ESTHER SOLANO
Viver é se sentir partido ao meio. Mas, ultimamente, nem partidos ao meio estamos. Parece que 80% do coração da gente está angustiado, esperando a próxima pancada e recebendo-a, com raiva, com desespero, com resignação, porque são muitas pancadas, muitos socos, de todos os lados. Não dá tempo de respirar, de se recompor para o próximo assalto que o juiz está apitando o nocaute seguinte. Aquele outro 20%, e estou sendo muito generosa, se regozija com as poucas notícias que esquentam a alma.
Sejamos sinceros, antes fosse 20%. Tem dias que a gente fica num miserável 5%, 1%… Tem dias que a alma fica gelada. Estamos tão carentes de boas-novas, tão órfãos de grandes vitórias, que aguardamos, com entusiasmo, as possíveis pequenas conquistas, nos deleitamos, como crianças com brinquedos novos, a cada mínima possibilidade de esperança. Estamos tão frágeis que a gente já não mais vibra só com os grandes fulgores de luz, mas com os tímidos cintilares que temos a nosso dispor. Uma pequena faísca, uma chispa diminuta de fé, e a gente se agarra a elas como carrapatos desesperados, até o próximo soco no estômago.
Dizem que alegria de pobre dura pouco. A alegria da esquerda também. Pouco, pouquíssimo. Nos últimos dias, tivemos uma amostra do que falo. Petro ganhou na Colômbia. Essa notícia não foi cintilar modesto, essa foi fragor poderoso. A primeira vez que a esquerda ganha no país. Derrota da extrema-direita. Sim, por pouco, por pouquíssimo, mas derrota. Francia Márquez, outro fragor poderoso. Deu para iluminar um sorriso enorme em cada um de nós. Sabemos que governabilidade não está garantida, sabemos que chegar ao poder é muito diferente de se manter nele e que as reformas estruturais que a Colômbia precisa serão de extraordinária complexidade, mas mesmo sabendo isso, dos problemas gigantescos que serão enfrentados, foi uma conquista, uma página da História foi escrita.
Mas os socos no estômago estavam lá, agachados, prontos para o bote.
E, como de hábito, as pancadas que mais doem, aquelas que nos fazem chorar sangue, vêm do patriarcado. Uma criança de 11 anos foi estuprada e teve aborto negado. Essas palavras, quando lidas, abrem uma brecha no peito da gente. Uma brecha não, um buraco, profundo, obscuro. Se Petro e Francia tinham aberto uma franja de luz, de repente tudo ficou em trevas. Escuridão total.
Joana Ribeiro, a juíza. Escrevo o nome dela e só sinto ódio. São as Joanas deste país que fazem do Brasil um lugar vergonhoso, trágico, desprezível, mesquinho, miserável. Há juízes que simbolizam toda a ignomínia que representa o poder do Judiciário brasileiro. Há juízes que fazem querer vomitar sobre as togas deles, há juízes que despertam um desejo selvagem de linchamento…sobre eles. Lágrimas, lágrimas, lágrimas.
Os Estados Unidos revogam o direito constitucional ao aborto. Outra página da História escrita. Para trás. Ao contrário. Uma História que deu as costas para a vida, uma página escrita com as dores de tantas e tantas mulheres que serão vítimas de uma decisão que nos violenta de forma escandalosa. De novo, as togas que provocam ódio, que fazem vomitar, porque nos agridem, nos matam, com uma caneta Montblanc na mão. Tantos anos lutados, para que, numa canetada, voltemos décadas e décadas para trás.
Lágrimas, lágrimas, lágrimas. Como a gente faz para secar tantas lágrimas, para abrir um espaço na escuridão e deixar passar a luz? Há dias que a realidade impõe muralhas impenetráveis, tão opacas que parecem bloquear qualquer pequeno resplendor de luz, mas nós seguimos. Eu me pergunto de onde tiramos as forças, em meio a tantas derrotas, como conseguimos manter a esperança? Somos titãs.
Temos de prosseguir, arrastando os pés, com o peso de tantas dores nas costas, com o fardo da escuridão no coração, carregando as nossas perdas, mas adiante, sempre adiante. Contra as Joanas. Contra as canetadas da morte. Porque se a infância não for um lugar seguro todo o restante é terror. Onze anos, a garota tem apenas 11 anos… Estamos esgotadas porque decidem por nós, por nos retirarem a dignidade, a vida. Estamos fartas dos monstros que nos querem mortas. Estamos extenuadas, mas seguimos, tropeçando, caindo, mas seguimos.
Vamos prosseguir lutando pelas próximas luzes, para que cada vez sejam maiores os fulgores e menores as escuridões. Em outubro, temos a oportunidade de cair mais nas trevas ou abrir uma brecha para a luz. Luz, sempre luz. •
CARTA CAPITAL
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