mais pertence às viúvas de Salazar. •
CARTA CAPITAL
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