June 18, 2024

Sol, mar e roleta

 



A PEC da privatização das praias se entrelaça
ao projeto de autorização de cassinos no Brasil
 

P O R  A N D R É  B A R R O C A L

 O Brasil sediará, em 2025, uma conferência latino-americana de ecoturismo. Será em Bonito, cidade pantaneira em Mato Grosso do Sul. O País tem grande potencial de turismo verde e deveria explorá-lo melhor, na visão do presidente Lula, que recentemente falou a respeito ao ­lado do ministro Celso Sabino. “Nós não temos uma política de desenvolvimento do turismo para visitar nossas florestas”, afirmou na quarta-feira 5, Dia Mundial do Meio Ambiente.

Em Brasília, há quem trabalhe, na surdina, por outro tipo de turismo: o da jogatina. A pasta de Sabino integra a engrenagem, aliás. O plano é liberar cassinos em resorts, eis o motivo do avanço no Congresso da “PEC das Praias”, para privatizar áreas litorâneas. Os patrocinadores da medida só não contavam com um barraco nas redes sociais entre a atriz Luana Piovani e o jogador Neymar, polêmica que fez o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, segurar o andamento da proposta por ora.

A mudança constitucional conhecida
como “PEC das Praias” e a lei que au-

oriza cassinos são irmãs siamesas. Fo-
ram aprovadas ao mesmo tempo pelos
deputados, em fevereiro de 2022, e ago-
ra andam lado a lado no Senado. “Os cas-
sinos disseram que queriam praias pri-
vativas. Quem negociou isso foi o Felipe
Carreras, em nome do Arthur Lira”, con-
ta uma autoridade governamental que
testemunhou o entrelaçamento das pro-
postas na Câmara. A PEC transfere do
governo federal para estados e municí-
pios as “terras de marinha”, situadas a
até 33 metros na beira do mar e rios, ava-
liadas em 213 bilhões de reais pela Se-
cretaria de Patrimônio da União. Repas-
sar os terrenos a estados e prefeituras
alimentará, segundo ambientalistas, a
especulação imobiliária, em decorrên-
cia da regularização fundiária de terre-
nos ocupados de forma precária ou ile-
gal. A restrição de acesso às áreas se-
ria consequência da regularização. E é
o que os cassinos querem: praias exclu-
sivas para seus clientes.

 
A PEC está aos cuidados do sena-
dor Flávio Bolsonaro, do Republicanos
do Rio de Janeiro. O 01 apresentou, em
maio de 2023, um parecer favorável ao
texto na Comissão de Constituição e
Justiça do Senado. A CCJ realizou uma
audiência pública sobre o tema em 27
de maio passado. Duas semanas antes,
havia promovido uma audiência públi-
ca sobre a lei dos jogos de azar. O proje-
to entrou na pauta de votações da CCJ
em 13 de maio e saiu em 5 de junho, em
razão de um pedido de vistas, ou seja,
alguns senadores queriam tempo para
examiná-lo com calma. O parecer é a fa-
vor da aprovação da lei. Tinha sido apre-
sentado em novembro do ano passado
pelo senador Irajá, do PSD de Tocantins.
Em janeiro de 2020, Irajá e Flávio
viajaram a Las Vegas, a meca da jogati-
na nos Estados Unidos, e reuniram-se
com um empresário trumpista judeu,

Sheldon Adelson. Morto aos 87 anos
um ano depois, Adelson era dono do
Grupo Las Vegas Sands, um dos maio-
res resorts e cassinos do mundo, e dese-
java fazer negócios no Brasil. Em maio
de 2018, tinha ido a Brasília encontrar
o então presidente Michel Temer. Eram
tempos de pré-campanha presidencial
e, numa atividade na Associação Co-
mercial do Rio, Jair Bolsonaro acenara
com a liberação dos cassinos, caso che-
gasse ao poder: “Há a possibilidade, eu
digo uma possibilidade, de jogar para ca-
da estado decidir. Em princípio sou con-
tra, mas vamos ver qual a melhor saída”.
Um jornal de Adelson, o Israel Sayom, foi
um dos primeiros a entrevistar Bolsona-
ro após a eleição dele em 2018.

 
A viagem de Flávio e Irajá aos EUA
custou 40 mil reais ao Senado, entre
passagens e diárias. Além de Las Vegas,
o tour teve uma parada em Miami, onde
a dupla se reunira com duas firmas de
cruzeiros marítimos. A viagem e as des-
pesas tinham sido autorizadas pelo en-
tão presidente do Senado, Davi Alcolum-
bre, hoje do União Brasil do Amapá. Al-
columbre chefia desde 2021 a CCJ, o pal-
co de negociações subterrâneas em tor-
no da “PEC das Praias” e da lei dos jogos.
Nada é feito às claras no Congresso atu-
almente, é tudo no privado. Palavras de
um colaborador do PT no Senado.

 
O casamento entre a “PEC das Praias”
e a lei da jogatina foi celebrado na Câma-
ra há pouco mais de dois anos, sob as bên-
çãos de Lira. Os deputados aprovaram a
proposta sobre terras de marinha em 22
de fevereiro de 2022 e, um dia depois, fi-
zeram o mesmo com a lei dos cassinos. Os
dois projetos são antigos (de 2011 e 1991,
respectivamente) e tinham ganhado im-

pulso quando a Câmara era comandada
pelo mentor de Lira, Eduardo Cunha,
criador de comissões especiais para am-
bos. A da jogatina acabaria em agosto de
2016, um mês antes de Cunha ser cassado
por mentir sobre dinheiro no exterior. A
outra, em novembro de 2018, três sema-
nas após a eleição de Bolsonaro.

 
Lira ressuscitou as duas propostas en-
tre o fim de 2021 e o início de 2022. A
classe política preparava-se para a elei-
ção à vista e, em tempos de campanha,
dinheiro é sempre bem-vindo. Em 16 de
dezembro de 2021, Lira colocou em vo-
tação um pedido de urgência para a lei da
jogatina, o que pavimentaria a estrada

ara o plenário examiná-la. Era o último
dia de trabalho congressual em 2021. A
urgência foi aprovada. Em 16 de fevereiro
de 2022, duas semanas após o fim do re-
cesso legislativo, Lira inseriu a “PEC das
Praias” na pauta do plenário. Aproveitou
como relator o mesmo da comissão espe-
cial, Alceu Moreira, do MDB gaúcho. Pa-
ra cuidar da irmã siamesa, designou Fe-
lipe Carreras, do PSB de Pernambuco.
Carreras é soldado de Lira em certas
missões. Foi dele o projeto que conce-
deu isenções fiscais a empresas do se-
tor de eventos na época da pandemia, o
Perse. Esse sistema permitiu fraudes bi-
lionárias, conforme constatado pela Re-

 ceita Federal posteriormente. O gover-
no Lula tentou, sem sucesso, extingui-lo,
mas, por pressão de Lira, teve de aceitá-
-lo até 2026. Na condição de relator da lei
dos jogos de azar, coube a Carreras ne-
gociar com interessados em abrir cassi-
nos. Mesmo com o projeto no Senado, ele
continuou a se mexer. Em 25 de abril, foi
ao presidente da Confederação Nacional
do Comércio, José Roberto Tadros, con-
versar sobre a lei e convidá-lo a partici-
par de um debate na Câmara. Tadros é
a favor da legalização dos jogos. Diz que
haveria bilhões em investimentos.

 
Foi basicamente esse o argumen-
to usado pelos defensores da jogatina
na audiência pública de 5 de maio na
CCJ do Senado. Entre os pregadores
estavam o vice-presidente da Opera-
ção de Cassinos e Hotéis do Hard Rock
Internacional, Alex Pariente, o vice-pre-
sidente institucional da Associação Bra-
sileira dos Resorts, Thiago Borges, e o
presidente da Associação Brasileira da
Indústria de Hotéis, Manoel Cardoso
Linhares. No embalo dos investimen-
tos haveria mais turistas, acrescentam.
Pariente comentou que o Hard Rock
tem cassino na República Dominicana
e que essa é uma das causas de o país ca-
ribenho receber 10 milhões de turistas
por ano, acima do Brasil – 6 milhões no
ano passado. Os potenciais investidores
querem criar resorts integrados, espa-
ços que oferecem num só lugar estadia,
jogos, shows e... praias. O Ministério do
Turismo tem feito estudos sobre os ga-
nhos para a economia em caso de legali-
zação dos jogos e onde resorts podem ser
instalados. Foi o que contou Carlos Hen-
rique Menezes Sobral na audiência pú-
blica no Senado. Sobral é secretário na-
cional de Infraestrutura, Crédito e In-
vestimentos no Turismo, repartição do
ministério. No passado, havia sido as-
sessor especial de Eduardo Cunha. Sa-
bino foi nomeado ministro em agosto de
2023 sob as bênçãos de Lira    

 

O outro lado da moeda vendida pela
turma da jogatina não é bonito, confor-
me visto na audiência pública no Sena-
do. Gilberto Pereira, vice-presidente da
Associação Nacional dos Auditores Fis-
cais da Receita Federal do Brasil, a Una-
fisco, disse: o jogo favorece a evasão de
divisas e a lavagem de dinheiro. Segun-
do Peterson Queiroz Araújo, promotor de
Justiça em Minas Gerais, ele beneficia o
crime organizado, vide uma operação po-
licial de 2019 em Minas Gerais, a Hexa-
grama. “Certamente, favorecerá o forta-
lecimento das organizações criminosas
a um ponto tal em que talvez nós expe-
rimentaremos aqui, no futuro, o que ou-
tros países já enfrentaram”, reforçou um
colega procurador mineiro, André Este-
vão Ubaldino Pereira. E fará aumentar
a dependência dos cidadãos, conforme
Hermano Tavares, professor, psiquia-
tra e coordenador do Programa Ambu-
latório do Jogo Patológico. O jogo, segun-
do ele, é a terceira causa do vício entre
brasileiros, atrás da nicotina e do álcool.

 
A “PEC das Praias” também cau-
sará problemas. Além da especulação
imobiliária e da privatização de áreas
litorâneas, há o risco ambiental. “A gran-
de maioria desses terrenos de marinha e
faixa de segurança está em áreas consi-
deradas pela legislação brasileira como
Áreas de Preservação Permanente (...),
importantes para a segurança humana
e para o bem-estar das pessoas”, decla-
rou em 27 de maio, no Senado, Marinez
Eymael Garcia Scherer, coordenadora-
-geral do Departamento de Oceano e
Gestão Costeira do Ministério do Meio
Ambiente. Na França, prosseguiu ela, o
governo tem recomprado terras litorâne-
as privatizadas por causa do risco de au-
mento do nível do mar, em razão do aque-
cimento global. A Marinha é contra a
PEC por motivos de segurança nacional.

 
Os argumentos contrários parecem
não ter sido capazes de sensibilizar o Se-
nado e conter o avanço da proposta. O
que os senadores sentiram foi o efeito do
barraco entre Piovani e Neymar. A atriz
manifestou-se contra a ameaça de pri-
vatização das praias e chamou o jogador
de “ignóbil” por apoiar a ideia e ter in-
teresses imobiliários no litoral. O atleta
revidou: “Louca”. No embalo do barra-
co circulou nas redes sociais a bandei-
ra “-Ney + Mar”, enquanto artistas en-
travam em cena contra a PEC. Rodrigo
Pacheco, o presidente do Senado, sen-
tiu o baque e declarou publicamente que
a proposta não será votada com pressa.
E com calma, vai? Pelo que se ouve nos
bastidores, as forças a favor das irmãs
siamesas vão esperar a poeira baixar,
mas não desistiram.

 

CARTA CAPITAL

 

 
 

 

 

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