A mal fundada e a malfadada república brasileira tem uma história salpicada por intromissões das Forças Armadas no poder civil
POR ALDO FORNAZIERI
Não há república sem o comando do poder civil legítimo.
Esse princípio vem desde a república
romana antiga. Foi reafirmado nas repú-
blicas modernas, principalmente a partir
da aprovação da Constituição dos EUA,
em 1787. Na Roma antiga, depois que a re-
pública adquiriu seus contornos definiti-
vos, o poder civil era constituído pelo Se-
nado, pelos tribunos do povo e pelos dois
cônsules. Estes eram eleitos anualmente
e detinham o comando das legiões roma-
nas. A legitimidade assenta-se no fato de
que todo o poder deriva do povo, dos ci-
dadãos, de forma direta ou indireta.
Maquiavel, ao promover a transição do
pensamento republicano antigo para o
moderno, reafirmou a necessidade de su-
bordinação do poder militar ao civil.
Arrolo cinco razões principais que justifi-
cam essa subordinação:
1. O presidente, o primeiro-ministro
ou o príncipe são as expressões políticas
e simbólicas da unidade do povo e pontos
mais altos de um sistema de hierarquias
políticas. 2. O poder militar deve ser um
poder subordinado, a serviço dos interes-
ses do povo, que se definem no processo
político. 3. Como força em armas o poder
militar deve estar submetido a controles,
para que não abuse de sua condição de es-
tar em armas. 4. Se o comando supremo
das forças militares fosse militar, o risco
da insubordinação, da indisciplina e das
conspirações seria muito maior. 5. Com
o surgimento da ordem estatal, a guerra
torna-se função da política. A guerra pas-
sa a atender a objetivos políticos. Assim,
é a política que deve comandar a guerra
e as Forças Armadas, organizadas para
atender os objetivos da defesa do Estado.
A mal fundada e malfadada repúbli-
ca brasileira tem uma história salpicada
por intromissões militares no poder civil
que agridem o princípio básico da noção
de república. A partir do governo Bolso-
naro instituiu-se uma permanente amea-
ça de nova violação da ordem republicana
por intervenção militar. Generais a servi-
ço do presidente, e não da Constituição,
ameaçam as eleições e se intrometem in-
devidamente em assuntos eleitorais.
Os Estados Unidos, primeira repúbli-
ca moderna, precaveram-se com instru-
mentos legais para coibir ameaças mili-
tares. O código que trata do Secretário
de Defesa, similar ao nosso Ministério
da Defesa, estabelece que o ocupante do
cargo é escolhido pelo presidente desde
que seja um civil. Para um militar ocu-
par o posto, precisa estar na reserva, no
mínimo, há sete anos, se for um oficial
de patente inferior àquela de brigadeiro-
-general (grau O-7, uma estrela) e de dez
anos se for de patente superior.
No Brasil, não há nenhum regramen-
to nesse sentido. No governo Bolsonaro,
quatro generais passaram à reserva, sem
nenhuma quarentena, e ocuparam o car-
go de ministro da Defesa. Ao menos os
dois últimos – Braga Netto e Paulo Sérgio
Nogueira – emitiram ameaças golpistas.
Além da violação do princípio da subor-
dinação do poder militar ao civil, o gover-
no Bolsonaro agride os princípios da hie-
rarquia e da disciplina militares e disse-
mina a anarquia militar. O termo “anar-
quia militar” surgiu no Império Romano,
no período entre 235 a 284, no qual ocor-
reu uma recorrente sucessão de impera-
dores, legítimos e ilegítimos, por conta
da intervenção e dos interesses milia-
res. Não eram essencialmente interesses
estratégicos do Império, mas de ganhos,
privilégios e enriquecimento dos milita-
res. Em consequência, não havia apenas
uma ação contra imperadores, mas uma
recorrente quebra da hierarquia e da dis-
ciplina e prejuízos para o povo.
Bolsonaro foi um mau militar. Quebrou
a disciplina e foi expulso do Exército. Ago-
ra age deliberadamente para introduzir a
anarquia militar, em três sentidos: a) Es-
timula o interesse dos militares nos privi-
légios públicos; b) Incentiva a indisciplina
e a politização nas Polícias Militares e nas
Forças Armadas; c) Desmoraliza generais.
O que interessa aqui é o primeiro pon-
to. A reforma da Previdência provocou
perdas para toda a população e ganhos
para os militares. Os reajustes dados aos
integrantes das três Forças no atual go-
verno fizeram com que eles tivessem um
aumento real de 29,6% acima da inflação
na última década, contra 6,3% dos demais
servidores federais. Sob esse governo, o
salário mínimo sofreu a maior desvalori-
zação desde 1994. Bolsonaro colocou mi-
lhares de militares em cargos civis, pro-
movendo o interesse político no poder e
o desvio de função. Portaria assinada por
ele permite que militares ganhem muito
acima do teto constitucional. Alguns ge-
nerais ganharam até 350 mil reais anuais
a mais do que deveriam receber.
Para salvar o País, é preciso remover o
quisto da tutela militar contido no artigo
142 da Constituição, impedir a participa-
ção política dos militares da ativa, estabe-
lecer quarentenas para quem está na re-
serva e bloquear os mecanismos que favo-
recem os privilégios e a anarquia. •
CARTA CAPITAL
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