Indígenas são vítimas de campanha de ódio após a morte de três caçadores em área demarcada
POR FABÍOLA MENDONÇA
No fim de abril, a Polícia Civil do Pará encontrou os corpos de Gutemar Pereira e Jaime Santos, trabalhadores terceirizados que prestavam serviço à Equatorial, empresa de energia do estado, depois de duas semanas que eles tinham desaparecido. A dupla foi assassinada enquanto fiscalizava uma fazenda numa área rural do município de Rio Maria, no Sul do Pará. No mesmo período, três jovens foram encontrados mortos na cidade de Novo Repartimento, no sudeste paraense, mais especificamente no interior da Terra Indígena Awaeté Parakanã. Ainda não se conhecem as causas nem os responsáveis pelos dois crimes, pois as investigações estão em curso.
Os assassinatos têm em comum um aparente motivo torpe. O que chama atenção, no entanto, é a diferença inexplicável quando se observa a repercussão e a reação popular em relação aos dois episódios. Enquanto na morte dos trabalhadores a comoção deu-se dentro do esperado, um lamento por duas vidas terem sido ceifadas de forma abrupta, no assassinado dos jovens a reação é de revolta, vingança, ódio e racismo.
Uma parte da população de Novo Repartimento acusa os indígenas de terem assassinado os jovens e ameaça invadir as aldeias para fazer justiça com as próprias mãos. Quer exterminar os 1,5 mil Parakanã que vivem nos 350 mil hectares da reserva e destruir todo o território. “Tinha que pegar, onde topar um ‘índio’, ia matando um por um, para não deixar nenhum vivo, esses vagabundos, canalhas. Não deixar nenhum vivo, nem para remédio”, incita um dos áudios que circulam pelo WhatsApp, ao qual CartaCapital teve acesso. Em outra mensagem, o mesmo autor, desconhecido, faz ameaça ao cacique Xeteria, que tinha gravado um vídeo pedindo proteção para os indígenas. “Esse cacique vagabundo aí ainda fica pedindo apoio. Tem que primeiro matar ele, matar enforcado, de cabeça pra baixo, e ir puxando, cortar o meio dele com serrote.” Uma imagem retirada desse vídeo foi transformada em cartaz, associando a morte dos jovens ao cacique. Habitantes de Novo Repartimento culpam os Parakanã pelo crime e querem fazer justiça com as próprias mãos
Essas e outras manifestações de xenofobia e vingança fazem parte de uma campanha de ódio e fake news que circula nas redes sociais contra os Parakanã e que levaram os indígenas a se isolarem na mata, acuados, com medo de serem mortos. Tudo começou no domingo 24 de abril, quando William Santos Câmara, José Luiz da Silva Teixeira e Cosmo Ribeiro de Sousa entraram na Terra Indígena para caçar, prática proibida por lei. Uma semana depois, no dia 30, em uma operação conjunta das polícias Federal e Militar e do Corpo de Bombeiros do Pará, os corpos dos homens foram encontrados enterrados em covas rasas e cobertos por folhas dentro de uma das 24 aldeias Awaeté Parakanã. “Não tem como explicar a pena de morte para quem vai a um lugar. Se entrar na Terra Indígena Parakanã, está decretada a pena de morte?”, indaga Maria Gorete Borges da Silva, mãe de José Luiz.
Após a confirmação das mortes, a reação foi imediata. Os não indígenas falam em se vingar dos Parakanã, os comerciantes de Novo Repartimento deram início a um movimento de boicote aos indígenas, se negando a vender mercadorias a eles, e um outdoor foi instalado na cidade com a frase “Índio não pode matar”. Ribamar Ribeiro Júnior, antropólogo e coordenador do curso de magistério indígena do Instituto Federal do Pará, relata que, no dia seguinte ao desaparecimento dos jovens, um grupo de 40 pessoas chegou a invadir um posto de atendimento dos Parakanã, onde aconteciam aulas e atendimento à saúde. Sem pedir autorização para entrar, o grupo agiu de forma violenta. As aulas foram suspensas, alguns professores não indígenas que estavam no local precisaram ser resgatados e os alunos foram para aldeias mais próximas, acuados pelos populares.
“O grupo dizia que os jovens estavam em cárcere privado. A partir daquele momento surgiu um sentimento de medo, muitos indígenas não estavam nem sabendo o que estava acontecendo, gerando um clima de insegurança”, explica o professor. As lideranças indígenas propuseram a criação de um grupo para fazer as buscas na mata, mas os não indígenas não aceitaram e ocuparam por três dias a Transamazônica, rodovia que margeia a terra indígena. A desobstrução da estrada só aconteceu na quinta-feira 28, depois da chegada da Força Nacional e da Polícia Federal ao local.
“Pessoas agindo de má-fé direcionam toda a tristeza e dor das famílias contra os Parakanã. A cada mensagem que circula eles escolhem um membro diferente para atacar”, lamenta a professora Cristina Macedo, coordenadora do curso de especialização em gestão escolar voltado para a TI Parakanã.
Por conta das ameaças, mulheres e crianças adentraram na mata, enquanto os homens faziam a retaguarda. Algumas aldeias mais próximas da cidade foram esvaziadas, devido ao risco iminente. “É como se estivéssemos vivendo uma cena de guerra, em que pessoas afetadas se deslocam em massa em busca de refúgio em outro lugar”, destaca Macedo. A Força Nacional e a Polícia Federal continuam instaladas em Novo Repartimento para tentar controlar a situação. “A campanha de ódio que circula revela um racismo que não estava claro. Não é a defesa dos jovens que está em jogo. Uma coisa é o processo que a polícia está fazendo a partir das investigações, a outra é se aproveitar da situação para intensificar as ameaças de invasão ao território e de morte dos indígenas, de justiçamento”, analisa Ribeiro Júnior. Mistério. Os corpos estavam sepultados em covas rasas, o que não condiz com a tradição dos Parakanã, de deixar os inimigos mortos ao relento na mata –
A represália também é institucional. A prefeitura de Novo Repartimento chegou a suspender as aulas presenciais nas aldeias Awaeté Parakanã e, em consequência, reduziu pela metade o salário dos professores – que continuam dando aula de forma remota –, e ainda demitiu os trabalhadores terceirizados que cuidavam dos serviços gerais nas escolas, todos eles indígenas. “Foram reduzidas as horas em função de a aula não ser presencial, de 200 para 100 horas”, diz o prefeito Valdir Lemes (PSD), ressaltando que consultou o Ministério Público antes de tomar a decisão. “Os terceirizados não estarão recebendo porque não têm nenhuma prestação de serviço a fazer. Os barracões onde acontecem as aulas presenciais são dentro da aldeia e, portanto, não há necessidade de fazer a manutenção.”
Por não poderem circular em Novo Repartimento, os indígenas enfrentam dificuldade para comprar comida. A prefeitura não dá assistência alguma para resolver o problema, embora reconheça que os indígenas estão ameaçados na cidade. Como alternativa, sugere que os Parakanã utilizem o comércio de municípios vizinhos, como Marabá e Itupiranga. “Repartimento é apenas o local mais próximo. Não é aconselhável que, neste primeiro momento, eles venham para cá. A gente diz isso levado pelo bom senso. Tenho conhecimento da dificuldade deles de terem acesso a Novo Repartimento, mas não significa que eles estão barrados, porque têm o acesso pelo lado de Itupiranga e Marabá. Nada os impede de fazer isso.” O atendimento à saúde dos Parakanã também está comprometido e a prefeitura alega que cabe à Funai a prestação desse serviço. Sitiados na mata, os Parakanã vivem crise humanitária, sem acesso a comida e medicamentos
Embora os corpos das vítimas tenham sido encontrados em Novo Repartimento, a campanha de ódio contra os Parakanã afetou a TI Awaeté Parakanã que está na jurisdição de Itupiranga, município que concentra 40% da etnia. Lá, os indígenas também estão impedidos de frequentar as aulas por conta de ameaças. Acionado pela reportagem, o coordenador de Educação Escolar Indígena do município, Paulo Thelio, não quis falar sobre o tema, alegando que “o suposto fato não aconteceu em Itupiranga, foi em Novo Repartimento, seria melhor conversar com algum representante de lá”.
Ronaldo Amanayé, da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), denuncia que os Parakanã vivem uma crise humanitária. “Além de não estarem estudando, as pessoas não têm atendimento de saúde, muitos precisam de tratamento e medicamento, as crianças estão passando fome, estão desamparadas. Reivindicamos que os órgãos competentes garantam a segurança alimentar dos Parakanã.” Sobre os corpos dos jovens encontrados na TI, Amaneyé lembra que é proibido por lei a entrada de não indígenas nas aldeias, que são de usufruto exclusivo dos indígenas, informação que consta em placas instaladas nas entradas das TIs. “Falam que ‘os Parakanã têm que ir embora de Novo Repartimento’. Não foram os Parakanã que chegaram em Novo Repartimento, foi a cidade que chegou no território Parakanã.”
O representante da Fepipa diz que só vai se pronunciar sobre o crime após a conclusão do inquérito da Polícia Federal, que corre em segredo de Justiça. O Ministério Público Federal no Pará acompanha o caso e, em nota, defendeu a necessidade de diálogo com a comunidade indígena e com os familiares das vítimas, no sentido de evitar o acirramento dos conflitos. A Superintendência Regional da Funai também trabalha para distensionar o clima, mas não quis se pronunciar sobre o caso, alegando o sigilo do inquérito, motivo também pelo qual a PF não adiantou detalhes sobre o caso.
Na contramão da campanha de ódio e das acusações de que os Parakanã seriam os responsáveis pelo assassinato dos três jovens, a tradição dessa etnia contraria a forma como os corpos foram encontrados. Além de estarem enterrados, há informações não oficiais de que eles teriam sido torturados, dois deles enterrados ainda vivos com pernas e braços amarrados. “Os Parakanã não são belicosos e não enterram os inimigos. Se eles considerassem os mortos como inimigos, não os enterrariam. E jamais enterrariam com mãos amarradas. Eles deixam o inimigo na terra”, afirma o antropólogo Antônio Carlos Magalhães, com a propriedade de quem conviveu por quase 20 anos com os Parakanã, objeto de muitas de suas pesquisas quando atuava no Museu Emílio Goeldi, em Belém.
“Não tenho como julgar o que aconteceu, mas algumas coisas me surpreenderam. Achei atípico que, segundo as reportagens, os corpos haviam sido sepultados”, emenda o também antropólogo e professor do Museu Nacional do Rio, Carlos Fausto, que conviveu com os Parakanã por 11 anos. Fausto chama atenção para os constantes conflitos existentes no País contra os indígenas, sobretudo no governo Bolsonaro, e cobra uma apuração célere do crime. “É possível que tenham sido os indígenas? Em que circunstância? Não sabemos. Além disso, você tem três pessoas armadas dentro da terra indígena. A chance de isso resultar em conflito é muito grande. Não se pode inverter quem inicia o processo que levou à tragédia. Mesmo desarmados, nós, pesquisadores, não podemos entrar sem autorização.” •
CARTACAPITAL
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