December 1, 2019

Os 99% tomam as ruas - lá fora








Um áudio vazado da primeira-da-
ma do Chile, Ce-cilia Morel, vale
mais do que mil teses acadêmi-
cas sobre o inal-cançável topo
da montanha econômica
ocial e comportamental onde o 1%
mais rico se mantém protegido do res-
tante do planeta. Embora os manifes-
tantes que despejam fúria e frustração
pelas ruas chilenas sejam seus compa-
triotas e vivam nos limites das mesmas
fronteiras, Morel, na mensagem a uma
amiga, os chama de “alienígenas”, clas-
sifica os protestos de “invasão estrangei-
ra” e admite a contragosto a nova rea-
lidade: “Vamos ter de diminuir o nosso
privilégio e compartilhar mais”.

A repulsa ao povo demonstrada pela
primeira-dama, a percepção de que aque-
les que reclamam são seres diferentes, ha-
bitantes de um outro mundo ou planeta,
ofuscou o ato de contrição do marido, Se-
bastián Piñera. Na noite da terça-feira 22,
durante um pronunciamento em rede na-
cional, o presidente pediu perdão aos chi-
lenos e anunciou não só a suspensão do
reajuste das tarifas de metrô, estopim dos
protestos, mas um pacote de medidas de
cunho social, entre elas o congelamento
dos preços da energia e um aumento de
20% nas aposentadorias – cujo modelo
de capitalização, inspirador da proposta
do ministro brasileiro da Economia, Pau-
lo Guedes, empurrou milhares de idosos
à pobreza extrema no país vizinho. “Re-
conheço essa falta de visão e peço descul-
pas”, discursou. “Diante das necessidades
legítimas e das demandas sociais dos cida-
dãos, recebemos com humildade e clareza
a mensagem que os chilenos nos deram.”

Ainda não está claro se os “alieníge-
nas” aceitarão o pedido de desculpas.

Antes de retroceder, Piñera recorreu ao
velho manual da repressão, incluídos o
tradicional toque de recolher e o estado
de exceção. Como em outros momentos de
triste memória, a polícia e o Exército abu-
saram da violência. Em quatro dias, as for-
ças de segurança e seus inúmeros agentes
infiltrados, carros blindados e metralha-
doras deixaram um saldo de 18 mortos e
mais de 2 mil detidos. Nem assim os chile-
nos se amedrontaram. Até a noite do pro-
nunciamento do presidente, a massa indo-
mável continuava a desafiar as autorida-
des. Bombeiros corriam de um canto a ou-
tro para apagar os incêndios em estações
de metrô, escritórios de empresas estran-
geiras, transportadoras, fábricas, ônibus e
lojas. Em Valparaíso, terceira maior cida-
de, manifestantes destruíram a sede do El
Mercurio, o mais antigo jornal do país, fa-
moso por seu histórico apoio entusiasma-
do e irrestrito à sangrenta ditadura de Au-
gusto Pinochet. “O Chile despertou”, can-
tavam as multidões, armadas de paus, pe-
dras e coquetéis molotov.






Não só o Chile despertou.
No Líbano, manifestan-
tes fantasiados de Corin-
ga engrossaram o coro
contra a cobrança de ta-
xas sobre ligações telefônicas por internet.
O “imposto do WhatsApp”, como tem sido
chamado, foi a gota d’água da insatisfação
com o alto custo de vida e os serviços pú-
blicos precários. Um quarto dos libaneses
vive abaixo da linha de pobreza e tem sido
constante a interrupção do fornecimen-
to de água e luz. Acuado pelos protestos, o
primeiro-ministro, Saad Hariri, revogou a
medida, propôs antecipar as eleições e em
um ato populista anunciou a redução pela
metade do salário dos ministros. Em Hon-
duras, manifestantes destruíram prédios
públicos na capital Tegucigalpa diante da
ameaça de privatização da saúde e do ensi-
no público. O governo, autor de um proje-
to nessa linha enviado ao Congresso, dis-
se ter sido mal interpretado. Uma sema-
na antes, a revolta liderada pelos indígena
havia obrigado o presidente do Equador,
Lenín Moreno, a rever o aumento dos pre-
ços dos combustíveis.

Por motivos não diretamente ligados
às condições econômicas, mas entrela-
çados pelas críticas ao viés autoritário
das elites políticas e financeiras, ocorre-
ram explosões de descontentamento na
Catalunha, no Reino Unido e em Hong
Kong. À página 22, José Sócrates, colu-
nista de CartaCapital e ex-primeiro-mi-
nistro de Portugal, enumera os erros do
governo espanhol na reação violenta aos
protestos catalães. “Para enfrentar um
movimento de desobediência civil”, es-
creve, “não há alternativa senão usar as
armas da democracia: negociação, diálo-
go e compromisso”. À página 24, uma re-
portagem de The Observer relata a cres-
cente oposição dos britânicos à saída
do reinado da União Europeia, o famo-
so Brexit. A manifestação no sábado 19
que reuniu mais de 1 milhão em Londres
não passou despercebida. Motivado pe-
los protestos, o Parlamento rejeitou por
ora os termos do acordo negociado entre
o primeiro-ministro, Boris Johnson, e re-
presentantes da UE. Recado geral: os 99%
cansaram de ser preteridos – e até silen-
ciados, na hora das decisões que afetam
suas vidas de forma irremediável.

A rebeldia planetária expõe ainda as
feridas não cicatrizadas da crise mun-
dial de 2008. Trata-se de uma reação
pertinente à lógica perversa, segundo
a qual os punidos são aqueles sem res-
ponsabilidade pelo crime. Para salvar
os bancos das próprias estripulias, os
Estados Nacionais contraíram dívidas
e emitiram moedas. Após o curto pe-
ríodo de uma falsa autopenitência, en-
cenada para evitar uma onda a favor de
uma maior regulação, o sistema finan-
ceiro voltou a se embriagar de derivati-
vos e a distribuir bônus milionários aos
executivos, como se não houvesse ama-
nhã. Ao mesmo tempo, os países que se
endividaram acabaram submetidos pe-
los bancos que salvaram à interminável
via-crúcis da austeridade, como se o au-
mento da dívida resultasse não do socor-
ro às instituições, mas de uma compul-
são desbragada ao gasto público. No fim,
a conta dos prejuízos causados pelas fi-
nanças foi espetada nas costas do cida-
dão, por meio do corte de programas so-
ciais, das privatizações e do aumento das
tarifas dos serviços básicos. Não espan-
ta a violência popular dos últimos dias.





A convulsão social em dife-
rentes pontos do planeta,
em especial na América
Latina, estimulou o soció-
logo português Boaven-
tura de Sousa Santos a arriscar um prog-
nóstico: “O continente está a mostrar que
o neoliberalismo chegou ao fim. Não cria
boa imagem, não cria paz social e não cria
investimentos. E o Brasil, em breve, se-
rá o próximo. Quando as pessoas come-
çarem a sentir no bolso as consequências
dessas políticas, vai haver reação e even-
tualmente traduzir-se-á em um levante”.
Sousa Santos é um pensador contem-
porâneo arguto e antenado, mas peca
pelo excesso de otimismo em relação a
este país ou testa uma ingênua chama-
da à consciência. Por aqui, os partidos
de oposição, os sindicatos, as organiza-
ções sociais e a população em geral, sal-
vo fugazes e localizados instantes de re-
beldia, assistem prostrados à destruição
das instituições e da economia desde o

impeachment de Dilma Rousseff. Nem a
aprovação em definitivo da reforma da
Previdência, que vai deprimir as aposen-
tadorias dos assalariados, nem a preca-
rização do trabalho, muito menos a desi-
gualdade recorde em um país historica-
mente marcado pelo abismo entre ricos e
pobres (o 1% fatura 33 vezes mais do que
os 99%) ou o desmonte da educação e da
ciência, o desmatamento da Amazônia e
a inoperância de Brasília diante do vaza-
mento de petróleo no litoral nordestino
provocam reações à altura, além de me-
mes, frases de efeito e discussões inter-
mináveis nas redes sociais.

Enquanto os brasileiros se submetem
à desmoralização internacional da nação
e uma parte acompanha as baixarias no
laranjal do PSL como se fosse uma nove-
la da Globo, Jair Bolsonaro continua a in-
terpretar o mundo de uma maneira pe-
culiar. Em viagem ao Japão, o ocupante
do Palácio do Planalto encontrou tempo
para iluminar o mundo. Os protestos do
Chile, garantiu, não passam de uma ma-
quinação do famigerado Foro de São Pau-
lo e só acontecem porque a ditadura de Pi-
nochet acabou. “Os problemas lá come-
çaram em 1990 (ano em que os militares
deixaram o poder)”, pontificou.

Por sorte, apenas os fanáticos bolso-
naristas se fiam nas palavras do “mito”.
Outros pensadores se dedicaram nos úl-
timos dias a analisar os conflitos e chega-
ram a diferentes conclusões. Convertido
à sustentabilidade ambiental e ao bem-
-estar dos cidadãos, o economista Jeffrey
Sachs entregou-se a considerações a res-
peito da rebelião chilena. Em artigo no
site Project Syndicate, Sachs reconhece
que as medidas econômicas tradicionais
se tornaram insuficientes para avaliar os
verdadeiros sentimentos do público. “O
PIB per capita mede o rendimento médio
de uma economia, mas não diz nada sobre
a sua distribuição, as percepções dos in-
divíduos de equidade ou injustiça, o sen-
so de vulnerabilidade financeira do públi-
co, ou outras condições que pesam sobre
a qualidade de vida global”, anota.

Nesses tempos, a incômoda pergun-
ta não quer calar: em que momento ho-
mens e mulheres, sob o manto da liber-
dade e da igualdade, vão desfrutar da
abundância e dos confortos que o capi-
talismo promete, mas não entrega?

Para muitos, estaria prestes a se rea-
lizar a utopia de trabalhar menos para
viver mais. Os avanços da microeletrô-
nica, da informática e da automação dos
processos industriais permitem vislum-
brar, dizem os otimistas, a libertação das
fadigas que padecemos em nome de uma
ética do trabalho que só engorda os cabe-
dais daqueles que nos dominam.





Os equatorianos, liderados pelos indígenas,
inspiraram os vizinhos latino-americanos.
Os moradores de Hong Kong não desistem
de confrontar a excessiva ingerência da China


Esses enredos foram con-
tados nos bons tempos da
globalização e das bolhas
financeiras e de consumo:
a economia da inovação e
da inteligência estaria prestes a substi-
tuir a economia da fábrica, dos ruídos
atormentadores e dos gases tóxicos. As
transformações tecnológicas e suas con-
sequências sociais ensejariam a proeza
de realizar o projeto da autonomia do in-
divíduo, aquele inscrito nos pórticos da
modernidade. A autonomia do indiví-
duo significa a sua autorrealização nas
regras das liberdades republicanas e do
respeito ao outro. O projeto da autono-
mia do sujeito é uma crítica permanen-
te e inescapável da submissão aos pode-
res – públicos e privados – que o cidadão
não controla. A globalização, o avanço
tecnológico e a transformação das for-
mas de trabalho estariam a realizar esta
maravilhosa promessa da modernidade.
Mas qual a realidade que se esconde sob
os pretextos dessa fantasia?

Na marcha de sua existência real, o
capitalismo incitou os anseios de reali-
zação pessoal, mas fez emergir estrutu-
ras técnico-econômicas e formas de de-
pendência que agem sobre o destino dos
protagonistas da vida social como for-
ças naturais que frequentemente des-
troem a natureza, fora do controle da
ação humana.


O avanço tecnológico e os ganhos de
produtividade não impediram a inten-
sificação do ritmo de trabalho. Essa foi a
conclusão de estudos recentes da Organi-
zação Internacional do Trabalho e de ou-
tras instituições. Entre os empregados,
o trabalho intensificou-se. Nos Estados
Unidos, para citar um caso, as horas tra-
balhadas cresceram em todos os setores.

No outro lado da cerca estão aqueles
que se tornaram compulsoriamente in-
dependentes do trabalho, os desemprega-
dos. O desemprego global cresceu muito
no mundo desenvolvido, ao mesmo tem-
po que o trabalho se intensificou nas re-
giões para onde se deslocou a produção
manufatureira. As estratégias de locali-
zação da corporação globalizada intro-
duziram importantes mutações nos pa-
drões organizacionais: constituição de
empresas-rede, com centralização das
funções de decisão e de inovação e ter-
ceirização das operações comerciais, in-
dustriais e de serviços em geral.

As novas formas financeiras contribuí-
ram para aumentar o poder das corpo-
rações internacionalizadas sobre gran-
des massas de trabalhadores, permitindo
a “arbitragem” entre as regiões e nivelan-
do por baixo a taxa de salários. As fusões
e aquisições acompanharam o desloca-
mento das empresas que operam em múl-
tiplos mercados. Esse movimento não só
garantiu um maior controle dos merca-
dos, mas ampliou o fosso entre o desem-
penho dos sistemas empresariais “globa-
lizados” e as economias territoriais sub-
metidas às regras jurídico-políticas do Es-
tados Nacionais. A abertura dos merca-
dos e o acirramento da concorrência co-
existem com a tendência ao monopólio e
debilitam a força dos sindicatos e dos tra-
balhadores “autônomos”, fazendo pericli-
tar a sobrevivência dos direitos sociais e
econômicos, considerados um obstáculo
à operação das leis de concorrência.

Restringem, portanto, a soberania es-
tatal e impedem que os cidadãos, no exer-
cício da política democrática, tenham ca-
pacidade de decidir sobre a própria vida.
As reformas realizadas nas últimas dé-
cadas cuidaram de transferir os riscos
para os indivíduos dispersos, ao mesmo
tempo que buscaram o Estado e sua for-
ça coletiva para enfrentar a concorrência
desaçaimada e, nos tempos de crise, limi-
tar as perdas provocadas pelos episódios
de desvalorização da riqueza.

Na era do capitalismo “turbinado” e
financeirizado, os frutos do crescimen-
to concentraram-se nas mãos dos deten-
tores de carteiras de títulos que represen-
tam direitos à apropriação da renda e da
riqueza. Para os demais perduram a ame-
aça do desemprego, a crescente insegu-
rança e precariedade das novas ocupa-
ções, a exclusão social. Não por menos, a
angústia, volta e meia, explode nas ruas...
do Chile, de Honduras, do Líbano... •

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