O CONSÓRCIO MERCADOMÍDIA AGE PARA CONDICIONAR A ESCOLHA DO NOVO PRESIDENTE DA INSTITUIÇÃO
p o r C A R L O S D R U M M O N D
Com a ansiedade elevada
pela perspectiva de subs-
tituição, em dezembro, do
presidente e de parte da
diretoria do Banco Cen-
tral, que passaria a ter uma
maioria indicada pelo pre-
sidente Lula, e de olho nas
eleições municipais em outubro, uma pre-
ocupação com desdobramento no pleito
presidencial de 2026, o consórcio merca-
do financeiro-mídia não quer nem ouvir
falar de novas reduções das taxas de juro
neste ano. Sensibilidade monetária à flor
da pele, a turma range os dentes e emite
declarações histéricas diante de qualquer
flutuação da inflação, mesmo nos casos
de variações mínimas, exibidas como um
atestado de que a Selic não pode baixar.
O truque visa distrair a atenção do públi-
co para proteger preventivamente os ren-
dimentos generosos proporcionados pe-
la maior taxa de juros real do mundo, ins-
trumento principal utilizado pelo BC no
combate à inflação, mesmo nas situações
em que esta não é a medida adequada.
Faz parte do jogo de cartas marcadas
minimizar notícias positivas sobre a eco-
nomia, e nenhuma delas parece boa o sufi-
ciente para reduzir o pessimismo sob me-
dida, inabalável, dos fazedores de dinhei-
ro. A meta estratégica é enfraquecer o go-
verno Lula, para aumentar as chances de
escolha de um presidente do BC amigo do
mercado e conquistar uma posição políti-
ca o mais favorável possível para o siste-
ma financeiro nas disputas eleitorais. Ou,
no mínimo, constranger de antemão o no-
me mais cotado para substituir Roberto
Campos Neto no comando da instituição,
o economista Gabriel Galípolo, nomeado
diretor de Política Monetária do banco em
julho do ano passado e ex-secretário-exe-
cutivo do Ministério da Fazenda.
A antecipação do debate sobre a esco-
lha do novo presidente do BC ocorreu no
começo de abril, por iniciativa espantosa
do próprio Campos Neto. O mesmo que,
semanas atrás, em pronunciamento ex-
traoficial e extemporâneo, durante even-
to privado da XP, em Nova York, alardeou
a tendência de desaceleração do ritmo da
diminuição da taxa Selic a cada reunião
do Copom, antes definido em meio pon-
to porcentual pelo conjunto da diretoria
do BC, para 0,25. Ao fulminar de modo
monocrático a diretriz da redução dos ju-
ros, Campos Neto elevou o chamado ris-
co institucional, mas como o sistema fi-
nanceiro o reconhece como legítimo re-
presentante público dos seus interesses
privados, traduziu a iniciativa em eleva-
ções das projeções para inflação e das ta-
xas. Como justificativa do seu rompante
em Nova York, o presidente do BC men-
cionou o aumento dos riscos, internos e
externos. Os riscos existem, mas, como
se verá adiante, não parecem justificar a
onda de reajustes de previsões realizada
pelo mercado, que resultará em bilhões e
bilhões em ganhos adicionais às institui-
ções financeiras e aos rentistas.
Exemplo de esmero no uso da estra-
tégia alarmista descrita foi a entrevista
concedida à Folha de S.Paulo por Armi-
nio Fraga, ex-presidente do Banco Cen-
tral e ex-funcionário de George Soros, na
quinta-feira 27. Fraga apontou o risco de
a inflação subir e o mercado perder a con-
fiança no caso de o indicado por Lula pa-
ra a presidência do BC “se meter a besta”,
isto é, se reduzir os juros, o que abriria ca-
minho para um grande e rápido “fiasco
político” (sobre as declarações do ex-presi-
dente do BC, leia o artigo de Luiz Gonzaga
Belluzzo, à página 16). O alerta, recado ou
ameaça de Fraga soma-se à profusão de
editoriais, artigos, notas e fofocas publi-
cados pela mídia nas últimas semanas a
respeito da inflação, dos juros e do risco
fiscal, em um período também marca-
do por derrotas do governo no Congres-
so. “O objetivo imediato é garantir o con-
trole sobre o BC e o objetivo de médio pra-
zo é enfraquecer o governo para ele ser ou
derrotado em 2026, na melhor das hipó-
teses para eles, ou mais influenciável pela
agenda neoliberal. E um jogo transparen-
te, visto várias vezes, é a maneira como a
elite do atraso procura manter o País sob
seu controle, independentemente dos re-
sultados das eleições”, dispara o econo-
mista Paulo Nogueira Batista Jr., colunis-
ta desta revista.
Está em ação um lobby articulado,
prossegue, que inclui o mercado finan-
ceiro, a mídia corporativa e políticos,
os quais atuam de maneira conjugada.
O propósito é inibir o governo, Lula e
Haddad, na escolha do presidente do Ban-
co Central. Além de Campos Neto, con-
cluem o mandato em dezembro dois di
retores, Carolina de Assis Barros, de Ad-
ministração, e Otávio Ribeiro Damaso,
de Regulação. O BC passará então a ter
a maioria dos dirigentes indicados pelo
atual governo. Hoje, a maior parte da di-
retoria é remanescente da era Bolsonaro,
que promulgou a independência da ins-
tituição em 2021 e estabeleceu manda-
tos de quatro anos não coincidentes com
aquele do presidente da República.
“O que eles querem”, prossegue Batis-
ta Jr., “é que a escolha para a presidência
do BC recaia de preferência sobre um ho-
mem deles, um alto funcionário do siste-
ma financeiro. Não podendo ser isso, acei-
tam alguém domesticável. Portanto, es-
se barulho todo, a entrevista de Arminio
Fraga inclusive, é um exemplo disso, é pa-
ra dizer ao governo: ‘Cuidado, não vá nos
desagradar nessa escolha estratégica’.”
Apreocupação foi reforçada com
os embates que antecederam
a última reunião do Copom,
com o placar da votação de 5 a
4 a favor da proposta do presi-
dente do BC, de frear a redu-
ção da taxa de juros. A divisão sinalizou ao
mercado como poderá ser a nova direção
do banco quando Campos Neto não esti-
ver mais disponível para cumprir as dire-
trizes da Faria Lima. “É mais essa tercei-
ra via, que é uma coisa velhíssima, muito
antiga, remonta, no mínimo, à UDN”, res-
salta Batista Jr. A UDN, cabe acrescentar,
nasceu em 1945 para combater o desen-
volvimento do País iniciado por Getúlio
Vargas. Defendia o liberalismo clássico, a
moralidade, e fazia forte oposição às rei-
vindicações da população pobre, além de
defender a abertura incondicional da eco-
nomia ao capital estrangeiro. “É evidente
que essa terceira via está se posicionando
para as disputas eleitorais. As deste ano,
que estão aí na boca, e a de 2026, que é a
mais importante. Eles se deram conta de
que Lula é candidato e estão querendo di-
ficultar a vida dele e, se possível, derrotá-
-lo”, sublinha o economista.
A operação do mercado passa pelo re-
conhecimento de que o único fato novo na
política, no Brasil e em outros países, nos
últimos dez anos, é a ascensão da extrema-
-direita. Ela é um elemento novo, no País e
fora dele, por mostrar potencial eleitoral e
um radicalismo na área cultural e econô-
mica. E é competitiva. A direita tradicio-
nal tende, segundo o economista, a sub-
mergir. Os partidos dessa corrente desa-
parecem, seja porque são engolidos pelos
partidos de extrema-direita, seja porque
a extrema-direita se infiltra nos partidos
da direita tradicional e toma conta, caso
dos republicanos nos Estados Unidos e dos
conservadores no Reino Unido. No Brasil,
o que aconteceu foi o virtual desapareci-
mento dos partidos que representavam a
terceira via, do PSDB notadamente.
“O que eles estão tentando agora, se
possível, como mostra a entrevista de
Arminio Fraga, que é politiqueira, cla-
ramente, não é uma entrevista de econo-
mia, é uma terceira via. Não sendo possí-
vel uma terceira via, pretendem encon-
trar outro caminho.” Esse outro cami-
nho, prossegue, se configura de manei-
ra escancarada e consiste na organiza-
ção de “uma nova Arca de Noé pela di-
reita”, em torno de uma frente ampla que
incluiria a extrema-direita e ao menos a
maior parte da direita tradicional, para,
caso não seja viável a terceira via, ter-se
uma Arca de Noé de direita.
Se não for possível isso, eles vão botar
fichas também na “Arca de Noé de Lula”,
só que, nesse caso, tentarão enfraque-
cer ao máximo o presidente agora, pa-
ra que ele entre na negociação fragiliza-
do, precisando muito da terceira via. “O
que eles não querem é que ele chegue em
2026 como chegou em 2010. Ganhou em
2002, disputou a reeleição e em 2010 na-
dou de braçada com Dilma, indicada por
ele. Querem evitar que Lula chegue em
2026 forte, em condições de reduzir o pa-
pel da terceira via em uma nova Arca de
Noé.” Nessa configuração, nomes como
Arminio Fraga, e vários outros, prosse-
gue, “têm o papel de dar uma vestimen-
ta econômica a um projeto político. E Lu-
la que se cuide, porque, hoje em dia, não
é exagero dizer que o governo está acos-
sado simultaneamente por vários lados.
No Congresso, na mídia corporativa e no
mercado financeiro”.
Acrescente-se a oposição interna ao
seu próprio espectro político, com mi-
nistros e outros ocupantes de cargos de
partidos aliados que não resultam em
aumento do placar do governo nas vota-
ções no Congresso, e dificuldades como
a greve de várias categorias de funcioná-
rios públicos. “A base tradicional de Lu-
la está em queda”, destaca Batista Jr. E o
governo está um pouco paralisado pela
presença importante de representantes
da terceira via em postos relevantes, co-
mo consequência da Arca de Noé. Não é
só o BC, que ainda está sob o comando de
um indicado por Bolsonaro. O Ministé-
rio do Planejamento inteiro, o Ministério
de Desenvolvimento, Indústria e Comér-
cio também está quase totalmente ocu-
pado por gente com a ideologia neolibe-
ral, e mesmo na Fazenda há representan-
tes dessa agenda”. Mais: “Se dependesse
dessa gente, nós voltaríamos ao Consenso
de Washington, à agenda neoliberal, que
está morta e enterrada nos Estados Uni-
dos e na Europa, mas continua a ter uma
sobrevida por aqui. Porque, aqui, o pes-
soal não se renova, continua com as mes-
mas teses mofadas que prevaleceram no
fim do século XX, início do século XXI”.
Notícias econômicas boas não
faltam, entretanto, a começar
pelo aumento de 0,8% do PIB
no primeiro trimestre, em
comparação com o trimes-
tre anterior, acima das pre-
visões do mercado. Os fatores que mais
contribuíram para o dinamismo da eco-
nomia foram a continuidade do merca-
do de trabalho aquecido, com a criação
de 730,8 mil novas vagas de emprego
formal, bem acima dos 520,3 mil postos
criados no mesmo período no ano passa-
do, o aumento real do salário mínimo e
seu impacto sobre os benefícios sociais
e previdenciários, a ampliação da mas-
sa salarial em 10,4% em termos reais,
o aumento do consumo e, em especial,
o bom desempenho dos investimentos,
com avanço de 4,1% no período, influen-
ciado pela retomada da produção de bens
de capital, favorecida pela melhora das
expectativas dos empresários, segundo
a Federação das Indústrias de São Paulo.
O acompanhamento da Fiesp mostra
que a indústria de transformação voltou
a crescer no primeiro trimestre deste ano
com avanço de 0,7%, mas “a taxa Selic ter-
minal mais alta é fator de risco para a con-
tinuidade do processo de recuperação do
setor”. “O Brasil faz milagre, queria ver os
Estados Unidos crescerem com juros de
10% a 12% ao ano”, disparou Paulo Gala,
economista-chefe do Banco Master, em
comunicado a propósito da expansão do
PIB. Gala destacou como “notícia muito
boa”, nessa evolução, o aumento do inves-
timento, que gera capacidade produtiva na
economia, o que permitirá um Produto In-
terno Bruto maior no futuro. “O Brasil es-
tá meio heroico, conseguiu crescer quase
3% ao ano nos últimos dois a três anos,
com esses juros gigantescos”, acrescentou.
Divulgado pouco antes da notícia acer-
ca do desempenho do PIB, o relatório do
Fundo Monetário Internacional sobre
o Brasil, elaborado após visita de mis-
são regular de acompanhamento técni-
co, contém um diagnóstico muito favo-
rável a respeito da situação da economia
e da política econômica. O relato dos téc-
nicos, registrado sem destaque pela mí-
dia local, apesar de o FMI ser a principal
instituição norteadora das políticas eco-
nômicas liberais e neoliberais no mundo,
afirma que o País, nos últimos anos, de-
monstrou “notável resiliência, à medida
que a inflação caiu para dentro do inter-
valo da meta”. O corpo técnico do Fundo
espera que o crescimento modere no cur-
to prazo antes de se fortalecer para 2,5%
no médio prazo, uma revisão para cima,
em face dos 2% registrados na visita an-
terior da instituição, em 2023. O relatório
ressalta “o ritmo cuidadoso da flexibili-
zação monetária, apropriado e consisten-
te”, indica “satisfação com o compromis-
so das autoridades em continuar a melho-
rar a posição fiscal do Brasil” e a “elimi-
nação das despesas fiscais ineficientes, o
alargamento da base tributária e o com-
bate à rigidez da despesa”. Não por aca-
so, todas as agências de rating têm me-
lhorado a nota de risco de crédito do País.
No plano internacional, o FMI,
acompanhado da OCDE e da
Unctad, vê uma melhora dis-
creta da economia global, que
se mostrou resiliente durante
a desinflação de 2022 e 2023.
As agências projetam um “pouso suave”,
apesar dos juros mais elevados para com-
bater a alta de preços e da resistência da
própria inflação.
Apesar dos vários indicadores po-
sitivos relevantes, a articulação mer-
cado-mídia segue infatigável, apoiada
em razões estruturais, aponta André
Roncaglia, professor de Economia da
Unifesp. Os meios de comunicação, em
causa própria, se interessam pela agen-
da que defende a redução da tributação e
os cortes de gastos públicos, para garan
tir o equilíbrio fiscal. O alinhamento en-
tre a sobrevivência e a lucratividade des-
ses veículos e uma agenda de austeridade
é quase automático. Outro fator que pe-
sa é a identificação com os interesses dos
anunciantes. Para mantê-los, o veículo
tentará preservar um certo viés em defe-
sa dessa mesma agenda que os beneficia.
Um terceiro elemento vem do fato de
as fontes consultadas pelos jornalistas
serem majoritariamente experts cujos
salários dependem do avanço de uma
agenda de austeridade. São os economis-
tas da Faria Lima, ou de empresas e de
institutos privados. “Os economistas são
formados, majoritariamente, dentro de
uma perspectiva em que o mercado tem a
primazia na regulação da economia. Es-
sa ideologia se traduz na ênfase em deter-
minados tópicos, que são particularmen-
te de curto prazo. As questões da política
fiscal com viés de austeridade, e da políti-
ca monetária também com esse viés, são
exemplos”, sublinha Roncaglia.
Entre as causas do alinhamento da
mídia ao mercado há a questão ideoló-
gica, inescapável por estar no ambiente
econômico. “Vivemos um modelo neo-
liberal de governança econômica, e aqui
não falo de governo, mas de governança,
que é a relação entre Estado, mercado e
sociedade civil. Esse modelo ainda é do-
minantemente neoliberal, embora esteja
em crise. Mas a hegemonia da governan-
ça ainda não transitou. Ela está nessa si-
tuação de crise do neoliberalismo, mas
define a maneira como o sistema opera, e
isso afeta tremendamente os jornalistas,
cujo horizonte de análise é muito curto”,
ressalta o professor.
Outro aspecto a considerar, nessa rela-
ção entre jornalistas e economistas, é que
a disponibilidade de economistas para fa-
lar com a imprensa é assimetricamente
maior nas instituições financeiras da
Faria Lima ou associadas a interesses fi-
nanceiros. Bancos, gestoras de recursos
e corretoras têm equipes de economistas
que ficam essencialmente à disposição da
imprensa. Em contrapartida, economis-
tas que integram universidades e institu-
tos de pesquisa costumam ter pouca dis-
ponibilidade ou simplesmente são igno-
rados como fontes de informação.
Não satisfeitos, os donos do dinheiro
patrocinam no Congresso uma Propos-
ta de Emenda Constitucional para apro-
fundar a “independência” do Banco Cen-
tral. A PEC estabelece a autonomia finan-
ceira e administrativa à instituição e tem
como relator o senador Plínio Valério, do
PSDB do Maranhão. A ideia conta com o
entusiasmado apoio de Campos Neto. O
Sinal, sindicato dos funcionários do BC,
é contrário à proposta, assim como a Ad-
vocacia-Geral da União. Em carta, os sin-
dicalistas alertam para os riscos de desco-
ordenação da política monetária no futu-
ro. “Não há como ignorar sua condição de
instituição típica de Estado, incompatível
com a sua transformação em empresa pú-
blica”, afirma o texto. O relatório de Valé-
rio entrará em pauta nos próximos dias
carta capital
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