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December 14, 2019
Tutores em baixa: o declínio dos generais dentro do Governo Bolsonaro
ANA CLARA COSTA
A influência dos militares no governo de Jair Bolsonaro costumava ser
medida pela sobrecarga das agendas de seus principais expoentes nos
primeiros meses de governo. Diante da pouca disposição do presidente
para receber em seu gabinete diplomatas, empresários e lideranças
políticas, esses setores buscavam os ministros Augusto Heleno (Gabinete
de Segurança Institucional, GSI) e Carlos Alberto dos Santos Cruz
(ex-Secretaria-Geral) e o vice-presidente, Hamilton Mourão, para tentar
uma aproximação com os novos inquilinos do Palácio do Planalto. Por
receber políticos em excesso, Santos Cruz acabou minando o poder da Casa
Civil e se indispondo com o chefe da pasta, Onyx Lorenzoni. Terminou
demitido. A atribulada agenda de Mourão, somada a declarações que
divergiam das de Bolsonaro, chegou a colocá-lo em posição antagônica ao
chefe, arruinando a proximidade que ambos haviam alcançado durante a
campanha. Bolsonaro o isolou. Já Heleno passou a sofrer ataques da
militância bolsonarista por tentar interferir demais na vida palaciana.
Viu-se forçado a submergir e elevar o tom de suas declarações de apoio
ao governo para mostrar que não era inimigo do presidente. O declínio do
prestígio dos três principais expoentes da cúpula militar no Palácio do
Planalto, agravado pela saída do chefe da Secretaria de Assuntos
Estratégicos (SAE), general Maynard Santa Rosa, na segunda-feira 4,
sepulta uma das principais apostas que se tinha sobre a gestão de Jair
Bolsonaro: a de que militares da reserva teriam voz ativa e poderiam
modular as ações do presidente.
Após quase um ano de governo, ex-ministros e
generais reformados, que costumavam ser procurados pelo setor privado
justamente por terem boa relação com os novos ocupantes do poder,
relatam a mudança de cenário. “Políticos, corporações, sindicatos,
empresários, sobretudo do setor de energia, todos vinham conversar para
tentar uma forma de interlocução com os militares para chegar ao
governo. Hoje, perceberam que não adianta. Não procuram mais”, disse um
ex-ministro que costumava ser requisitado para a função de interlocutor
junto a Heleno e Mourão. Da agenda oficial do vice, marcações recentes
mostram menos compromissos com expoentes do primeiro escalão e mais
viagens pelo interior do Brasil, em especial solenidades em federações
de indústria e associações comerciais, além de audiências com vereadores
(como o emedebista Valter Nagelstein, de Porto Alegre, no último dia
1º) e representantes de lojas maçônicas. No início do ano, Mourão
costumava receber ministros, senadores e presidentes de empresas, como
Dell e Bradesco. Já Heleno, depois de ser atacado pelos filhos do
presidente, passou a atrelar sua agenda à de Bolsonaro, fazendo-se
presente, inclusive, nas redes sociais — que usa para desferir críticas a
oponentes e elogios ao governo. Em alguns casos, faz eco a opiniões
extremas, como quando se posicionou sobre os protestos no Chile e as
eleições na Argentina. “Na América do Sul, estamos vivendo um momento
difícil, em que a esquerda radical, desesperada pela derrota, vai jogar
todas as suas fichas na mesa para conturbar a vida dos países da região.
Vai tentar retornar ao poder de qualquer maneira e nos jogar no abismo
em que nós paramos na porta”, escreveu, em 23 de outubro.
O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, visto
como herói nas Forças Armadas, foi demitido do posto de ministro depois
de discordâncias no Palácio do Planalto. Foto: Mateus Bonomi / AGIF /
AFP
Em outro gesto de alinhamento ao presidente, o
general chegou a chancelar a declaração de Eduardo Bolsonaro à
jornalista Leda Nagle sobre a volta do Ato Institucional nº 5. “Não ouvi
ele ( Eduardo ) falar isso”, disse o ministro ao jornal O Estado de S. Paulo
. “Se falou, tem de estudar como vai fazer, como vai conduzir. Acho
que, se houver uma coisa no padrão do Chile, é lógico que tem de fazer
alguma coisa para conter. Mas até chegar a esse ponto tem um caminho
longo”, afirmou. Dias depois, em entrevista ao mesmo jornal, Heleno
afirmou que sua fala fora tirada de contexto e negou apoio a uma medida
autoritária. À Folha de S.Paulo , disse que a atual geração de
militares está vacinada contra “qualquer sintoma de ditadura”. Mas esse
não foi o primeiro episódio em que ele se esforçou para demonstrar
fidelidade ao presidente. Na mesma manhã em que voltou do G20, no Japão,
em 30 de junho, o general vestiu uma camisa amarela e um boné azul e
acompanhou Eduardo Bolsonaro em um carro de som em frente ao Congresso
Nacional, durante os protestos em que manifestantes criticavam o
presidente da Câmara e o do Senado e ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF). Foi a primeira vez em que um ministro de Estado
comparecia a uma manifestação convocada pela militância bolsonarista.
“Heleno voltou seus interesses para questões de geopolítica, área em
que demonstrava divergências patentes com o núcleo mais ideológico do
governo, em especial no aspecto do alinhamento automático aos Estados
Unidos”
Foi ainda durante a campanha eleitoral que o general Augusto Heleno
descobriu que não seria tutor de Jair Bolsonaro caso sua eleição se
confirmasse. Ao tentar aconselhá-lo sobre as alianças políticas que
vinham sendo costuradas pelo então candidato do PSL, ouviu dele uma
invertida: “De política, entendo eu”. A partir de então, voltou seus
interesses para questões de geopolítica, área em que demonstrava
divergências patentes com o núcleo mais ideológico do governo, em
especial no aspecto do alinhamento automático aos Estados Unidos. Chegou
a se envolver em entrevero com o assessor internacional de Bolsonaro, o
olavista Filipe Martins, por discordar da tentativa de influência de
Olavo de Carvalho nas indicações para cargos no Palácio do Planalto e em
ministérios. Também dizia desconhecer a obra do ideólogo, o que causou
revolta em alguns integrantes do núcleo duro do presidente, em especial
os filhos Eduardo e Carlos. Heleno tampouco demonstrou simpatia pela
ideia da indicação do zero três à Embaixada em Washington. Então avesso
às redes sociais, um perfil não oficial do general foi criado no Twitter
pela militância bolsonarista. No auge da indisposição diplomática com a
Venezuela, em fevereiro, a conta publicou uma declaração de apoio a uma
possível reação militar do Brasil à Venezuela, em caso de “agressão à
soberania” do país. O comentário terminou sendo veiculado na imprensa. O
general se irritou com a associação de seu nome à ideia de “reação” e
imediatamente ordenou que o perfil fosse apagado.
O ex-ministro Gustavo Bebianno
As faíscas com o núcleo ideológico se
transformaram em incêndio em junho, quando o sargento da Aeronáutica
Manoel Silva Rodrigues foi preso em Sevilha com 39 quilos de cocaína na
mala, numa aeronave da Força Áerea Brasileira (FAB) que acompanhava a
comitiva presidencial ao G20. O episódio despertou a ira de Bolsonaro,
que atribuiu ao GSI a falha por não ter detectado o passageiro
traficante. O descontentamento do presidente abriu as portas para que
seus filhos, já contrariados com a postura do general, atacassem o
trabalho de Heleno. “Por que acha que não ando com seguranças?
Principalmente aqueles oferecidos pelo GSI? Sua grande maioria podem ( sic
) ser até homens bem-intencionados, e acredito que sejam, mas estão
subordinados a algo que não acredito”, escreveu Carlos Bolsonaro.
Eduardo também usou as redes para fazer um gesto de apoio ao irmão. “O
Carlos só expressou uma desconfiança dele, pessoal, e, mesmo assim,
fazendo uma ressalva dizendo que a maioria dos funcionários, das pessoas
que trabalham dentro do GSI ou fora, são pessoas que fazem um bom
trabalho”, afirmou. Nos bastidores, os filhos do presidente fizeram uma
consulta sobre a possibilidade de os agentes designados para fazer a
proteção presidencial deixarem de integrar o GSI e passarem a responder
apenas ao Ministério da Justiça, o que minaria a principal função da
pasta de Heleno. O pedido não prosperou — e os sinais públicos de
fidelidade ao presidente se intensificaram na rotina do general.
O general Maynard Santa Rosa
O general Maynard Santa Rosa, com quatro
estrelas cravadas na farda, era um dos mais próximos assessores do
presidente. Por ter feito carreira na área de Inteligência do Exército
antes da reserva, era visto como um dos principais informantes de
Bolsonaro, mesmo antes de integrar o governo. Assim como o presidente,
sempre demonstrou entusiasmo com o período da ditadura militar, acredita
na ideia conspiratória de que os países desenvolvidos querem anexar a
Amazônia e se diz contra políticas que demarquem reservas a comunidades
indígenas e quilombolas. “A tese do aquecimento global é cientificamente
uma mentira”, disse Santa Rosa, em seminário sobre a Amazônia neste
ano.
A saída desta semana é a terceira exoneração de Santa Rosa de cargos
de relevo. O militar havia ocupado o posto de secretário de Política,
Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa no governo
Lula, mas foi exonerado em 2007, depois de dar uma entrevista ao Globo
em que atacava a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Em
2010, também no governo Lula, foi exonerado do cargo de chefe do
Departamento-Geral do Pessoal do Exército depois de uma carta de sua
autoria circular na internet expondo críticas à criação da Comissão da
Verdade. Segundo a carta, a comissão seria formada por “fanáticos” e
viraria uma “comissão da calúnia”, e os integrantes seriam “os mesmos
fanáticos que, no passado recente, adotaram o terrorismo, o sequestro de
inocentes e o assalto a bancos como meio de combate ao regime, para
alcançar o poder”. O então ministro da Defesa, Nelson Jobim, determinou a
exoneração do general. O Exército acatou. Santa Rosa nunca negou ter
sido o autor do texto.
“A demissão de Santos Cruz, visto como herói dentro das Forças
Armadas, somada à crítica feita por Bolsonaro ao general Luiz Eduardo
Rocha Paiva, outra figura de prestígio no Exército, foi entendida como o
ponto de ruptura entre o presidente e os militares”
Apesar da forte sinergia de ideias com o presidente, o general
acumulou derrotas desde que entrou no governo. Como secretário especial
da SAE, acreditava que teria acesso preferencial ao gabinete
presidencial, elaboraria planos de ação para áreas estratégicas e teria
orçamento para trabalhar. Nenhum dos três anseios se tornou realidade. A
pasta nunca teve orçamento próprio, ficando submetida à
Secretaria-Geral da Presidência, hoje comandada por Jorge Oliveira.
Santa Rosa tinha especial interesse no Programa de Parcerias de
Investimentos (PPI), que ficou integralmente com a Casa Civil. Outros
objetos do desejo do militar eram o programa aeroespacial brasileiro, a
cargo do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, e
um plano de ação para transformar o Brasil em exportador de urânio. O
primeiro ainda engatinha. O segundo não saiu do papel. A gota d’água
para a insatisfação foi a discordância com o chefe direto, Jorge
Oliveira, que exigiu da pasta um relatório de produtividade. Incomodou o
general a humilhação do pedido e a procedência: Oliveira, ex-major da
Polícia Militar e um dos principais homens de confiança de Bolsonaro,
era visto pelo general como alguém “pouco capaz”. Sua saída fez subir
para seis o número de generais expelidos do primeiro escalão do governo.
Antes dele, deixaram o Executivo Santos Cruz, da Secretaria de Governo;
Franklimberg de Freitas, que comandava a Funai; Juarez Cunha, que
presidia os Correios; João Carlos Jesus Corrêa, então presidente do
Incra; e Marco Aurélio Vieira, secretário especial de Esporte.
Bolsonaro, ao lado dos ministros Luiz Ramos e
Fernando Azevedo, ambos militares. Ramos, da ativa, é amigo de longa
data. Azevedo, na Defesa, é responsável pela articulação política entre
as Forças Armadas e o Congresso. Foto: Charles Sholl / Brazil Photo
Press / Folhapress
A saída de Santa Rosa e o recrudescimento do
discurso de Augusto Heleno colocam em evidência dois movimentos do
bolsonarismo. O primeiro é a desmitificação da figura militar por parte
do presidente e de seu núcleo duro. Há o ressentimento cada vez mais
presente nas alas radicais sobre os generais não terem feito “o
suficiente” para “combater a esquerda”. A demissão de Santos Cruz, visto
como herói dentro das Forças Armadas, somada à crítica feita por
Bolsonaro ao general Luiz Eduardo Rocha Paiva, outra figura de prestígio
no Exército, foi entendida como o ponto de ruptura, em que o presidente
expôs a frustração em relação àqueles que costumava enaltecer.
Bolsonaro referiu-se a Rocha Paiva como “general melancia”, que
significa “verde por fora, vermelho ( comunista ) por dentro”,
depois que o militar fez críticas a Olavo de Carvalho. Carlos Bolsonaro
foi mais além. Disse que Rocha Paiva integrava um grupo de militares que
“nunca lideraram nem guerra de travesseiros”. Ainda o definiu como um
“recruta” que “jamais abriu significativamente a boca quando o PT
assaltava o país”. Um dos homens de confiança do ex-comandante-geral do
Exército Eduardo Villas Bôas, Rocha Paiva é considerado pela caserna o
sucessor do general Meira Mattos, morto em 2007 e visto como um dos
maiores formuladores de geopolítica que já passaram pelas Forças
Armadas.
“Quando Bolsonaro decidiu demitir o general Santos Cruz, um dia antes
comunicou sua decisão ao general Heleno. O ministro do GSI revelou a
notícia a algumas pessoas próximas. Mas não ao colega de caserna”
O segundo movimento do bolsonarismo é restringir o acesso ao
presidente de aliados que não compartilhem com ele exatamente a mesma
visão mundo. Nesse caso, estão excluídos os militares e políticos de
visão mais moderada — e daí também advém a versão mais radical de
Augusto Heleno, que visa à sobrevivência, na avaliação de assessores do
Planalto. A estratégia palaciana mira o exemplo de Donald Trump. Há a
convicção de que, no início do governo do presidente americano, a
presença de nomes de mercado ou não alinhados necessariamente à postura
política mais enérgica de Trump resultou em um rosário de denúncias
anônimas e públicas sobre as entranhas da Casa Branca. Casos como o de
Gustavo Bebianno, ex-ministro e hoje crítico do governo Bolsonaro, são o
que o núcleo duro presidencial deseja evitar.
Bolsonaro quer isolar aliados que possam vir a
sair do governo e dar declarações públicas contra sua gestão. O
presidente mira o exemplo de Donald Trump, cujo gabinete foi
praticamente substituído ao longo da gestão. John Bolton, ex-conselheiro
de Segurança Nacional, foi a baixa mais recente. Foto: Alex Wong /
Getty Images
Hoje desbaratada, a ala militar nunca foi
homogênea no governo. Por não ser demissível, o general Mourão encampou
agenda própria, sem ligação com os demais generais do Palácio. Muitos
enxergam nela ímpetos eleitorais. Bento Albuquerque (ministro de Minas e
Energia) e Tarcísio Freitas (ministro da Infraestrutura), considerados
técnicos, conduzem suas próprias pastas, sem interferência política de
Bolsonaro. Os militares palacianos, mais ligados à política, nem sempre
agiram no mesmo compasso. Quando Bolsonaro decidiu demitir o general
Santos Cruz, um dia antes comunicou sua decisão ao general Heleno. O
ministro do GSI revelou a notícia a algumas pessoas próximas. Mas não ao
colega de caserna, que estava despachando normalmente no dia 15 de
junho, quando foi chamado ao gabinete de Bolsonaro para ouvir que estava
fora do jogo. Em seu lugar entrou outro militar, o general da ativa
Luiz Eduardo Ramos, um dos melhores amigos de Bolsonaro, ainda dos
tempos em que ambos frequentavam o curso preparatório para a escola de
cadetes. Trata-se de amizade à prova de traição, brincam aliados do
presidente.
O destino dos generais da reserva mostra que o Palácio do Planalto
não produz poder autônomo. E, a despeito do inquilino da vez, quem manda
no Palácio sempre é o presidente. Quando João Baptista Figueiredo
assumiu a Presidência, em 1979, manteve o general Golbery do Couto e
Silva na chefia da Casa Civil. Chamado de “bruxo” ou “feiticeiro” por
sua notável capacidade estratégica, Golbery era considerado o homem mais
poderoso do regime militar. Falava-se que poderia tutelar Figueiredo.
Golbery durou dois anos no cargo.
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