Por André Barrocal
Verenilde Santos Pereira, escritora de 67 anos, está espremida na grade que separa o público do palco onde Lula subiria com atraso, dali a uma hora e meia, em um centro de convenções de Brasília. As caixas de som repetem músicas de Juliano Maderada, autor e cantor de canções bem brasileiras a favor do petista. Verenilde é do Amazonas e lá trabalhou no primeiro jornal do País dedicado à causa indígena, o Porantim. Mora há uma década na capital federal, onde se trata de um câncer. Na terça-feira 12, estava acompanhada de uma neta. “De uma forma tão descarada, não. A ditadura militar tinha mais pudor”, comenta, ao ser perguntada se já tinha visto algo parecido com a violência política que avança às vésperas da campanha. O despudor a assusta? Deixará de ir às ruas pelo ex-presidente? “Tenho mais coragem do que medo”.
Tentar impedir que o medo, sentimento paralisante, domine partidários lulistas foi o objetivo dos discursos no evento. Era a primeira aparição pública do ex-presidente após o assassinato do guarda municipal Marcelo Aloizio de Arruda, tesoureiro do PT em Foz de Iguaçu, no Paraná, por um apoiador de Jair Bolsonaro, o agente penitenciário Jorge José da Rocha Guaranho. Homicídio cometido no aniversário de 50 anos da vítima, na noite do sábado 9, com o atirador a gritar “aqui é Bolsonaro” e a xingar Lula e o PT, conforme o boletim de ocorrência do crime. “Extremismo”, lamentou publicamente a viúva, Pâmela Suelen Silva, sensação compartilhada pela mãe de Guaranho. “O que aconteceu tem a ver com extremismo e intolerância política”, disse Dalvalice Rosa ao portal UOL.
LULA A CARTACAPITAL: “NÃO VAMOS CAIR EM PROVOCAÇÕES NEM INTIMIDAÇÃO”
reunido em São Paulo seu conselho polí-
tico, formado pelos chefes dos sete par-
tidos (PT, PSB, PCdoB, PSOL, PV, Rede
e Solidariedade) que o apoiam. A maior
parte da discussão deu-se em torno da
violência política crescente, especial-
mente a morte de Arruda, o ápice dessa
onda de terror. “A preocupação não po-
de virar alarmismo, não pode gerar pâ-
nico. Há uma diferença sutil”, diz Juliano
Medeiros, do PSOL, presente à reunião.
A ordem no QG lulista é não recuar e, ao
contrário, sair cada vez mais às ruas con-
tra Bolsonaro. “Não vamos cair em provo-
cações nem intimidação”, declarou Lula a
CartaCapital, ao passar por Brasília.
A campanha começará de fato em
agosto, mas o clima é de tensão cada vez
maior. E não só por causa de violência nas
ruas. O ministro da Defesa, general Paulo
Sérgio Nogueira de Oliveira, não para de
desafiar o Tribunal Superior Eleitoral.
É partidário da teoria da conspiração de
que as urnas são fraudáveis e justificam
uma fiscalização e uma apuração paralela
pelas Forças Armadas. Aliás, acadêmicos
da UFRJ e da UFF acabam de examinar
os perfis nas redes sociais de 26 oficiais,
dos quais 23 generais do Exército, e cons-
tataram que a turma vive numa bolha de
extrema-direita. Mas sobre militares e
eleição se falará mais adiante. De volta
ao assassinato de Arruda.
Na terça-feira 12, a presidente petis-
ta, Gleisi Hoffmann, e alguns aliados fo-
ram ao procurador-geral da República,
Augusto Aras, pedir a federalização
das investigações do homicídio. No dia
seguinte, o grupo esteve no TSE com
Alexandre de Moraes, o plantonista por
causa das férias do presidente da Corte,
Edson Fachin. Moraes comandará o tri-
bunal na eleição. Sucede Fachin em 16
de agosto. No documento preparado pe-
los advogados Cristiano Zanin e Eugênio
Aragão, os lulistas culpam Bolsonaro,
sua retórica beligerante e sua defesa do
armamento da população pelos casos de
violência política e por crimes de ódio. E
cobravam do TSE providências para as-
segurar que a eleição transcorra em cli-
ma de paz e sem risco à vida dos eleitores.
Detalhe: no fim de semana da morte de
Arruda, Eduardo Bolsonaro comemorou
o próprio aniversário com um bolo deco-
rado com um revólver 38.
Darão em algo os pedidos do
PT? Na segunda-feira 11,
Moraes tinha palestrado em
São Paulo e dito que a Justiça
Eleitoral vai “garantir elei-
ções limpas, seguras e tran-
quilas”. Acrescentou que só vota “com li-
berdade aquele que tem informações cor-
retas, não sofre coações, não é bombarde-
ado por mentiras, por discursos de ódio”.
Palavras duras, sem dúvida. Mas apenas
palavras. E ações concretas, cadê?
Antes de receber Gleisi, Aras dizia a
jornalistas estrangeiros que não via moti-
vo para assumir o caso Arruda. O “xerife”
é apadrinhado do presidente, sonha em
ser indicado por ele ao Supremo Tribunal
Federal, se Bolsonaro se reeleger. Nada
fez com o relatório da CPI da Covid, que
imputou sete crimes comuns ao capitão.
O relatório apontou ainda crime de res-
ponsabilidade, passível de impeachment,
mas um processo de cassação jamais saiu
da gaveta do comandante da Câmara,
Arthur Lira, autor de mais uma dessas
inúteis notas de repúdio, após o assassi-
nato de Arruda. Mesmo que não haja mo-
tivo para federalizar a apuração da mor-
te, Aras poderia examinar se Bolsonaro
violou o artigo 286 do Código Penal, no
qual está definido o crime contra a paz
pública, punível com prisão de três a seis
meses. Para Wadih Damous, ex-presiden-
te da Ordem dos Advogados do Brasil no
Rio de Janeiro e ex-deputado federal pe-
lo PT, caberia até enquadrar Bolsonaro
como “mandante difuso” do assassinato.
O comportamento do capitão justifi-
ca esse tipo de acusação. Naquela famo-
sa reunião ministerial de 22 de abril de
2020, Bolsonaro defendeu “escancarar”
a questão do armamento. “Eu quero todo
mundo armado. Que povo arma-
do jamais será escravizado.” Em
agosto do ano passado, pregou
que mais brasileiros compras-
sem fuzil. Não cansa de repetir
desde a pandemia que “a liber-
dade é mais importante do que
a própria vida”. Em um evento
em Maringá há dois meses, dis-
se que “pior que uma ameaça ex-
terna é uma ameaça interna de
‘comunização’ do nosso País”.
Agora em julho, em uma de su-
as transmissões semanais em ví-
deo na web, afirmou: “Você sabe
o que está em jogo, você sabe co-
mo você deve se preparar”.
Na campanha presiden-
cial de 2018, Bolsonaro defen-
dera em um ato no Acre “fu-
zilar a petralhada”, enquanto
segurava um tripé de câmera
de tevê com o qual simulava
uma metralhadora. Cinco semanas de-
pois, um eleitor de Fernando Haddad, do
PT, morria na Bahia com 12 facadas des-
feridas por um bolsonarista. Romualdo
Rosário da Costa, o Moa do Katendê, um
dos fundadores do bloco Ilê Ayiê, tom-
bou após discutir em um bar com o bar-
beiro Paulo Sérgio Ferreira de Santana,
condenado em 2019 a 22 anos de cadeia.
“Briga de bar” é no que o bolsonaris-
mo quer transformar o assassinato de
Arruda. Na segunda-feira 11, o vice-pre-
sidente da República, general Hamilton
Mourão, disse que a morte não era “pre-
ocupante” e que não havia elementos pa-
ra classificá-la como crime político. Para
ele, foi um episódio desses de fim de se-
mana, “de gente que provavelmente be-
be e aí extravasa as coisas”. O Sindicato
dos Agentes Federais de Execução Penal
de Catanduvas designou uma advogada
para Guaranho, Marise Jussara Franz,
que alega legítima defesa do cliente e pe-
de um exame de embriaguez no cadáver.
Impedir o sindicato de ter acesso aos au-
tos foi uma das razões para o promotor
“HÁ UMA TENTATIVA
DE CRIMINALIZAR A
VÍTIMA”, DIZ DANIEL
GODOY, ADVOGADO
DA FAMÍLIA DE
MARCELO ARRUDA
público do caso, Tiago Lisboa
Mendonça, concordar com uma
requisição do advogado da fa-
mília de Arruda, Daniel Godoy,
para o caso ser colocado sob si-
gilo. A Polícia Civil também to-
pou. Até a conclusão desta repor-
tagem, na quinta-feira 14, o juiz
Gustavo Germano Francisco
Arguello, da 3a Vara Criminal
de Foz do Iguaçu, não tinha de-
cidido a respeito.
As câmeras de segurança do
local do homicídio, a Associação
Recreativa Esportiva Segurança
Física, jogam contra a tese da
“briga de bar”. É possível ver
Guaranho passar de carro na
porta da festa e parar. Eram
23h40. Por que estava ali? Em depoi-
mento à polícia, sua esposa disse que ele
fazia rondas no local às terças e sextas.
Era um sábado. A mulher e a filha peque-
na de ambos estavam no carro. Este dis-
se algo na direção do salão da festa. Não
se sabe o quê, o vídeo não tem áudio. O
boletim de ocorrência registra que, se-
gundo participantes da festa, eram gritos
pró-Bolsonaro e anti-Lula. Arruda saiu
do salão, foi ao carro e arremessou algo.
Guaranho sacou a arma. De dentro do
carro, discutiu com a esposa de Arruda,
Pâmela, uma polícia civil. O assassino foi
embora e voltou às 23h51, sem a mulher
e a filha. Desceu do veículo e atirou no
salão. Arruda estava armado e revidou.
Morreu com dois tiros. Guaranho levou
três, mas sobreviveu. Está em prisão pre-
ventiva, mesmo hospitalizado.
O advogado Godoy disse à reportagem
que há “uma tentativa de criminalizar a
vítima, justificar a versão de que se tra-
ta de briga de bar, e de descaracterizar o
crime de ódio por motivação política”. E
que essa tentativa está clara na declara-
ção do general Mourão. O secretário de
Segurança Pública do Paraná, Wagner
Mesquita, policial federal, vê indícios
de intolerância política no crime. A se-
cretaria trocou a delegada à frente d
investigações, Iane Cardoso, por ou-
tra, Camila Cesconetto. Iane propagava
mensagens antipetistas nas redes sociais
no passado. A Polícia Civil do Paraná,
estado governado por um bolsonarista,
Ratinho Jr., do PSD, tinha até o dia 19 pa-
ra concluir o inquérito. Aí caberá ao pro-
motor decidir se segue com a investiga-
ção ou se a encerra e denuncia Guaranho
à Justiça. Recordação: a promotoria pa-
ranaense até hoje não esclareceu os tiros
numa caravana de Lula em abril de 2018.
E Bolsonaro, diante do assassinato de
Arruda? Politizou o assunto ao alegar ter
o objetivo oposto. Primeiro, lembrou a
facada que levou na campanha de 2018,
desferida por um ex-filiado do PSOL,
Adélio Bispo. Depois, disse que não tinha
nada a ver com o crime de agora e que es-
se tipo de coisa é com a esquerda. Por fim,
após bater um certo nervosismo em seu
comitê de campanha, que em Brasília co-
menta-se ter encomendado uma pesqui-
sa para saber como os brasileiros viram
a reação do capitão, despachou um alia-
do até Foz do Iguaçu para falar com dois
irmãos de Arruda, ambos bolsonaristas.
O deputado Otoni de Paula, do MDB do
Rio, botou o presidente para falar com a
dupla por meio de uma chamada de ví-
deo, enquanto a cena era gravada em ou-
tro vídeo, divulgado nas redes sociais pe-
lo parlamentar. “A esquerda politizou o
negócio”, disse Bolsonaro na conversa.
Ele queria que os dois irmãos fossem a
Brasília para uma entrevista a seu lado.
Oassassinato de Arruda foi o ápi-
ce de uma sequência de acon-
tecimentos violentos de nítida
motivação política. Na ante-
véspera do homicídio, Lula ti-
nha estado em um comício na
Cinelândia, no Rio de Janeiro. No ato, foi
atirada no público uma garrafa PET com
um líquido e um pavio. Uma bomba ca-
seira. O ataque foi obra de um pescador
de 55 anos, André Stefano Dimitriu Alves
de Brito, preso pela PM na hora. Na ter-
ça-feira 12, o Ministério Público denun-
ciou-o pelo crime de explosão, previsto no
artigo 251 do Código Penal, cujo castigo é
prisão de três a seis anos.
Em 15 de junho, Lula havia ido a um
ato público no estacionamento de um
centro universitário em Uberlândia, no
Triângulo Mineiro. Um drone sobrevoou
o local e despejou na plateia veneno usa-
do para matar moscas em estábulos, ao
qual foram adicionadas fezes e urina. O
autor do ataque foi um agropecuarista,
Roberto Luiz Pereira, de 38 anos. Típico
cidadão de bem. Em seu prontuário, do-
no de uma picape enfeitada com um adesi-
vo de Bolsonaro, há uma condenação por
estelionato em Minas e um por roubo em
Goiás. Em 2 de julho, o juiz Osmar Vaz de
Mello, da 3a Vara de Uberlândia, decretou
a prisão preventiva de Pereira. Atendeu a
um pedido do Ministério Público, que
descobriu que o agropecuarista usou do-
cumentos falsos para comprar uma arma.
Os ataques não aconteceram apenas
em atos de Lula. No dia 6, um juiz da
15a Vara Federal de Brasília voltava do
trabalho para casa e teve o carro alve-
jado por fezes e esterco. Na manhã se-
guinte, ao sair para o serviço, Renato
Coelho Borelli foi admoestado de no-
vo no carro, desta vez com ovos e terra.
Trata-se do magistrado que tinha man-
dado prender, em 22 de junho, o pastor
Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação
metido no escândalo dos pastores lobis-
tas. Em maio, um ex-presidente da CUT
em Pernambuco, Paulo Valença, de 72
anos, havia sido agredido por um vizi-
nho que o chamou de “petista ladrão”.
Valença foi vice-prefeito de Olinda pelo
PT entre 2001 e 2008.
Esses acontecimentos, diz Acilino
Ribeiro, responsável no PSB pela relação
com movimentos populares, fazem par-
te de golpe de Bolsonaro e de setores mi-
litares para melar a eleição. Treinado em
inteligência, informação e contrainfor-
mação, Ribeiro é amigo de José Dirceu e
pertence à Rede Nacional de Inteligência
Cidadã. Segundo ele, o golpe teria um no-
me, Operação Selva de Pedra, e três fases.
A primeira consiste em distúrbios e pro-
vocações. É a fase atual. A segunda come-
çaria em setembro e se caracterizaria por
tensões institucionais, cuja cereja do bo-
lo seria a comemoração da Independência
do Brasil. A última fase seria em outubro,
com a adesão de setores bolsonaristas das
Forças Armadas, das milícias e do agro-
negócio a alegar antes mesmo da vota-
ção que a eleição será roubada. “É bom
que eles saibam que nós sabemos dessa
operação. E que saibam também que
haverá resistência popular”, diz Ribeiro.
No início de julho, o ministro Edson
Fachin, do TSE, foi aos Estados Unidos e
disse que “nós poderemos ter um episó-
dio ainda mais agravado do 6 de janeiro,
do Capitólio”, alusão à insurreição de fi-
éis de Donald Trump após a derrota para
Joe Biden. Aqui, o terreno do golpe tem
sido preparado a olhos vistos. Bolsonaro
fez uma reunião ministerial em 5 de ju-
lho e o governo vazou à imprensa que boa
parte da conversa tinha sido sobre ur-
nas e o desejo do ministro da Defesa de
pressionar o TSE para que aceite suges-
tões militares sobre a eleição. O general
Oliveira foi ao Congresso um dia depois
e falou de viva voz a esse respeito. “Não
me queiram convencer de que há sistema
que não mereça aperfeiçoamento”. Está
nos planos do Ministério da Defesa uma
apuração paralela dos votos. Os chefes
das Forças Armadas acabam de requerer
ao TSE informações sobre as eleições de
2014 e 2018. Bolsonaro chamou embaixa-
dores estrangeiros em Brasília para uma
reunião em breve, na qual quer falar so-
bre como aquelas duas eleições teriam si-
do fraudadas. “Eu não tenho a menor dú-
vida de que o Bolsonaro não vai aceitar
a derrota, que não vai haver uma transi-
ção democrática, que nós vamos ter uma
eleição violenta”, diz o deputado Marcelo
Freixo, do PSB, pré-candidato ao governo
do Rio. “Daí a importância de uma vitória
do Lula no primeiro turno. O tamanho da
derrota do Bolsonaro é mais importante
do que o da vitória do Lula. Se ele perder
de forma acachapante no primeiro turno,
diminui muito a sua capacidade de tentar
qualquer tipo de instabilidade.”
Anecessidade de vencer
Bolsonaro no primeiro tur-
no foi um dos assuntos abor-
dados por Lula em um al-
moço com o presidente do
Congresso, senador Rodrigo
Pacheco, na passagem por Brasília. Após
o assassinato de Arruda, Pacheco tinha
sito bem mais contundente do que Arthur
Lira, ao comentar o episódio. “O assassi-
nato de um cidadão, durante a comemo-
ração de seu aniversário com a temática
do candidato Lula, é a materialização da
intolerância política que permeia o Brasil
atual e nos mostra, da pior forma possível,
como é viver na barbárie. Devemos todos,
especialmente os líderes políticos, lutar
para combater este ódio.” Pelo cargo que
ocupa, caberá a Pacheco dar posse, em 1o
de janeiro de 2023, ao presidente eleito
em outubro. Antes disso, caberá ao TSE
diplomar o vencedor, em meados de de-
zembro. Quanto mais Pacheco e Moraes
resistirem a investidas golpistas, maior
será o preço político interno e para a ima-
gem do Brasil no exterior, de uma aventu-
ra de Bolsonaro e seus militares. Basta .
CARTA CAPITAL
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