Rio São Francisco perdeu 98% das matas que protegiam suas margens. E tem 50% do volume de 30 anos atrás
por Ana Lucia Azevedo
fotos Daniel Marenco
O GLOBO
PILÃO ARCADO, BAHIA - Mailda mora fora do mapa. Tem 23 anos e vive num lugar que oficialmente não existe há quatro décadas. Como gerações de mulheres por mais de três séculos antes dela, todos os dias carrega latas d’água na cabeça para a família. Imersos num passado apagado dos mapas e ressuscitado por estiagens, ela, o marido pescador e os três filhos habitam as ruínas de Pilão Arcado, uma das cidades submersas nos anos 70 do século XX pelo lago da hidrelétrica de Sobradinho, no Rio São Francisco, na Bahia.
A família de Mailda não está só. À medida que o mar interior de Sobradinho começou a virar de novo sertão, as ruínas da cidade ganharam mais moradores, em torno de 15 famílias. Receberam painéis solares modernos, dependurados pela Coelba, a companhia de energia baiana, em escombros de telhados. E caminhões passaram a cruzar o leito seco do lago, feito de estrada para cortar caminho pelo sertão.
Surrealismo e abandono
Em meio a essa terra com as marcas do surrealismo, corre o Velho Chico, o maior rio totalmente brasileiro e o único perene a atravessar o semiárido. Não se vê mais o Rio da Integração Nacional, das glórias dos livros de História, imortalizado em verso e prosa.
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Ambiente especial: o século da escassez
O Chico da vida real sufoca com esgoto. No Médio São Francisco, onde fica Pilão Arcado, só 22,9% da população têm coleta de esgoto e este vai para o rio. Chico, o rio brasileiro com o maior número de barramentos e barragens (Três Marias, Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso e Xingó), está largo e raso pelo assoreamento. Foi despojado de nascentes, afluentes e teve as matas que protegiam as margens de seus 2.863 quilômetros de extensão reduzidas a 2%. Nos últimos 30 anos, o volume de água na bacia do São Francisco caiu 50%.
O rio agoniza, usado à exaustão, castigado pelo clima, um microcosmo da crise hídrica nacional. Em Pilão Arcado, numa curva do São Francisco, o Brasil se encontra no fundo do além-poço, no leito seco do lago que ele construiu, e a seca tragou.
No Velho Chico, a fartura de peixes é tão parte do passado quanto as riquezas em gado e exploração de carnaúbas que alimentaram, até meados de século XX, guerras entre os coronéis de Pilão Arcado, originado de um povoado do século XVIII. Os peixes perderam diversidade, quantidade e tamanho, mostram estudos da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Surubins e dourados nativos do São Francisco nadam ali em abundância só nas águas da história. Quando muito, se pescam curimatãs, piaus e piabas. Vez por outra, uma maria-do-oião.
— O Velho Chico sobrevive apenas nas nascentes e cabeceiras. Em sua maior parte, ele se tornou um mero canal por onde passa água. Perdeu quase todas as cachoeiras e corredeiras. São elas que oxigenam a água. Perdeu quase a totalidade das matas ciliares, que protegem as margens, os riachos e regulam o fluxo de sedimentos. Um rio é um propulsor de vida. Ele carrega mais do que água. Traz animais, plantas, nutrientes. O São Francisco está em extinção — afirma um dos maiores especialistas no estudo do rio e da caatinga, José Alves de Siqueira Filho, diretor e fundador do Centro de Referência para Áreas Degradadas da Caatinga, no campus da Univasf, em Petrolina (PE).
— A maior dificuldade aqui é tudo. Nada temos. Viemos pela água, meu marido pesca. Mas o peixe é pouco. A água pelo menos pegamos do rio, de balde. Se o lago encher, vamos embora. Mas acho que esse dia nunca virá — conta a moça.
Com 320 quilômetros de extensão e 4.214 quilômetros quadrados de área inundada, Sobradinho foi inaugurado em 1974, um ícone dos projetos monumentais da ditadura. Já foi o maior lago artificial do mundo, hoje ainda o é da América Latina. Foi criado no interior no coração do semiárido com as águas represadas do São Francisco para gerar energia para o Nordeste. Como na música homônima de Sá & Guarabyra, o lago de Sobradinho fez o sertão virar mar. Mas já faz tempo que suas bordas começaram a virar de novo sertão. E a seca histórica do últimos sete anos, a mais severa e longa registrada no semiárido nordestino, exauriu ainda mais o reservatório.
Em 2015 e 2017, ele chegou a menos de 3% do volume morto. Este ano, com as chuvas nas cabeceiras do São Francisco, em Minas, se recuperou para 28,75%. Mas nada perto do volume original de aproximadamente 34 bilhões de metros cúbicos de água. Em 1979, quando a operação estava no máximo, sua vazão era de 2.060 metros cúbicos por segundo. Este mês é de 550 m3/s, lamenta o analista ambiental do Ibama Vanderlei Pinheiro, de 67 anos, 43 dos quais dedicados ao trabalho no São Francisco. As águas recuaram 12 quilômetros, medidos a partir do povoado de Passagem, na nova Pilão Arcado, construída para abrigar os moradores da cidade submersa. Com isso, as ruínas da Pilão antiga reemergiram.
Quando sua cidade foi alagada, Crisna Clayton Albuquerque tinha 4 anos. Agora, aos 45, vive na Pilão Arcado reconstruída, mas plantou uma roça não muito distante da casa de Mailda e passa os fins de semana na velha Pilão, “muito mais bonita”. Sua família foi uma das últimas a deixar a cidade antiga. Resistiu às ordens de sair por três anos, ilhada pelo novo lago.
A vida de Crisna Clayton nunca se separou das ruínas e da seca. Ele seguiu o caminho do pai e se tornou motorista de caminhão-pipa, uma das profissões mais características do semiárido, resultado da precariedade hídrica, mesmo às margens do São Francisco.
Embora tenha sido planejada, a Pilão Arcado atual não escapou da escassez de água que assombra o Médio e o Submédio São Francisco. A água, embora conste como tratada, sai das torneiras da cor do São Francisco, isto é, amarelada e turva. Na zona rural, nunca houve encanamento. E, na estiagem, recorrer a pipeiros é a única alternativa para os moradores do município, que tem um dos IDHs mais baixos do Brasil (0,506 ponto) e meros 5,3% da população empregados.
O esgoto é jogado diretamente no lago, não muito distante de onde é captada a água para abastecimento. Em Pilão Arcado, só 1,8% dos 35 mil habitantes tem esgotamento sanitário, segundo o IBGE. Todo o resto vai para o Chico.
— Nos últimos anos, de seca brava, o rio baixou muito e as bombas quebraram. Até para quem mora na beira do rio o jeito foi chamar o pipa. Falta água sempre — diz outro pipeiro, Gideílson Cavalcanti, de 34 anos.
Como Crisna Clayton, ele repete a reclamação constante dos 58 pipeiros de Pilão Arcado e que se ouve em outras partes do Médio e do Submédio São Francisco: a demora em receber os recursos da Operação Carro-Pipa, do governo federal. Em média, ganham R$ 10 mil por mês. Mas alegam que pagos combustível e despesas com o caminhão, restam no máximo R$ 2 mil para cruzar os sertões sem folga e percorrer quase sempre mais de 400 quilômetros por dia.
A água que viaja nos pipas em eterna emergência e os programas sociais seguram a sertanejo em sua terra. Uma seca silenciosa, mas não menos cruel, afirma Humberto Barbosa, pesquisador do Instituto Nacional do Semiárido (Insa).
— Desde os anos 80 não vemos gente morrer devido à seca. Mas, dependentes de programas assistenciais, as pessoas perderam o domínio sobre o seu destino. São vidas sem futuro — destaca.
Para escapar da dependência sem fim à vista de uma vida sustentada à água que chega de caminhão, seu Amílson Alves dos Santos, de 70 anos, e a mulher Jurene Ribeiro, de 62 anos, voltaram para Pilão Velho. Criam ovelhas, que à moda de todo o sertão, pastam soltas à própria sorte. Mas não sobreviveriam sem a aposentadoria rural recebida por ele. Os filhos e netos ficam entre os dois Pilões, velho e novo.
— Já faz tempo, nem lembro quando voltamos. Logo que a cidade começou a reaparecer, decidi voltar. Fomos os primeiros. Eu pescava, mas hoje estou velho e os peixes diminuíram muito. Mesmo assim, a vida aqui é melhor. É melhor porque tem sempre água. É de balde, mas não falta — afirma.
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