Flávia Oliveira
Não
é novidade o viés discriminatório do sistema jurídico-policial
brasileiro. Enquanto o Planalto se ocupa do amplo direito de defesa dos
donos do poder, a planície segue a rotina de arbitrariedades, que
apontam dedos para pobres, pretos e moradores da periferia. O primeiro
Código Penal da República, de 1890, tratava como ilícitos a capoeira, o
curandeirismo e a vadiagem — os dois primeiros relacionados às tradições
culturais dos afrodescendentes recém-libertos; o terceiro ao trabalho
informal que, ainda hoje, alcança quase metade da mão de obra.
Dois
anos e meio atrás, o então secretário de Segurança Pública, José
Mariano Beltrame, defendia o recolhimento de adolescentes que saíam da
Zona Norte para ir à praia em Copacabana. Sem terem cometido qualquer
infração, os jovens eram retirados de ônibus e encaminhados a abrigos,
numa encenação à brasileira de “Minority report”, conto de Philip K.
Dick levado ao cinema por Steven Spielberg. O Rio confirmava-se como
lugar em que suburbanos e favelados tornavam-se suspeitos pelos lugares
onde vivem, o transporte que usam, a merenda que não levam, o Bilhete
Único que não carregam.
A cúpula da Segurança
mudou, a mentalidade, não. Sábado passado, o estado há dois meses sob
intervenção federal anunciou com estardalhaço a prisão de 159 homens –
todos milicianos, segundo a Polícia Civil. A operação, durante uma festa
num sítio em Santa Cruz, deixou quatro mortos e resultou na apreensão
de 24 armas de fogo, 76 carregadores, 1.265 projéteis e 11 carros
roubados. Não se está a duvidar de que, entre os detidos, haja pessoas
envolvidas com a milícia, crime que já domina grandes porções do
território fluminense. Mas cabe indagar se 100% dos capturados são mesmo
criminosos.
A mobilização imediata de familiares
despertou a desconfiança. Eles alegam que a festa era pública, com
divulgação em redes sociais, cobrança de ingressos, venda de bebidas e
shows de grupos conhecidos (Pique Novo e Swing & Simpatia). Na
audiência de custódia, a Justiça desprezou individualidades e manteve a
prisão preventiva de todos os acusados.
A
Defensoria Pública do Rio representa 25 presos, mas entrevistou 48.
Todos são primários, 18 têm carteira assinada, 17 tiveram emprego formal
e hoje trabalham sem vínculo. Há cozinheiro, ajudante de pedreiro,
repositor de supermercado, lavador de carro, vendedor de loja, pedreiro,
motorista de Uber e ônibus, atendente de lanchonete, açougueiro. Dois
têm curso superior (administração e contabilidade), um é funcionário da
Funarte. Dos que constituíram advogados, um é gari da Comlurb; outro,
professor da Uerj.
“Em 16 anos de carreira, nunca
vi prisão coletiva de tanta gente, tantos primários, tantos com vínculo
empregatício e tantos com advogados. Não posso dizer que nenhum esteja
envolvido com milícia, mas também não dá para dizer que todos estão. Os
que têm carteira assinada e comprovante de residência deveriam, ao
menos, ter o direito de responder em liberdade”, afirma Ricardo André de
Souza, um dos quatro defensores públicos no caso.
A
polícia festeja uma ação de inteligência efetivada por captura coletiva
em flagrante. A conclusão do auto de prisão menciona 11 nomes.
Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefe da milícia e alvo central da
investigação, escapou. Havia mulheres no sítio, mas nenhuma foi detida.
Oito menores apreendidos tiveram os processos arquivados, a pedido do
Ministério Público. Pontuado de estranhezas, o caso abre espaço para
associar frequentador de baile funk ao tráfico e sambista ao jogo do
bicho. É a criminalização, velha de guerra, de roupa nova.
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