A violência só existiu porque houve quem visse e nada dissesse. Por detrás de quem atuou estiveram os outros, os que lá atrás assistiram a tudo sem nada dizer
POR JOSÉ SÓCRATES
A violência ilegítima não é política, é o fracasso da política. Se a política se baseia, como diz Hannah Arendt, na pluralidade humana, então a política serve justamente para arbitrar essa pluralidade e construir soluções coletivas legítimas para os problemas que dizem respeito à vida coletiva, ou ao vivre ensemble, como a literatura política francesa gosta de dizer. Não, a violência não é a política por outros meios. Ela representa apenas a negação da política. Nesse sentido, o assassinato de Marcelo Arruda, dirigente do PT, por um ativista político bolsonarista foi um ato contra a política. Aqueles tiros foram tiros na política – tiros em cheio na política brasileira.
Depois da tragédia, nova tragédia, desta vez com a justificação da “polarização” política. Absolutamente revoltante. Na verdade, o que essa gente quer dizer é que não há inocentes nesta história e que ambos os lados têm culpa. Como se não houvesse vítima e agressor. Como se não houvesse um morto. Como se não houvesse crime.
Se bem percebo o que querem dizer,
essa gente da “polarização” acha que a
esquerda tem culpa por não ter colabo-
rado no seu próprio banimento político.
As vítimas dos processos de Moscou, de-
pois da confissão, depois da condenação
e já encostadas ao paredão, ainda eram
obrigadas a gritar “viva Stalin”. A culpa
da esquerda, se bem os entendo, foi não
ter aplaudido o seu próprio pelotão de
fuzilamento durante o golpe parlamen-
tar contra a presidente Dilma Rousseff
e, depois, a prisão de Lula da Silva. A es-
querda é culpada por ter lutado democra-
ticamente pela sua própria sobrevivên-
cia e com isso ter criado a tão odiosa “po-
larização”. A culpa da esquerda foi não
aceitar a criminalização do seu principal
partido. Pior ainda, a culpa da esquerda
foi ter saído das eleições com 47 milhões
de votos. E, finalmente, não devemos es-
quecer a última culpa da esquerda – estar
à frente em todas as pesquisas. No fundo,
no fundo, a responsabilidade da esquer-
da é existir. Ódio absoluto – é a tua exis-
tência que motiva o meu ódio. O ódio ra-
dical é ódio do próprio ódio.
Se quisermos discutir a sério o que se
passou, devemos começar por reconhe-
cer que nada disso é de agora. Tudo isso
vem de trás, de quando se tornou eviden-
te que era preciso enfrentar com coragem
a retórica violenta que tomou conta da vi-
da política do Brasil. Agora, foi apenas a
passagem ao ato. Tudo isso vem do tem-
po em que se dizia que era preciso “fuzi-
lar essa petralhada toda” e que “a petra-
lhada vai tudo para a ponta da praia”, nu-
ma obscena alusão ao pior da gíria mili-
tar usada na ditadura. Tudo isso vem daí.
Agora, foi apenas a passagem ao ato.
Houve muita gente cúmplice, é verda-
de. Mas o mais chocante foi a indiferen-
ça. A maior aliada do presidente Jair Bol-
sonaro foi a indiferença. A maior amiga
da escalada da violência foi a indiferença.
A indiferença que é filha da intimidação,
do medo e da covardia. E, por favor, dei-
xem-me clarificar um ponto importan-
te. A indiferença de que falo não diz res-
peito à indiferença social, ao alheamento
em face dos assuntos públicos. Não gos-
to dessa atitude, mas ela é absolutamen-
te legítima dentro da moral democrática.
Mas não é dessa indiferença que estou a
falar. A indiferença de que aqui falo tem
a ver com a distinção entre bystanders e
perpetrators, ou seja, com a distinção en-
tre os que “fazem o mal” e aqueles que as-
sistem, desviando o olhar do “mal que es-
tá a ser feito”. É nesses últimos que pen-
so quando falo de indiferença.
Na verdade, a violência só existiu por-
que houve quem visse e nada dissesse.
Por detrás de quem atuou estiveram os
outros – os que lá atrás assistiram a tu-
do sem nada dizer. Os abusos foram co-
metidos à sua frente e perante o seu si-
lêncio. E esse silêncio permitiu a violên-
cia, que foi crescendo, escalando. É a es-
sa indiferença que me refiro. À indife-
rença de quem tudo observou de cima,
da janela, enquanto cá em baixo, na rua,
se desenrolou a ação. Na bela fórmula de
Gramsci, refiro-me à indiferença como
sendo o “peso morto da história”. Sim, eu
também detesto os indiferentes. E numa
coisa podemos concordar – houve indi-
ferença a mais no Brasil. É tempo de aca-
bar com ela. E esse tempo está a chegar.
CARTA CAPITAL
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