Por André Barrocal
No início da noite da terça-feira 21, Arthur Lira saiu de sua sala na Presidência da Câmara e foi ao cafezinho do plenário.
O deputado Julio Delgado, de Minas Ge-
rais, comentou ao vê-lo: “Você vai reele-
ger o Glauber”. O sisudo Lira, para quem
“alagoano é brabo”, ficou quieto. Horas
antes, o Conselho de Ética havia engave-
tado um pedido de cassação de Lira. Pau-
lo Azi, o baiano à frente do conselho, ti -
nha inovado. Arquivara o pedido por con-
ta própria, sem designar alguém do con-
selho para examinar o caso. Agiria assim
se o alvo fosse outro? Naquele dia, os mar-
queteiros do condestável tinham levado
ao ar, em Alagoas, uma espantosa propa-
ganda televisiva segundo a qual “Arthur
Lira é foda”. O pedido de cassação parti-
ra do PSOL, o partido de Glauber Braga,
aquele, segundo Delgado, que o presiden-
te da Câmara reelegerá involuntariamen-
te. Lira e Braga haviam batido boca no ple-
nário em 31 de maio e, no dia seguinte, o
conselho recebia um pedido de cassação
do psolista. Este, Azi não engavetou. Ao
contrário, fez andar com rapidez.
O motivo do bate-boca foi a Petrobras,
assunto que acaba de expor mais uma vez
o poder de Lira. O presidente da estatal
demitiu-se em 20 de junho, um dia após o
deputado publicar um artigo com amea-
ças veladas aos dirigentes da companhia
e seus familiares. Na véspera da desaven-
ça com Braga, o alagoano dissera em uma
entrevista que mudar a Constituição pa-
ra privatizar a petroleira era difícil, me-
lhor seria o governo apostar numa lei de
venda de ações da empresa. A ideia da de-
sestatização à Eletrobras surgira no em-
balo dos seguintes fatos do mês de maio:
a Petrobras subira o diesel em 8%, Jair
Bolsonaro degolara o almirante Bento
Albuquerque do Ministério de Minas e
Energia, o sucessor na pasta, o economis-
ta Adolfo Sachsida, indicara outro presi-
dente para a estatal, e a companhia infor-
mara que a substituição teria de esperar
o desenrolar de certas burocracias. José
Mauro Coelho só caiu em 20 de junho,
graças à fúria de Lira.
“Senhor Arthur Lira, eu queria saber
se o senhor não tem vergonha”, disse Bra-
ga no plenário da Câmara em 31 de maio,
a propósito da desestatização da Petro-
bras via atalho. O alagoano cortou-lhe o
microfone e tascou: “Pelo que disse aqui,
já responderá no Conselho de Ética. Vai
responder lá”. Dito e feito: no dia seguin-
te, o PL de Bolsonaro, linha auxiliar de
Lira, incitava o Conselho contra Braga,
por quebra de decoro. O revide do PSOL
também apontou quebra de decoro de Li-
ra, em razão de uma ameaça durante o en-
trevero: “Eu usarei de medidas mais du-
ras para retirá-lo do plenário”. “Quero ver.
Vamos ver se o senhor vai me tirar daqui.”
“O senhor vai ver se eu não tiro”, dispa-
rou sinhozinho Lira. Curioso: em março,
quando o deputado Daniel Silveira, do Rio
de Janeiro, escondeu-se no plenário pa-
ra não ser pego pela Polícia Federal e foi
obrigado a usar tornozeleira eletrônica, o
alagoano dizia que a Casa era “inviolável”.
Aameaça de ser retirado por
Lira do plenário não inti-
midou Braga, que em se-
guida, da tribuna, repetiu
a pergunta da discórdia.
“O senhor não tem vergonha, não? É pe-
cado perguntar se o senhor não tem vergo-
nha? Lamentável não é a minha indigna-
ção. Lamentável é o senhor se sentir à von-
tade para, no ano de 2022, utilizar do po-
der que tem como presidente da Câmara
para entregar o patrimônio brasileiro, fin-
gindo que está fazendo um bem para a po-
pulação.” Em 20 de maio de 2021, os dois
haviam protagonizado embate parecido.
Foi na votação da privatização da Eletro-
bras. “A Câmara dos Deputados hoje tenta
deixar o Brasil de joelhos, mas esse ataque
vil, baixo, que os senhores operaram não
vai prevalecer”, dissera Braga. “Não são
dois, três, quatro, cinco ou 100 canalhas
que vão nos parar.” “Determino que reti-
re por completo a fala do deputado Glau-
ber da taquigrafia”, ordenara Lira.
A votação sobre a Eletrobras serve pa-
ra entender a razão de Lira ter se meti-
do tanto no tema Petrobras. O interesse
na petroleira não se explica só por seu go-
vernismo, nem pelo abacaxi que o preço
dos combustíveis se tornou para a reelei-
ção de Bolsonaro. Na lei da privatização
da empresa elétrica, a Câmara incluiu a
obrigação de a companhia construir vá-
rias usinas de energia movidas a gás natu-
ral. Obra do relator, o baiano Elmar Nas-
cimento, do União Brasil (ex-DEM). Nas-
cimento é ligadíssimo a Lira. Quando es-
te se elegeu para comandar a Câmara, em
fevereiro de 2021, o baiano liderou a trai-
ção do DEM ao concorrente que o então
presidente da Casa, Rodrigo Maia, ain-
da no partido, apoiava, Baleia Rossi, do
MDB. Um dos primeiros nomes do ex-
-DEM a pular no barco de Lira na época
foi Azi, hoje à frente do Conselho de Ética.
A ampliação da rede de térmicas, pro-
posta na contramão de qualquer preocu-
pação ambiental, foi feita na medida para
Carlos Suarez, o “S” da empreiteira OAS.
O empresário possui interesses na área
de gás. É dono da distribuidoraTermogás
e de autorizações para construir gasodu-
tos. A rede de térmicas dificilmente sai-
rá do papel sem a Petrobras bancar os ga-
sodutos. Quando Bolsonaro decidiu sacar
o general Joaquim Silva e Luna da dire-
ção da estatal, há três meses, Lira quis
emplacar um apadrinhado na vaga. Era
Adriano Pires, lobista do setor de petróleo
e gás que prestara consultoria a Suarez.
Seu passado de lobista e os elos com o em-
presário pesaram na má vontade do con-
selho de administração da petroleira. An-
tes de ver sua indicação vetada pelo co-
legiado, Pires renunciou à candidatura.
Lira ficou uma fera com a derrota,
particularmente com os 11 integrantes
do conselho, dos quais seis são designa-
dos pelo governo. “A compliance monta-
da pela Petrobras não vai permitir que
ela trabalhe em prol do povo brasileiro.
Pergunte a eles qual o cheiro do gás”. Na
época, falou pela primeira vez em mexer
na Lei das Estatais. Esta é de 2016, apro-
vada em clima de Operação Lava Jato e
impeachment de Dilma Rousseff. Cria di-
ficuldades para o governo nomear diri-
gentes de estatais, ao exigir comprova-
ção de trabalho ou de estudos no ramo
da empresa. Lira voltou ao tema na cri-
se que culminou na queda de Coelho, o
escolhido para dirigir a empresa após Pi-
res desistir. O deputado sugeriu a Bolso-
naro baixar uma medida provisória para
modificar a Lei das Estatais. De olho nu-
maa volta ao poder com Lula, a presidente
do PT, Gleisi Hoffmann, apoia. Para ela,
a lei “criminaliza a política”.
Lira também quer uma MP para co-
brar mais impostos da Petrobras e uma
CPI para emparedar a empresa, ideia
apoiada pelo presidente. É uma reação à
decisão da companhia de elevar em 14%
o preço do diesel e em 5% o da gasolina.
Para um deputado, o alagoano agiu com
o fígado por ter se sentido desmoraliza-
do. A Câmara alterou o ICMS estadual
para atenuar o preço dos combustíveis,
e o esforço foi anulado pelo reajuste da
Petrobras. Logo após o anúncio do no-
vo aumento, em 16 de junho, Lira clas-
sificou em um tuíte a petroleira como
“inimiga do Brasil” e pediu a cabeça de
Coelho, de aviso prévio havia uma sema-
na. Na véspera da demissão, o deputado
escrevera na Folha de S. Paulo que era
preciso conhecer a Petrobras. “Quanto
gastam seus diretores em suas viagens?
Quanto custam suas hospedagens? No
exterior ficam onde? Em que carro an-
dam? Quem paga seus almoços e janta-
res? Alugam carros? Aviões? Helicópte-
ros? Há excessos? De onde vieram? Co-
mo constituíram seus patrimônios? Seus
parentes: investem onde e são ligados a
quem?”. Don Corleone ficaria orgulhoso.
Idem um certo ex-presidente da Câmara.
“Arthur Lira é quase tão truculento
quanto o Eduardo Cunha. A mudança
no regimento da Câmara acabou com o
debate. Ele mudou as regras no meio do
jogo”, afirma o deputado Ivan Valente, do
PSOL paulista. A mudança em questão
é de maio do ano passado, com três me-
ses de gestão Lira, e reduziu as possibili-
dades de a oposição atrapalhar uma vo-
tação. A privatização da Eletrobras foi a
voto na semana posterior. “O viés auto-
ritário do Lira é o mesmo do Cunha. Só
que o Lira é mais perigoso. Sinto que há
um clima geral de medo em relação a ele”,
afirma Braga. “Ele tem um poder que ne-
nhum outro presidente da Câmara teve,
o orçamento secreto.”
Lira é herdeiro e continu-
ador do projeto de poder
de Cunha. Um projeto que
pode ser resumido assim:
mandar no Brasil a partir
da Câmara, sem precisar de milhões de
votos para chegar ao Palácio do Planalto.
Quando Cunha ascendeu ao comando da
Casa, em 2015, colocou Lira à frente da
comissão mais importante, a de Consti-
tuição e Justiça. Na CCJ, o alagoano ten-
tou salvar a pele do aliado, cassado em se-
tembro de 2016 por mentir a colegas so-
bre possuir contas no exterior. Menti-
ra contada, aliás, em uma CPI da Petro-
bras. Antes da queda, Cunha aprovara a
proibição de o governo bloquear dinhei-
ro das emendas parlamentares indivi-
duais e botara para andar a proibição à
suspensão das emendas coletivas, que
viraria norma em 2019. Com essas duas
proibições mais o orçamento secreto, a
Câmara adquiriu força inédita, desfru-
tada por Lira, o chefe do “Centrão”.
Cunha vai tentar uma vaga de deputa-
do federal pelo PTB de São Paulo e tem
dito que apoia a reeleição de Lira ao co-
mando da Câmara. No Congresso, co-
menta-se que o alagoano reservou par-
te do orçamento secreto para liberar de-
pois de outubro e usar os recursos para
arrancar dos deputados o compromis-
so de sua reeleição. O orçamento secre-
to é a garantia de que muito parlamen-
tar de hoje renovará o mandato. Daí Li-
ra ter dito, em 10 de maio, em Nova York:
“O Congresso que for eleito em outubro,
eu não tenho dúvidas, será um Congres-
so de centro-direita”. “Lira é primeiro-
-ministro. Para escapar doimpeachment,
Bolsonaro entregou o orçamento e a ar-
ticulação política para o Centrão. O (mi-
nistro) Ciro Nogueira faz isso do gover-
no, o Lira faz na Câmara. Por isso, o Lira
defende o semipresidencialismo”, afir-
ma o deputado paulista Paulo Teixeira,
secretário-geral do PT.
Semipresidencialismo é parla-
mentarismo com outro nome.
Lira prepara essa bomba pa-
ra estourar no próximo gover-
no. Em março, criou um gru-
po de trabalho sobre o assunto. Indicou
uma única deputada da oposição, Alice
Portugal, do PCdoB da Bahia. E ela não
aceitou o encargo: “Debate extemporâ-
neo”. “Ele (Lira) já quer tirar o poder do
presidente para que o poder fique na Câ-
mara dos Deputados e ele aja como se fos-
se o imperador do Japão”, disse Lula em
maio, quando o partido Solidariedade de-
clarou-lhe apoio eleitoral. O petista tem
criticado Lira de forma dura. Em março,
comentou: por causa do orçamento secre-
to, o alagoano manda mais do que Ulysses
Guimarães quando este, nos anos 1980,
presidia a Câmara e a Assembleia Cons-
tituinte ao mesmo tempo. Em abril, cha-
mou o orçamento secreto de “excrescên-
cia”. E Lira? “O presidente Lula não tem
o que falar sobre o deputado Arthur Lira
porque ele não me conhece. Nunca con-
versou comigo, nunca tomou um café. Eu
nunca bati um papo, nunca tive o prazer
ou desprazer de estar com ele.”
Lula esteve em Alagoas em 17 de ju-
nho, em ato público com o grupo político
de Renan Calheiros, licenciado do Sena-
do desde o início do mês para mergulhar
na campanha local, disputa feroz contra
o grupo de Lira. Ao recepcioná-lo no ae-
roporto, o senador licenciado contou ao
petista que uma pesquisa nas 20 maio-
res cidades alagoanas aponta incríveis
50% de intenção de voto espontâneo no
ex-presidente. Alagoas terá uma das elei-
ções mais nacionalizadas do ano. Lula e
Calheiros de um lado, Bolsonaro e Li-
ra de outro. “O processo político nacio-
nal tem mostrado um número cada vez
maior de afinidades entre eles. O presi-
dente da Câmara tem assumido ares ab-
solutamente autoritários”, diz Calheiros.
“Ele se beneficia muito do orçamento se-
creto e sobrevive na eleição proporcio-
nal, mas é acostumado a perder as elei-
ções majoritárias em Alagoas.”
Lira quer tomar de Calheiros o poder
no estado. Em maio, os dois brigaram na
Justiça por causa da eleição indireta pa-
ra govenador. Renan Filho (de Calheiros)
deixara o governo em abril para concor-
rer ao Senado, seu vice fizera o mesmo em
2020 para eleger-se prefeito deArapiraca,
a segunda maior cidade de Alagoas, daí
que o presidente do Tribunal de Justiça
tornou-se governador interino até uma
eleição indireta na Assembleia Legislati-
va. O favorito na indireta era Paulo Dan-
tas, então deputado estadual pelo MDB de
Calheiros. Na briga judicial, Lira valeu-se
do PSB, partido do vice de Lula, Geraldo
Alckmin, e do prefeito de Maceió, João
Henrique Caldas. O prefeito é linha au-
xiliar de Lira. Também ajudou o presiden-
te da Câmara a tentar impedir nos tribu-
nais que Renan Filho conseguisse recur-
sos com leilões de obras de saneamento,
um total de 3,6 bilhões entre 2020 e 2021.
Durante a briga judicial sobre a elei-
ção indireta, Lira trocou agressões pú-
blicas com Calheiros. O impasse termi-
nou com a derrota do deputado e a eleição
indireta de Dantas, graças a uma decisão
de Gilmar Mendes, do Supremo Tribu -
nal Federal. O juiz acaba de completar 20
anos de corte e, na quarta-feira 22, jan-
tou com Bolsonaro na casa de Lira. No
STF, há quem sinta que Lira tornou-se
“bolsonarizado” demais e sem disposi-
ção para defender a corte dos ataques do
capitão, depois de o tribunal tê-lo livra-
do, há quatro meses, de um processo por
corrupção. Ainda há outro processo pe-
la mesma acusação contra Lira no tribu-
nal, parado desde 2019. A propósito: Lira
é ficha suja, condenado em 2016 no Tri-
bunal de Justiça de Alagoas por ter usa-
do verba de deputado estadual para pa-
gar empréstimo no Banco Rural. Só con-
seguiu concorrer na eleição de 2018 gra-
ças a uma liminar do próprio TJ.
“Criminosos como você são imunes
aos remédios das leis alagoanas”, tuitou
sobre Lira a ex-mulher, Jullyene Lins,
em 23 de maio. Às vésperas da eleição
do deputado para o comando da Câma-
ra, Jullyene havia dito à Folha: “Ele me
agrediu, me desferiu murro, soco, ponta-
pé, me esganou”. A agressão teria sido em
2006, um ano antes da separação do ca-
sal. O comentário recente de Jullyene foi
feito após o deputado tuitar que Calhei-
ros deveria ler o livro Mente Criminosa.
Diante da prisão de Milton Ribeiro, ex-
-ministro da Educação, na quarta-fei-
ra 22, Lira foi fustigado pelo rival. Se-
gundo Calheiros, a Polícia Federal sa-
be quem “roubou” o MEC e “chegará ao
kit robótica”. O kit é um rolo que atinge
Lira. Em abril, a mesma Folha noticiou
que a firma de uma família amiga de Lira,
a Megalic, vendia em Alagoas, com ágio
de até 420%, computadores para escolas
públicas, compra bancada com verba do
orçamento secreto, retirada do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Edu-
cação, controlado pelo PP de Lira.
Ribeiro foi preso por suas
relações com pastores
propineiros. Lira se dá
bem com evangélicos.
Em dezembro de 2021, ti-
rou da gaveta um projeto que dava isenção
de IPTU e, numa noite só, aprovou-o duas
vezes em plenário. Em troca, queria apoio
da bancada da bíblia para a lei dos jogos
de azar. Em 26 de maio, foi aGoiânia, pa-
ra uma Convenção Nacional das Assem-
bleias de Deus, ramo Madureira. O pa-
trono da igreja, o bispo Manoel Ferreira,
é natural da alagoana Arapiraca. Um
de seus filhos, Samuel, é o atual líder da
igreja. Em Goiânia, Samuel deu um reca-
do ao chefe da igreja em Alagoas, Jaques
Balbino: “Esse (Lira) é o seu candidato.
Cumprimenta o homem”.
Em 2015, a Procuradoria-Geral da
República acusou o evangélico Eduardo
Cunha de receber 250 mil reais em pro-
pina por meio da Assembleia de Deus
ramo Madureira. “O diretor da referi-
da Igreja perante a Receita Federal é
Samuel Cássio Ferreira, irmão de Abner
Ferreira, pastor da Igreja Assembleia de
Deus Madureira, no Rio de Janeiro, que o
denunciado (Cunha) frequenta”, descre-
via a denúncia. Imagine-se a comunhão
de interesses que haverá caso Cunha
volte a ser deputado e reeencontre Lira
na Câmara. “Presenças deletérias”, diz
Calheiros. Será um deus nos acuda.
CARTA CAPITAL
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