April 27, 2018

Morar em favela do Rio é agravante em condenação por tráfico de drogas


Amanda Lemos , Daniel E. de Castro e Natália Portinari 



Vista da favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro

No ano passado, uma carioca de 19 anos, moradora de Ipanema, na zona sul do Rio, foi pega com 300 gramas de maconha que buscara em Minas Gerais. Acusada de tráfico, ela responde ao processo em liberdade.

Cerca de um ano antes, um jovem de 20 anos, morador de Manguinhos, na zona norte do Rio, foi preso durante uma perseguição policial a traficantes do morro. Não portava drogas ou armas nem tinha passagem pela polícia —mas foi pego correndo durante a ação, segundo seu advogado.
O jovem pegou prisão preventiva e, com base no depoimento do policial presente, foi condenado a sete anos e seis meses de prisão pelo crime de associação ao tráfico.

O que afirma a sentença: “O local da prisão é conhecido como sendo de tráfico de drogas, sendo realizado por facção criminosa, no caso o Comando Vermelho”.

A Folha fez um levantamento no Banco Nacional de Mandados de Prisão, base de dados criada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

De mais de 82 mil mandados de prisão por tráfico de drogas no Rio de Janeiro, em 41% dos casos o réu era acusado ou foi condenado também por crime de associação ao tráfico. A média nacional é de 12%. Em São Paulo, de 10%.

A combinação dos dois crimes faz com que a pena por tráfico no Rio seja, em média, quase dois anos maior do que a da Justiça paulista.

“O Ministério Público pergunta ao policial: essa área é dominada por facção? Sim. Já bastou, o cara tomou mais três anos como se associado ao tráfico fosse. Isso é rotina”, afirma Emanuel Queiroz Rangel, coordenador de defesa criminal do Rio de Janeiro.




Para o defensor, a acusação dupla é uma estratégia da Polícia Civil e do Ministério Público para inviabilizar pedidos de liberdade provisória, uma vez que penas acima de oito anos são inicialmente cumpridas em regime fechado.

Um estudo da Defensoria Pública do Estado do Rio que analisou 3.745 processos de tráfico de 2014 e 2015 revela que, em 75% dos casos que somam os dois crimes, a justificativa foi o fato de o local da apreensão ser dominado por facção criminosa.

Em seguida, com 56%, vem a acusação de porte de rádio-transmissor ou de arma.
A súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio estabelece que o depoimento do policial basta como elemento de prova para a condenação criminal. Em 54% dos casos, foi a principal prova utilizada pelo juiz.

A Lei de Drogas, de 2006, trata das duas condutas em artigos diferentes. Para quem vende, a pena é de reclusão de 5 a 15 anos. Quem se associa com uma ou mais pessoas para vender está sujeito
a uma pena adicional de 3 a 10 anos de reclusão.

Pela definição legal, a associação ao tráfico se dá para a prática de crimes reiterados, não apenas em uma ação. É uma forma específica do crime de quadrilha ou bando, com uma pena maior.
Vitore Maximiano, defensor público criminal em São Paulo e ex-secretário nacional de política sobre drogas, diz que, na maioria dos casos no país, falta investigação para provar uma relação de estabilidade entre os acusados.

“Ou se tem provas da estabilidade ou não tem o crime de associação. Tem que ter uma investigação mostrando quem integra a associação, que fulano, beltrano e sicrano praticam juntos a atividade do tráfico de drogas”, afirma.

Mário Luiz Sarrubbo, subprocurador-geral de Justiça do Ministério Público de SP, argumenta que, se houver um indício de associação, o dever da Promotoria é denunciar.

“No Rio de Janeiro, como há a questão dos morros, as condições geográficas colaboram para detectar essa associação. Em São Paulo, é mais difícil demonstrar porque é mais plano, a ação do tráfico é menos concentrada, usam mais crianças e mulheres”, afirma.

A reportagem procurou o Ministério Público do Rio de Janeiro por email e telefone ao longo de três semanas, mas o órgão não quis se pronunciar.

Francisco Melo de Queiroz, 31, advogado que atua na favela Pavão-Pavãozinho, diz que fica a critério da polícia dizer se há associação e se a quantidade é para uso pessoal ou tráfico. Na prática, diz, acaba a presunção de inocência.

Em casos analisados pela Folha, policiais ouvidos em um processo deram depoimentos idênticos, com as mesmas palavras, indicando que só uma testemunha foi ouvida e seu depoimento foi replicado. “Um dos indivíduos, posteriormente identificado como [nome do réu], correu para o interior de um beco segurando um saco plástico na mão. O [nome do policial] viu que [o réu] pulou a grade do portão com o intuito de chegar a laje para se evadir.”

O trecho é idêntico no depoimento de três testemunhas que relatam uma operação em favela da zona norte do Rio; muda apenas o nome do agente de polícia.

Para Joel Luiz Costa, 29, advogado que atua no Jacarezinho, na zona norte, a Lei de Drogas criou um salvo-conduto para arbitrariedade na periferia, a começar pela distinção entre usuário e traficante.
“A lei cita as circunstâncias do local da prisão e a circunstância social do réu [como critério do que é tráfico e o que é consumo], então depende pura e simplesmente do local onde você foi preso.”

O Espírito Santo é o único estado onde a proporção se aproxima da verificada no Rio. Segundo Rivelino Amaral, presidente da comissão dos advogados criminalistas da OAB local, a acusação pelos dois crimes é praxe.

“Não conheço nenhuma denúncia de processo de tráfico de drogas que não tenha combinada a associação para o tráfico, salvo se a pessoa tiver sido presa sozinha.” Ele, porém, não nota diferença de tratamento determinada pela classe social do réu ou pelo local onde houve a apreensão.


ASSOCIAÇÃO AO CRIME

O caso recente de 159 presos em festa supostamente organizada por uma milícia no Rio remete a esse entendimento de associação ao crime. A região oeste da cidade de fato tem forte presença de milícia, e a polícia tem indícios de que, entre os presos, há envolvidos com esses grupos.

A justificativa inicial para a prisão de todos que estavam no local era a de que se sabia que a festa havia sido organizada em homenagem à milícia e que só de participarem do evento já seria sinal do vínculo com os milicianos.

No entanto, o que foi inicialmente descrito como uma reunião de milicianos acabou sendo parcialmente desmontado. Parentes de presos e testemunhas apresentaram cartazes do evento, chamando a atenção para o fato de que a festa havia sido paga, segundo eles, e aberta ao público.

O Ministério Público pediu a revogação da prisão preventiva de 138 dos 159 porque diz não ter, por ora, provas para denunciá-los. O primeiro a ser solto foi o artista circense Pablo Martins, 23, liberado no último sábado (21).

Pelo menos outros 30 foram liberados nesta quinta-feira (26). A Folha conversou com três deles. Todos disseram que a festa era paga e que não havia homens armados à vista.

Entre os que foram soltos estava Alexandre Mourão. “A gente saiu para se divertir, pagou ingresso e aconteceu essa injustiça. A polícia foi agressiva com a gente o tempo todo, dando socos e pontapés.”
Advogado de um dos presos, Jorge Oliveira disse que as prisões só aconteceram porque o lugar onde acontecia a festa era longe do centro da cidade.

“Se fosse no meu prédio no Leblon [bairro rico da zona sul] eles não fariam isso.”

A polícia diz que as prisões foram em flagrante e que não foi mencionada nenhuma ilegalidade na ação. O Rio está sob intervenção federal na segurança desde 16 de fevereiro, a cargo do general do Exército Walter Braga Netto.

FOTO RICARDO BORGES


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