April 16, 2018

Criminalização de roupa nova


Flávia Oliveira

Não é novidade o viés discriminatório do sistema jurídico-policial brasileiro. Enquanto o Planalto se ocupa do amplo direito de defesa dos donos do poder, a planície segue a rotina de arbitrariedades, que apontam dedos para pobres, pretos e moradores da periferia. O primeiro Código Penal da República, de 1890, tratava como ilícitos a capoeira, o curandeirismo e a vadiagem — os dois primeiros relacionados às tradições culturais dos afrodescendentes recém-libertos; o terceiro ao trabalho informal que, ainda hoje, alcança quase metade da mão de obra. 

Dois anos e meio atrás, o então secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, defendia o recolhimento de adolescentes que saíam da Zona Norte para ir à praia em Copacabana. Sem terem cometido qualquer infração, os jovens eram retirados de ônibus e encaminhados a abrigos, numa encenação à brasileira de “Minority report”, conto de Philip K. Dick levado ao cinema por Steven Spielberg. O Rio confirmava-se como lugar em que suburbanos e favelados tornavam-se suspeitos pelos lugares onde vivem, o transporte que usam, a merenda que não levam, o Bilhete Único que não carregam.

A cúpula da Segurança mudou, a mentalidade, não. Sábado passado, o estado há dois meses sob intervenção federal anunciou com estardalhaço a prisão de 159 homens – todos milicianos, segundo a Polícia Civil. A operação, durante uma festa num sítio em Santa Cruz, deixou quatro mortos e resultou na apreensão de 24 armas de fogo, 76 carregadores, 1.265 projéteis e 11 carros roubados. Não se está a duvidar de que, entre os detidos, haja pessoas envolvidas com a milícia, crime que já domina grandes porções do território fluminense. Mas cabe indagar se 100% dos capturados são mesmo criminosos.

A mobilização imediata de familiares despertou a desconfiança. Eles alegam que a festa era pública, com divulgação em redes sociais, cobrança de ingressos, venda de bebidas e shows de grupos conhecidos (Pique Novo e Swing & Simpatia). Na audiência de custódia, a Justiça desprezou individualidades e manteve a prisão preventiva de todos os acusados. 

A Defensoria Pública do Rio representa 25 presos, mas entrevistou 48. Todos são primários, 18 têm carteira assinada, 17 tiveram emprego formal e hoje trabalham sem vínculo. Há cozinheiro, ajudante de pedreiro, repositor de supermercado, lavador de carro, vendedor de loja, pedreiro, motorista de Uber e ônibus, atendente de lanchonete, açougueiro. Dois têm curso superior (administração e contabilidade), um é funcionário da Funarte. Dos que constituíram advogados, um é gari da Comlurb; outro, professor da Uerj.

“Em 16 anos de carreira, nunca vi prisão coletiva de tanta gente, tantos primários, tantos com vínculo empregatício e tantos com advogados. Não posso dizer que nenhum esteja envolvido com milícia, mas também não dá para dizer que todos estão. Os que têm carteira assinada e comprovante de residência deveriam, ao menos, ter o direito de responder em liberdade”, afirma Ricardo André de Souza, um dos quatro defensores públicos no caso.

A polícia festeja uma ação de inteligência efetivada por captura coletiva em flagrante. A conclusão do auto de prisão menciona 11 nomes. Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefe da milícia e alvo central da investigação, escapou. Havia mulheres no sítio, mas nenhuma foi detida. Oito menores apreendidos tiveram os processos arquivados, a pedido do Ministério Público. Pontuado de estranhezas, o caso abre espaço para associar frequentador de baile funk ao tráfico e sambista ao jogo do bicho. É a criminalização, velha de guerra, de roupa nova.

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