MAIS IMPORTANTE QUE DESMENTIR AS
FAKE NEWS SOBRE A TRAGÉDIA GAÚCHA
É ENTENDER COMO ESTÁ ESTRUTURADO
O ECOSSISTEMA DA DESINFORMAÇÃO
Eliara Santana
A tragédia climática que se abateu de modo avassalador sobre o Rio Grande do Sul, infelizmente, mostrou que o ecossistema de desinformação que se consolidou no Brasil a partir de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, segue em pleno funcionamento e vigor. De novo, uma pandemia de fake news surpreende em meio a uma situação extrema.
Desde o começo de maio, quando a situação no estado se tornou muito grave, explodiram mentiras que confundiram as pessoas e dificultaram os trabalhos de orientação e socorro em relação às enchentes. As narrativas desinformativas vão da ineficiência do governo federal – com motes como “civil ajuda civil” e “o povo cuida do povo” – a multas por falta de notas fiscais de doações e proibição de entrada de remédios.
Há um rol imenso e eixos narrativos
bem marcados e que se sobressaem, co-
mo algumas pesquisas já têm levantado.
Mas a reflexão que quero propor aqui é so-
bre o funcionamento, a lógica e os objeti-
vos dessa construção desinformativa em
meio à tragédia. O primeiro ponto que tra-
go é que o mote principal que guia essa ex-
plosão de desinformação, neste momen-
to, é a negação em relação ao desastre cli-
mático – e essa é uma pauta cara à extre-
ma-direita no mundo, sempre atenta ao
que acontece no Brasil. Lembrando que:
1. Fomos, por um bom tempo, um labo-
ratório de construção de realidade para-
lela. 2. A mídia bolsonarista sempre ali-
mentou com vídeos, formação, cursos e
reportagens a pauta do negacionismo cli-
mático, e fez/faz isso com competência.
Podemos analisar alguns pontos de en-
tremeio desse discurso negacionista reto-
mando um post de Jair Bolsonaro do dia
9 de maio, quando o Rio Grande do Sul já
estava assolado pelas enchentes. Segundo
o ex-presidente, a questão da problemati-
zação em relação ao clima é “pura desin-
formação”, um meio para atingir um fim.
“Tudo orquestrado pelos gigantes que exi-
gem dos outros o que não cumprem. Ou
seja, inviabilizam o desenvolvimento de
países com potencial, garantindo aos lí-
deres dessas repúblicas a sua manutenção
no poder sob o custo de escravizar ainda
mais seu próprio povo. No final quem pa-
ga por tudo isso é o contribuinte, com au-
mento de impostos, desemprego e mais
dependência ainda do Estado”. Observem
os trechos em itálico, são temas-chave já
mobilizados em outros momentos e que
são atualizados nesta pandemia de desin-
formação na tragédia gaúcha pelos vários
atores que disseminam os conteúdos.
Um segundo aspecto é a fina tessitu-
ra das narrativas, que atualizam temas já
circulantes; portanto, não são boatos esta-
pafúrdios, totalmente inverossímeis. Eles
deixam as pessoas em dúvida. São mentiras
e distorções bem construídas e bem amar-
radas. Aliada a essa dinâmica, há a rapidez
imensa na construção e na disseminação
desse conteúdo mentiroso. O ecossistema
sobrevive da desinformação, e muito bem.
O terceiro aspecto a se destacar é o
agenciamento reiterado da desinfor-
mação por vozes públicas com grande
alcance nas redes. Figuras como os depu-
tados Gustavo Gayer, Eduardo Bolsonaro
e Nikolas Ferreira, o vereador e influencer
Pablo Marçal, o senador Cleitinho e o pre-
feito de Farroupilha, entre outros, disse-
minam narrativas de desinformação sem
qualquer pudor. Alguns desses nomes são
bastante atuantes nas redes sociais e for-
mam clusters significativos, que amplifi-
cam muito os efeitos das fake news disse-
minadas. Esses atores bradam pelo Esta-
do mínimo em seus discursos e são capa-
zes de impor agendas negacionistas e de
realidade paralela. A mentira sobre os ca-
minhões com doações que foram impedi-
dos de entrar no estado pela Política Ro-
doviária Federal é um ótimo exemplo.
Outro aspecto é que, na pandemia de
desinformação em meio à tragédia gaú-
cha, há uma movimentação interessante,
que é o grande volume de menções nega-
tivas sobre o Exército, que tem desempe-
nhado um papel importante no socorro ao
estado. Parece que, para os bolsonaristas,
o Exército já não é mais o salvador da pá-
tria dominada pelo comunismo.
Por fim, um último aspec-
to, que considero o mais
relevante pela implicatu-
ra: o ataque calculado, sis-
tematizado e sistemático
ao papel do Estado, às instituições. Por
que considero esse ponto tão importan-
te? Primeiro, porque os ataques, as men-
tiras, seguem o padrão de provocar uma
desestabilização do Estado, colocando em
suspeita as ações do governo federal es-
pecialmente. Eles não são aleatórios, pe-
lo contrário. Como já venho dizendo, é um
modus operandi para impedir o funciona-
mento do Estado Democrático de Direito.
Segundo, porque a pauta da questão
climática – o negacionismo e suas cons-
truções – é caríssima à extrema-direita
no mundo. A tragédia no Rio Grande do
Sul e a pronta resposta do governo fede-
ral e das instituições abalam muito essa
pauta. O que está acontecendo no esta-
do expõe, de maneira bruta, que a tragé-
dia climática é real e que o descaso com
a política ambiental, deixando “passar a
boiada”, custa muito caro.
Terceiro elemento em relação a esse úl-
timo aspecto: a virulência e a sistemati-
zação dos ataques contra o papel do Es-
tado e contra as ações da equipe de Lula
se justificam porque mexem com os ar-
ranjos da extrema-direita brasileira pa-
ra as eleições de 2026 e a tentativa de vol-
tar ao poder. As ações do governo colocam
em xeque pautas preciosas dos bolsona-
ristas: não apenas o aquecimento global,
mas também a defesa do Estado míni-
mo, a privatização sem limites e a defe-
sa do “agro pop”. Os atores proeminentes
desse espectro encarregam-se de disse-
minar narrativas como “civil ajuda civil”
para defender essas pautas, e a desinfor-
mação é uma peça-chave para a manuten-
ção da extrema-direita no poder.
Para fechar, uma constatação: as fake
news vieram para ficar. O ecossistema
de desinformação brasileiro é uma or-
ganização complexa, sistematizada,
que tem financiamento e envolve mui-
tos atores e apoiadores. Ele permane-
ce atuante, muito. Portanto, é preci-
so pensar uma estratégia, ou várias, pa-
ra entender essa organização, saber co-
mo ela funciona, vislumbrar os atores,
compreender a vinculação das narrati-
vas, saber com o que elas dialogam para
que sejamos capazes de antever os novos
ataques que virão. Porque eles virão. •
CARTA CAPITAL
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