RIO — A série “O mecanismo” decepciona duplamente, como entretenimento e memória da Lava-Jato. Atuações sofríveis, diálogos de novela, histórias fantasiosas e uma compreensão infantil do que é corrupção. Não dá para ignorar esses e tantos outros deméritos enquanto se assiste aos episódios: Selton Mello, o herói da série, não narra, sussurra clichês incompreensíveis. É preciso acionar as legendas, medida que duplica o sofrimento do espectador, submetido à dolorosa missão de enfrentar, simultaneamente em áudio e texto, um roteiro insípido — oposto, em tudo, à operação que promete retratar.
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1. O problema da série não é ideológico. É estético. A série é chata: não entretém. A trama não nos conduz com competência pelo arco narrativo da Lava-Jato, pelo lento acumular de fatos e emoções que compreende a ascensão da investigação — especialmente o início dela, objeto da primeira temporada. Há alguns episódios espetaculares. Não estão lá. Ou estão, mas desprovidos de força dramática.
A decisão do juiz Sergio Moro de acolher o pedido de prisão de Paulo Roberto Costa, o ex-diretor da Petrobras indicado pelo PP, foi difícil para ele. Na série, reduz-se a um mero arroubo de Moro. Que, aliás, não “pediu” a prisão, como diz o personagem inspirado nele — juiz não pede prisão, acolhe ou não pedido de prisão de procurador ou delegado. (Esse tipo de impropriedade repete-se bastante. Pela frequência, não parece ser um artifício para simplificar a trama; parece refletir a ignorância de José Padilha sobre o funcionamento do Judiciário brasileiro).
Não há tomadas aéreas da Esplanada dos Ministérios — e elas são muitas — que preencham esse abismo narrativo. Caso aproveitadas, essas oportunidades não precisariam resultar numa obra de arte transcendental, coisa que ninguém esperava. Mas serviriam ao propósito de dar ritmo ao thriller aparentemente proposto pelo cineasta.
3. Padilha, ninguém discorda, sabe filmar fuzil e perseguição de carro. Filmar caneta e intriga de gabinete exige outro tipo de habilidade. Requer, no mínimo, um roteiro mais coeso, lógico. No caso, um roteiro que obedecesse à cronologia dos principais fatos que sucederam na Lava-Jato — uma descoberta conduzindo inescapavelmente à outra, mesmo que aos solavancos.
Se quisesse ser fiel à realidade dos mundos das investigações e da corrupção, Padilha poderia ter acrescentado mais acidentes, acasos, e subtraído bastante as conspiratas, os acordões. Um pouquinho de complexidade não faria tão mal.
Conspirações dão aos fatos políticos um sentido que na vasta maioria das vezes inexiste. São reconfortantes, mas costumam ser cascata. O poder é feito por pessoas, não por um mecanismo — ao menos não se resume a um mecanismo que produz corrupção e sempre só corrupção.
Constitui-se muito mais de incidentes e equívocos do que estrangeiros como Padilha parecem supor. Os acordos são frequentemente tácitos, não manifestamente obscenos e imbecis, tramados verbalmente, em linguagem clara e inequívoca, em salões esfumaçados.
4. Uma direção inteligente de atores não atrapalharia. Na série, policiais são iguais — sempre malandros e combativos. Procuradores são iguais — sempre almofadinhas e ingênuos. Políticos são iguais — sempre ladrões e inescrupulosos. E o juiz inspirado em Moro é apenas um “vaidoso” que lê quadrinhos do Batman antes de dormir. Deveria ser o personagem principal da série, mas não passa de um cigano Igor.
5. A mistureba entre fato e ficção não desce. Há muita coisa inverossímil ou fora de lugar — sabemos boa parte da história, afinal. De nada adianta o alerta ao começo de cada episódio, de que se trata de uma obra inspirada em fatos reais e que alguns deles foram “adaptados para efeito dramático”. O problema não é tomar liberdades criativas. O problema é que as adaptações não provocam efeitos dramáticos. Provocam tédio.
6. A opção em não usar o nome real das pessoas — e até das instituições — distrai muito, quando não nos convida ao ridículo. Temos que traduzir todos mentalmente, o tempo inteiro. Polícia Federativa? PetroBrasil? Sério? E não há consistência nessa opção. Há momentos em que os personagens falam em Polícia Federal enquanto vestem uniforme da Polícia Federativa. Ou em que citam PT, PSDB e PMDB. Ministério Público é quase sempre MP. E Lava-Jato é sempre Lava-Jato. Então vai entender.
7. É difícil achar uma cena em que não haja clichê. A criança correndo atrás do carro da polícia que leva o avô, o carro parando no acostamento quando um personagem se dá conta de algo, a mãozinha de despedida no vidro do parlatório, o personagem entristecido que, por alguma razão cósmica, precisa caminhar sob a chuva... Essas muletas narrativas esvaziam a história.
8. O texto fraco e infectado de lugares-comuns parece ser uma consequência da falha na construção psicológica dos personagens. Todos usam o mesmo vocabulário limitado e falam no mesmo ritmo compassado. Os diálogos não fluem. Num só episódio, temos que aguentar dois “Deus escreve certo por linhas tortas”. Seguidos de algum “fazer justiça com as próprias mãos” ou um “a corrupção é um câncer”. Abundam lacradinhas. E toda lacradinha é seguida de um “É foda”. Nem tudo é foda.
9. Ao contrário da investigação, a trama avança por soluços — ou melhor, pelos sussurros
incompreensíveis de Selton Mello. As personagens são, em boa parte dos momentos, caricaturas. Não parecem gente de verdade — certamente não se parecem com as pessoas nas quais são inspiradas.
10. A Lava-Jato continua merecendo uma adaptação cinematográfica ou televisiva que transmita às pessoas não só a escala do esquema, mas, ao menos, a forte pancada dramática que marcou os principais momentos dela. Nenhum mecanismo resumirá os últimos quatro anos do Brasil.
* Editor executivo, cobriu a Lava-Jato desde seu início, em 2014
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