June 1, 2024

Guilherme Derrite: O homem e seu passado

  O homem e seu passado

 

A desconhecida história de Guilherme Derrite, o secretário de Segurança Pública de São Paulo

João Batista Jr.

 Na noite do dia 9 de novembro de 2011, assim que o tiroteio acabou, um jovem de 15 anos correu até a casa assaltada. Houve disparos para todos os lados e o adolescente estava apreensivo. Temia que seu irmão fosse um dos assaltantes. Ao chegar ao local, ouviu a seguinte notícia sobre o destino de seu irmão. “Se ele for trabalhador, pode ir para a sua casa que ele está lá. Se não for, pode ir pro IML”, disse um PM. O adolescente correu para o IML. Ficou duas semanas sem dormir, abalado pela visão do cadáver do irmão, que estava coberto de sangue e de olhos abertos. “Parecia que ele estava assustado”, diz. Marcelo Barbosa Soares, de 17 anos, levara dois tiros durante o assalto. Morreu de “hemorragia interna traumática aguda”. 

O caso ocorreu no Jardim Arpoador, bairro paulistano quase na divisa com Osasco. Os três assaltantes foram mortos. Na soma, levaram nove tiros. O policial que mandou o rapaz de 15 anos ao IML era um tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Chamava-se Guilherme Muraro Derrite. Tinha 27 anos, estava no segundo ano de trabalho na Rota, a tropa de elite da PM paulista, e gostava de dizer que sua missão era “tirar vagabundo de circulação”. Ficou quase doze anos na PM, entrou para a reserva como capitão, elegeu-se e reelegeu-se deputado federal e foi vice-líder do governo de Jair Bolsonaro na Câmara. Hoje, é secretário da Segurança Pública do governador Tarcísio de Freitas.

É o primeiro policial militar tão jovem e
com patente tão baixa a assumir o cargo.
Também é o primeiro a ter criticado
colegas de farda que mataram menos de
três pessoas em cinco anos de serviço.
“É vergonhoso”, disse. Mas Derrite, ele
mesmo, nunca falou quantos matou.

 
Em 2021, numa entrevista, comentou
que participou de cinco intervenções
nas quais foi o responsável por disparar
os tiros que mataram suspeitos. Em
2023, em outra entrevista, já no cargo de
secretário de Segurança, se disse arre-
pendido por ter criticado os colegas me-
nos letais. A piauí consultou sua certidão
criminal, apresentada ao Tribunal Su-
perior Eleitoral quando concorreu a
deputado, pegou o número de cada um
dos seis inquéritos em que foi investiga-
do e pediu o desarquivamento de todos.
Com isso, descobriu que – oficialmente
– Derrite tomou parte de intervenções
que somaram dez homicídios.

 
Os homicídios ocorreram num perío-
do de três anos e nove meses de patrulha-
mento ostensivo, entre fevereiro de 2008 e
novembro de 2011, época em que Derrite
integrou o 14º Batalhão e, depois, a Rota.
Não significa, frise-se, que Derrite tenha
matado as dez pessoas, pois os inquéritos
nem sempre apontam o autor do disparo
fatal, mas que participou de ações poli-
ciais que resultaram nesse saldo de mor-
tos. É uma média alta: um morto a cada
quatro meses e meio. Nos documentos,
chama a atenção como a dinâmica dos
homicídios se repete, com pequenas varia-
ções. Em todos os casos, as vítimas atiram
contra os policiais, mas nunca acertam.

 
Em todos os casos, são atingidas em ór-
gãos vitais, como coração ou pulmão. Em
todos os casos, são homens e já tinham, à
exceção de uma vítima cujo histórico po-
licial não foi confirmado, ficha por roubo
ou uso de drogas, ou então passaram pela
Fundação Casa, que abriga jovens que
cometeram alguma infração. E em rarís-
simos casos há testemunhas civis dos fatos.

 
Considerando que na vida real con-
frontos entre policiais e bandidos nunca
se passam da mesma forma, a repetição
do padrão é um mau indicador. As ce-
nas sugerem que nem sempre houve
confronto, dada a improbabilidade de
que os criminosos tenham um índice
de 100% de erro nos disparos. Também
sugerem que quase nunca houve tiros
de advertência, pois os disparos dos po-
liciais acertaram regiões vitais. Eis a fi-
cha do secretário de Segurança:

 
10 DE FEVEREIRO DE 2008, DOMINGO_

 
Derrite, então tenente do 14º Batalhão, foi
chamado pelo rádio para atender a uma
ocorrência no km 15 do Rodoanel, o anel
rodoviário que circunda a Grande São
Paulo. Um homem fora flagrado tentando
assaltar um veículo no acostamento da ro-
dovia. Houve um tiroteio e o ladrão embre-
nhou-se no matagal à beira da estrada.

 
Derrite chegou ao local e, junto com um
soldado, meteu-se na trilha atrás do assal-
tante. No inquérito, Derrite disse que o
homem começou a atirar na sua direção,
e ele revidou. Colocado numa viatura, o
homem foi levado a um pronto-socorro
em Osasco, onde foi identificado: Lean-
dro da Silva, 24 anos. Um disparo lesionou
coração e pulmão. Outro perfurou o estô-
mago e o fígado, e alojou-se na lombar.
Segundo a ocorrência, o assaltante tinha
passagem pela polícia por furto.

 
Em um podcast, gravado em maio de
2021, Derrite narra a ocorrência “sinistra”
com as devidas onomatopeias: “Eu só
lembro dessa cena, dos tiros, pá, pá, pá.
Era terra subindo, mano, a metralhadora
sempre na rajada e eu tive que revidar, né,
mano, sobreviver. Prá, rá, rá, rá, rá.” Na
ocorrência, não há menção a qualquer
metralhadora, mas a duas pistolas Taurus
calibre .40 e dois revólveres calibre .38.
O Ministério Público entendeu que
Derrite e seus colegas agiram em legí-
tima defesa “sem vislumbre de excesso
de conduta”.

 
10 DE AGOSTO DE 2009, SEGUNDA-
FEIRA_ 

A bordo de um automóvel rouba-
do havia dois dias, Danilo Messias Re-
bollo, de 20 anos, junto com um amigo,
avistou a polícia em Osasco. Arrancou o
carro, foi perseguido, bateu num barranco
– e desceu do veículo atirando contra os
policiais. Levou três tiros e morreu ali
mesmo. Do banco de trás, saiu o amigo
– também atirando – e refugiou-se num
matagal, segundo descrição posterior

 dos policiais. Nesse momento, de acor-
do com a versão oficial, Derrite entrou
no mato, e o jovem começou a disparar.
Não acertou nenhum tiro, mas foi alve-
jado com quatro. Era José Carlos Perei-
ra Barbosa, também de 20 anos. Os dois
tinham passagem pela Fundação Casa.

 
O Ministério Público, com base na
versão dos pms, concluiu que havia “cla-
ríssimos sinais de que os policiais agi-
ram amparados na excludente do estrito
cumprimento do dever legal”.

 
(As mães dos dois jovens mortos con-
taram outra história. Dulcineia Rebollo,
mãe de Danilo, descobriu que havia
uma testemunha do tiroteio e comparti-
lhou a informação com Vera Aparecida
Pereira, mãe de José Carlos. A testemu-
nha disse que os dois foram executados,
mas nunca foi ouvida no inquérito.
Chamava-se Rafael Rodrigues da Silva.
Três anos depois, em 2012, ele foi assas-
sinado a tiros dentro do carro que dirigia
em Carapicuíba, na Grande São Paulo.
Os disparos foram feitos contra o vidro
do motorista e mataram também o ocu-
pante do banco do passageiro.)

 
14 DE MAIO DE 2010, SEXTA-FEIRA

_Depois de receber uma denúncia de tráfico
de drogas na favela do Sambaiatuba, em
São Vicente, na Baixada Santista, Derri-
te, que já trocara o 14º Batalhão pela
Rota, foi até o endereço suspeito. Segun-
do o relatório da pm, ele e sua equipe
foram recebidos a bala por dois homens.
Os atiradores não acertaram ninguém,
mas um deles foi alvejado duas vezes.
Um dos tiros atingiu o lado esquerdo do
tórax, causando ferimentos fatais no co-
ração e no pulmão. O segundo atirador
fugiu. O morto era Leandro Sampaio
Fernandes, de 31 anos. Não há informa-
ção sobre sua ficha policial.

 
Um dos soldados sob comando de
Derrite descreveu assim o que aconte-
ceu: “Estava de serviço [...] pelo interior
da favela do Sambaiatuba onde, segundo

 a denúncia, eram comercializadas drogas
tipo maconha e cocaína e os traficantes
do local portavam armas, inclusive de
grosso calibre. A equipe deparou com
dois indivíduos saindo do interior de uma
viela, ambos de arma em punho e que
um deles passou a efetuar disparos de
arma de fogo contra os policiais.”

 
Um segundo soldado, também sob
comando de Derrite, depôs em separado
e descreveu a cena com as mesmíssimas
palavras: “Estava de serviço [...] pelo inte-
rior da favela do Sambaiatuba onde, se-
gundo a denúncia, eram comercializadas
drogas tipo maconha e cocaína e os tra-
ficantes do local portavam armas, inclu-
sive de grosso calibre. A equipe deparou
com dois indivíduos saindo do interior de
uma viela, ambos de arma em punho e
que um deles passou a efetuar disparos
de arma de fogo contra os policiais.”

 
A prática do “copia e cola” aparece
em pelo menos cinco depoimentos, in-
clusive no do próprio Derrite, e a frase
original foi extraída do relatório inicial
da ocorrência. O oficial encarregado do
caso achou que os policiais se comporta-
ram corretamente e reforçou sua conclu-
são com uma observação: “Não há, até o
momento, comoção popular que depre-
cie a atuação dos policiais militares.”

 
27 DE JULHO DE 2010, TERÇA-FEIRA_
 

Numa ronda noturna da Rota, Derrite e
três soldados disseram ter se deparado
com um Kadett preto usado em um assal-
to a uma loja de informática naquele mes-
mo dia. Havia dois homens no carro. Eles
tentaram fugir, bateram na parede de um
restaurante e desceram do veículo atiran-
do. Não acertaram nem a viatura. O mo-
torista, Claudionor da Silva, de 24 anos,
levou três tiros. O outro, Expedito Henri-
que Pinheiro, da mesma idade, levou dois.
Todos atingiram órgãos vitais, incluindo o
coração. Os dois foram reconhecidos no
iml pelo dono da loja. O motorista passou
pela Fundação Casa. Expedito Pinheiro

egundo o delegado do caso, “seria pessoa
procurada pela Justiça”.

 
Nunca ficou esclarecido por que os
assaltantes usaram um carro que estava
no nome da mulher de um deles, sem
recorrer a uma placa clonada. Nem por
que, depois do assalto, ficaram rodando
com o mesmo carro no bairro onde ha-
viam praticado o crime.

 
O Ministério Público entendeu que “as
condutas praticadas pelos policiais milita-
res encontram-se acobertadas pela legíti-
ma defesa, causa de excludente de ilicitude
[...], obstando o ingresso de ação penal”.

 
20 DE MAIO DE 2011, SEXTA-FEIRA_ 

Durante um patrulhamento de rotina na
Zona Leste da capital paulista, Derrite e
colegas avistaram um carro roubado ha-
via poucas horas. O motorista Michel
Deivid da Cruz não obedeceu à ordem
de parar, bateu em outro veículo e des-
ceu atirando, sem acertar em nenhum
alvo. Enquanto isso, seus dois comparsas
escaparam a pé. Cruz levou três tiros,
com ferimentos no coração, no pulmão
direito, nas alças intestinais e na lombar.
Sua ficha incluía seis atos infracionais e
acusações de corrupção de menores,
ameaça e lesão corporal. Tinha 24 anos.

 
No Inquérito Policial Militar (ipm), o
oficial concluiu pela “existência de exclu-
dentes de ilicitude na ação dos policiais
militares, uma vez que repeliram injusta
agressão efetuada pelos meliantes.” De-
pois desse episódio, Derrite foi obrigado a
frequentar aulas sobre direitos humanos e
consultar-se com um terapeuta do Progra-
ma de Acompanhamento a Policiais Mili-
tares Envolvidos em Ocorrências de Alto
Risco, entre 24 de maio e 19 de junho.

 
9 DE NOVEMBRO DE 2011, QUARTA-
FEIRA_

É o caso que abre esta reporta-
gem. Acionado por telefone, Derrite e
equipe foram até a casa no Jardim Ar-
poador que estava sendo assaltada por
três jovens. O dono do imóvel, rendido no
portão, e outras quatro pessoas viraram
reféns. Quando a polícia chegou, os la-
drões soltaram todos e tentaram fugir.
O dono da casa indicou a rota de fuga,
pelo telhado de uma edícula nos fundos.
Nove policiais chegaram ao local, seis en-
traram na casa, Derrite entre eles. Disse-
ram que Nevito Ferreira dos Santos, de
17 anos, disparou contra eles. No revide, o
assaltante levou três tiros. Em seguida,
segundo os policiais, Marcelo Barbosa
Soares, também de 17 anos, não obedeceu
à ordem de soltar a pistola e atirou. Levou
dois tiros. Josivan Soares dos Santos, de
20 anos, disparou quatro vezes contra os
policiais. Não acertou nenhuma vez e le-
vou quatro tiros. Os três, de acordo com os
laudos necroscópicos, morreram de “he-
morragia interna traumática aguda”. To-
dos tinham histórico de furto ou roubo.

 
O promotor Rogério Leão Zagallo pe-
diu o arquivamento do inquérito sob o
argumento de que “as vítimas morreram
porque atiraram contra os policiais mili-
tares”. E arrematou: “Morreram de for-
ma justa. Afinal de contas, são bandidos .

Guilherme Derrite não foi denun-
ciado por nenhum dos homicídios.
Numa noite de maio de 2012, um
pequeno comboio de viaturas da
pm de São Paulo se dirigiu para o
estacionamento da Barracuda, uma casa
noturna na Zona Leste de São Paulo. Ali,
funcionava um lava-rápido, onde inte-
grantes do Primeiro Comando da Capital
(pcc), a organização criminosa que se
espalhou pelo país, fariam uma reunião.

 
O encontro destinava-se a planejar o res-
gate de um criminoso que seria transferi-
do de São Paulo para uma prisão em
Presidente Venceslau, a 215 km da capi-
tal. A Rota, sabendo do plano, montou
uma estratégia para prender os bandidos
durante a reunião. Derrite pediu para co-
mandar a operação. Foi uma catástrofe.

 
Depois de um intenso tiroteio, o saldo
foi macabro: seis homens mortos e três
policiais presos, sob a suspeita de torturar
e matar um homem que, escondido sob
um caminhão, viu e ouviu tudo o que
aconteceu. Segundo a versão oficial, a
testemunha, Anderson Minhano, de
31 anos, foi colocada numa viatura para
ser levada ao hospital. No caminho, a
viatura parou para que o cabo Levi Cos-
me da Silva Júnior aliviasse “as câimbras
e as pernas dormentes” – e, ali, no km 4
da Rodovia Ayrton Senna, com a viatura
no acostamento, a testemunha “caiu no
chão”. Ninguém sabe se Minhano, que
pertencia ao pcc, chegou vivo ou morto
ao hospital. Tinha quatro tiros no peito.
A Testemunha Alpha – assim conhe-
cida porque entrou no programa de pro-
teção e manteve o anonimato – conta
outra história. De sua janela, Alpha viu o
Minhano ser torturado. Ligou para o 190
e fez uma denúncia. O telefonema foi
gravado. No início da conversa, Alpha
disse que “o cara tava vivo, viu?” e, em
seguida, relatou que os policiais pisavam
sobre sua cabeça e, depois, colocaram o
corpo na viatura. No telefonema, Alpha
já intuía que o homem fora assassinado.
“Só Deus na vida desse homem, viu, pra
sobreviver pra contar a história”, disse.

 
Além do cabo Cosme, havia outros
dois policiais na viatura: o sargento Carlos
Aurélio Nogueira e o soldado Marcos
Aparecido da Silva. Os três foram presos
para responder à acusação de tortura e
assassinato. Um mês depois, foram soltos
e, mais tarde, acabaram absolvidos. Du-
rante a prisão dos três, Derrite não parti-
cipou da vaquinha que os militares fazem
quando algum colega é detido – e, assim,
impedido de fazer os bicos que comple-
mentam a renda familiar. O sargento No-
gueira, por exemplo, prestava segurança
para o publicitário e apresentador Rober-
to Justus. “Além de não pagar a vaquinha,
Derrite viajou com a família para a Dis-
ney”, diz Igor Andrij, ex-soldado da Rota.
Em seu depoimento durante a inves-
tigação do episódio, Derrite contou que
a operação envolveu 24 militares. Disse
que ele próprio fez apenas “três dispa-
ros”, mas não informou se atingiu ou
matou alguém. Na mesma noite da car-
nificina, Derrite ficou recolhido dentro
de uma sala na Corregedoria da pm
para que ele não se comunicasse com
os militares acusados de torturar e ma-
tar Minhano, nem acompanhasse os
depoimentos. Só foi autorizado a sair da
sala ao meio-dia do dia seguinte.

 
O inquérito investigou Derrite, mas
não consta da certidão criminal que ele
entregou ao Tribunal Superior Eleitoral
quando do registro de sua candidatura
a deputado. Por esse motivo, o Caso
Barracuda não está na contabilidade
dos dez homicídios – se estivesse, só
aqui, a conta total dos homicídios em
intervenções das quais Derrite partici-
pou subiria para dezesseis. No entanto,
o Caso Barracuda entrou para a crônica
policial como exemplo de um completo
fracasso, do ponto de vista militar e dos
direitos humanos, e ajudou a encerrar a
carreira de Derrite. Ele foi afastado do
patrulhamento e, menos de dois meses
depois, foi convidado a deixar a Rota.
Seus superiores entenderam que sua
letalidade era alta demais.

 
Em entrevista a um canal do YouTu-
be em 2021, o próprio Derrite falou so-
bre a razão de sua saída da Rota. “Porque
eu matei muito ladrão. A real é essa,
simples. Pá! Tive muita ocorrência de
troca de tiro, eu ia para cima, entendeu?
Quem vai para cima, está sujeito. Tro-
quei tiro várias vezes, e uma atrás da
outra. Acabou incomodando, não sei
quem, mas veio a ordem de cima para
baixo, questão política: ‘Tira o Derrite
da Rota.’ E fui convidado a me retirar.”
Mas nem os dez homicídios oficiais,
nem a catástrofe do Caso Barracuda
surpreendem um criminoso que cum-
pre uma pena centenária na Penitenciá-
ria de Tremembé.

 
Entre junho e agosto de 2019, Wallace
Oliveira Faria, condenado a 102 anos
por cinco mortes e seis tentativas de
homicídio, prestou dois depoimentos à
Defensoria Pública do Estado de São
Paulo, no presídio de Tremembé. Fez de-
núncias gravíssimas. Confessou que fora
matador de um grupo de extermínio que
se chamava Eu Sou a Morte e disse que
atuava com conhecimento e aval de um
tenente chamado Guilherme Derrite.

 
Faria foi preso aos 23 anos e – consi-
derando que na época de sua conde-
nação ninguém ficava mais de trinta
anos na prisão (hoje são quarenta) – ga-
nhará a liberdade, em tese, quando tiver
53 anos, a menos que faça uma delação
para reduzir a pena. É um criminoso
confesso, executava seus alvos com tiros
pelas costas, no rosto. Suas denúncias
podem ter sido exageradas apenas para
fazer um acordo de delação e, quem
sabe, arrancar algum benefício. Ele mes-
mo escreveu à piauí: “Eu preciso de aju-
da [...] para tentar baixar a minha pena.
[...] Já estou há quinze anos preso e não
vou aguentar ficar mais quinze.”

 
Em seus depoimentos à Defensoria
Pública, aos quais a piauí teve acesso,
Faria contou que, entre 2001 e 2002
começou a trabalhar como entregador
de uma pizzaria em Osasco, onde pms
do 14º Batalhão prestavam segurança
privada. Nesse serviço, aproximou-se de
alguns policiais e, em 2005, acabou ad-
mitido na pm como soldado temporário,
uma função que deixou de existir. De-
veria se limitar às tarefas administrati-
vas, sem acesso a armas, nem direito de
exercer o poder de polícia.

 
Faria, no entanto, ganhou autoriza-
ção velada para extrapolar suas funções.
“Embora eu não fosse policial, eu usava
farda, portava arma da corporação e an-
dava em viatura oficial”, disse. (Em car-
ta à piauí, Faria anexou um punhado de
fotos. Numa delas, está usando o unifor-
me de educação física dos soldados e
cabos da pm, ao lado de uma viatura. Em
outra, aparece na companhia de seis po-
liciais. Todos, Faria inclusive, usam a
farda da corporação, com capacete na
cabeça, cinturão atravessando o peito e
mosquetão nas mãos.) Em 2006, ano em
que se encerrou seu período como solda-
do temporário, Faria passou a trabalhar
exclusivamente para os policiais que fa-
ziam segurança privada. Nessa época, o
grupo de extermínio Eu Sou a Morte
entrou em ação, na esteira de uma onda
de atentados promovidos pelo pcc.

 
De acordo com a denúncia de Faria,
o grupo de extermínio era integrado por
policiais de dois batalhões da pm em
Osasco – o 42º e o 14º. No final de 2006,
pouco depois do início das atividades do
grupo de matadores, Derrite entrou para
o 14º Batalhão, onde ficou até o fim de
2009. Quando chegou, tinha 21 anos e
assumiu o Pelotão de Rádio Patrulha,
um coletivo que faz policiamento pre-
ventivo e atende demandas pelo 190.

 
À Defensoria Pública, Faria disse que
matou “umas vinte pessoas”. O grupo
executava suspeitos de pequenos furtos
para proteger os estabelecimentos comer-
ciais aos quais dava segurança, mas tam-
bém executava pessoas com antecedentes
criminais e, sobretudo, dependentes de
drogas. Faria descreveu o funcionamento
das execuções. Disse que o grupo esco-
lhia a vítima e voltava à companhia para
colocar jaqueta preta, capuz ou touca e
capacete. Depois, saíam com a moto par-
ticular de Faria, sem placa, ou com o car-
ro de alguns deles, para localizar a vítima
previamente escolhida. Feita a execução,
o grupo voltava à companhia, Faria era
liberado e os policiais, agora fardados e
em viaturas, saíam para atender a ocor-
rência como se não soubessem de nada.
Faria confessou que, na maioria dos
casos, ele próprio foi o autor dos dispa-
ros, mas disse que não agia sozinho. Ci-
tou o nome de 25 policiais militares,
entre soldados, cabos, sargentos e o te-
nente Guilherme Derrite. “Tudo o que
a gente ia fazer avisava o Derrite. Ele ti-
nha comando total”, disse. Em outro
trecho do depoimento, afirmou: “O te-
nente Derrite sabia desse meu ‘trabalho
informal’ e dava apoio. Eu falava com
frequência com ele pelo [meu] número
8258-xxxx no período de 2008 e 2009. Às
vezes, eu ligava para o motorista dele.”
(Como as operadoras de telefone não são
obrigadas a guardar os dados depois de
cinco anos, o registro das ligações pode
estar perdido. A piauí confirmou que o
número citado pertencia a Faria.)

 
Em outubro do ano passado, a piauí
mandou uma carta perguntando se Fa-
ria mantinha as acusações dos depoi-
mentos à Defensoria Pública. No dia
1º de novembro, ele enviou uma longa
carta à revista em que manteve as de-
núncias. Em cartas subsequentes, deu
detalhes sobre a suposta atuação de
Derrite. “Ele e outros policiais, nos dias
de serviço, levantavam o endereço de
ladrões, traficantes, pontos de tráfico etc.,
e selecionavam as vítimas, passavam para
eu e outros pms que estavam de folga fa-
zer as execuções. Depois, ele mesmo ia
até o local das execuções colher alguma
informação e, como sempre, alterar o
local do crime para dificultar a perícia.
Ele que era o líder, ordenava onde as via-
turas tinham que ficar e, quando ia acon-
tecer alguma execução, ele tirava as
viaturas dos bairros para facilitar o servi-
ço. Tudo era combinado antes.” E com-
pletou: “Os homicídios aconteciam só na
noite em que o tenente Derrite era o co-
mandante. [...] Ele dava as ordens e orga-
nizava as execuções.”

 
Até prestar os depoimentos à Defen-
soria Pública, Faria mandou cartas para
todas as autoridades possíveis revelando
detalhes do grupo de extermínio, acu-
sando Derrite e se oferecendo para fazer
um acordo de delação. Mandou cartas
para o Conselho Nacional do Ministé-
rio Público, para a Procuradoria-Geral
da República, para o Supremo Tribunal
Federal. A primeira carta-denúncia, en-
viada em setembro de 2018, quando
Derrite era candidato a deputado pela
primeira vez, chegou às mãos do delega-
do Francisco Pereira Lima. O delegado,
que está lotado há mais de vinte anos na
Delegacia de Homicídios de Osasco e
foi o autor da prisão de Faria quase dez
anos antes, mandou a carta-denúncia
para o Ministério Público, que, por sua
vez, ouviu Faria por vídeo.

 
Foi seu primeiro depoimento. A pro-
motora de Osasco, Helena Bonilha de
Toledo Leite, acompanhou. Ela rememo-
ra: “Eu pedi provas, mas ele não apresen-
tou nada de significativo nesse sentido.”
De fato, o depoimento de Faria foi tímido.
Numa das cartas à piauí, ele explicou a
razão. Para fazer a videoconferência, ele
fora conduzido até o fórum de Taubaté,
escoltado por policiais militares, que fica-
ram na porta, de onde talvez pudessem
escutar o depoimento. “Não consegui fa-
lar nada. Tinha policiais na sala ouvindo.”
Mesmo assim, considerando a gravida-
de das acusações, a promotora Helena Lei-
te acionou o Gaeco, o grupo do Ministério
Público especializado no combate ao cri-
me organizado, para avaliar a possibilidade

de abrir uma investigação preliminar.

 
O Gaeco achou que não havia elementos
suficientemente fortes que justificassem
uma apuração e entendeu que, decorrido
tanto tempo dos acontecimentos, era “ex-
tremamente improvável” que encontras-
sem provas. Diante disso, o Gaeco não
entrou no caso. Inconformado, Faria co-
meçou então a disparar cartas-denúncia
até que foi ouvido pela Defensoria Pública.
Em dezembro de 2019, depois de co-
lher os dois depoimentos de Faria, os de-
fensores públicos fizeram um documento
genérico, pedindo ao Ministério Público
que abrisse negociações para uma dela-
ção. Disseram que, no acordo de colabo-
ração, Faria pretendia “detalhar todos os
crimes de que participou, apresentando
provas que permitam a efetiva persecu-
ção de todos os autores”. Depois disso, os
defensores enviaram um novo documen-
to, com mais detalhes, mas a promotoria
continuou achando bastante genérico.

 
“As provas nunca chegaram”, diz a
promotora Helena Leite. “A palavra do
denunciante não é suficiente. E não cabe
ao Ministério Público correr atrás de pro-
vas para um eventual acordo de colabo-
ração premiada que beneficiaria o preso.
Isso é papel do advogado”, diz ela, frisan-
do que, mediante qualquer avanço em
termos de prova, a investigação será
aberta. Faria não tem advogado parti-
cular e, estando preso, tampouco dispõe
de meios para reunir provas. E denuncia:
“Estão tentando colocar panos quentes.
Estão tentando me calar, pois eles sabem
que eu sou um arquivo vivo.”

 
A piauí ouviu seis autoridades que tive-
ram envolvimento com o caso do grupo
de extermínio em Osasco. Todas pediram
o anonimato, e nenhuma considerou que
o relato de Faria traga incongruências
gritantes – embora nenhuma das autorida-
des consultadas tenha qualquer informa-
ção objetiva sobre a suposta participação
de Derrite no grupo de matadores. Desde
2007, circulam notícias sobre esse grupo.
No dia 21 de setembro daquele ano, por
exemplo, a Folha de S.Paulo publicou
uma reportagem dizendo que a lista das
pessoas assassinadas tinha “mais de 40
nomes”, que as “circunstâncias apontam
a ação de um grupo de extermínio for-
mado por policiais militares em Osasco”
e que boa parte das vítimas tinham “an-
tecedentes criminais, segundo testemu-
nhas que afirmam ter ouvido ameaças
dos próprios pms”.

 
A mesma reportagem informava que
os policiais suspeitos integravam o 14º e
o 42º Batalhão da pm. Os crimes ocorre-
ram num período que coincide com o
tempo em que Derrite já trabalhava em
operações de rua. A reportagem ainda
dizia que os policiais agiam encapu-
zados e se intitulavam Eu Sou a Morte.
(O nome do grupo, segundo Faria, veio
de um episódio em que um sobrevivente
declarou que o atirador, antes de dispa-
rar, perguntou: “Você conhece a mor-
te?” E, sem esperar a resposta, o próprio
atirador respondeu: “Eu sou a morte.”)

 
Procurado pela piauí, o secretário de
Segurança Pública não quis dar entrevista
e preferiu responder às perguntas por escri-
to. Em um e-mail, a reportagem pergun-
tou se Derrite conhecia Wallace Faria; se
sabia de sua tentativa de fazer uma dela-
ção premiada; se poderia informar sua
escala de plantão no período em que tra-
balhou no 14º Batalhão em Osasco; se
ouvira falar do grupo de extermínio Eu
Sou a Morte e o que tinha a dizer sobre a
acusação de que ele próprio comandava as
ações dos matadores. A nota não responde
às indagações e limita-se a dizer o seguin-
te: “O secretário de Segurança Pública,
Guilherme Derrite, lamenta que as acusa-
ções infundadas, colocadas a partir da
denúncia de um criminoso que cumpre
pena neste momento, tenham espaço".

Em julho de 2022, os pais do soldado
Patrick Bastos Reis se mudaram de
Santa Maria, no Rio Grande do Sul,
para a capital paulista. Queriam ficar mais
perto do filho único, que estava feliz atuan-
do na Rota, e do neto de 2 anos. O casal
não se adaptou bem a São Paulo e, meses
depois, se mudou para o interior do esta-
do. “Eu estava assistindo televisão e recebi
uma ligação de uma pessoa próxima da
família me informando”, lembra Cláudia
Reis, mãe do soldado. A informação era de
que seu filho havia sido assassinado.
Patrick Bastos Reis, o soldado Reis, ti-
nha 30 anos. Foi baleado entre o ombro
e o braço, no Guarujá, litoral de São Pau-
lo, onde a Rota fazia um patrulhamento,
na noite de 27 de julho do ano passado.

 
A bala atravessou o tórax e atingiu seus
pulmões e a aorta ascendente. Morreu na
unidade de saúde em que foi socorrido.
Sua morte desencadeou a mais mortífera
operação da pm paulista desde o massa-
cre de 111 presos no presídio do Carandi-
ru. Desde julho do ano passado até o
fechamento desta edição, no fim de abril,
outros três policiais – dois soldados e um
cabo – haviam sido assassinados, e a pm
havia realizado operações que resulta-
ram numa conta assombrosa e, talvez,
até subnotificada: 84 mortos.

 
Um dos soldados mortos, Samuel
Wesley Cosmo, de 35 anos, foi baleado
durante uma patrulha em Bom Retiro,
em Santos. Morreu no hospital. O assas-
sino fugiu. O mesmo soldado Cosmo
vinha sendo investigado havia seis me-
ses sob a suspeita de ter forjado um tiro-
teio para justificar o assassinato de um
homem que vivia em situação de rua.
Quando o Ministério Público finalmen-
te apresentou a denúncia contra Cosmo
(e outros dois colegas da Rota), o soldado
já estava morto com um tiro no rosto.
Era a nova rotina selvagem da Baixada
Santista desde a morte do soldado Reis:
mata-se hoje, morre-se amanhã.

 
Entre as 84 vítimas dos militares no
litoral paulista, estão um deficiente visual
(que teria mirado um fuzil nos policiais
e foi morto em cima de uma cama), um
homem paralítico (que teria disparado
uma arma enquanto se sustentava sobre
as muletas), um jovem destroçado (que
levou oito tiros de fuzil nas costas) e uma
mulher de 31 anos, mãe de seis filhos (que
foi atingida na cabeça por uma bala per-
dida). Samira Bueno, diretora do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, colheu
histórias do massacre: “Teve corpo que
foi retirado do mangue. Há suspeita de
que pelo menos sete homens foram en-
terrados como indigentes.” Enquanto
isso, pms comemoravam as mortes no
Instagram, enfeitando os posts com emo-
jis de caixão. “A operação proporcionou
mortes instagramáveis, de gente pobre,
preta e vulnerável, que servem para mui-
tos policiais postarem e ganharem segui-
dores e likes”, diz Cláudio Aparecido da
Silva, ouvidor da polícia de São Paulo.

 
A vingança da pm começou na sexta-
feira, dia seguinte à morte do soldado
Reis. “No fim de semana, recebemos li-
gações de moradores sem entender o que
estava acontecendo”, lembra Fernanda
Balera, coordenadora do Núcleo de
Cidadania e Direitos Humanos da De-
fensoria Pública de São Paulo. Na se-
gunda-feira, representantes da Ouvidoria
da Polícia e da própria Defensoria desce-
ram para o litoral a fim de tomar pé da
situação. Balera conta que, ao chegar no
Guarujá, já soube que a revanche seria
sangrenta. “Ouvi que seriam ao todo
trinta pessoas mortas, uma para cada
ano de vida do soldado Reis”, diz ela.

 
A maioria das vítimas que foram iden-
tificadas tinha histórico de envolvimento
com tráfico de drogas e passagens pela
polícia por pequenos furtos e roubos. Al-
gumas viviam em barracos de palafitas
nas favelas do litoral. Quase todas eram
desempregadas ou se sustentavam fazen-
do bicos. A maioria, como sempre acon-
tece nas matanças policiais, eram jovens
e negros. Com base no perfil da maior
parte das vítimas, Samira Bueno conclui:
“É um devaneio o governo justificar as
ações dizendo que as vítimas são inte-
grantes do alto-comando de facção crimi-
nosa. Elas viviam em situação de miséria.”

 
Até hoje, a Secretaria de Segurança
Pública mantém a versão de que a ope-
ração não era vingança contra a morte
dos policiais, mas fazia parte de um
plano prévio destinado a asfixiar a ven-
da de drogas na região portuária, con-
trolada pelo pcc. Depois de 84 mortos,
a pm prendeu 2 mil pessoas, apreendeu
240 armas e quase 3,6 toneladas de dro-
gas. Os especialistas dizem que o volu-
me de droga apreendido até agora é de
pouco mais de 5% do que o pcc despa-
cha por ano pelo Porto de Santos. (Em
paralelo a isso, o Gaeco, do Ministério
Público, com trabalho de inteligência,
desferiu um ataque duro contra o pcc
ao desbaratar duas empresas de ônibus
que faturavam mais de 800 milhões de
reais e vinham sendo usadas pela orga-
nização criminosa para lavar dinheiro
do tráfico de drogas. A pm apoiou a ope-
ração. Não precisou dar um único tiro.)

 
A operação no Guarujá também des-
pertou suspeitas no campo das relações
nebulosas. Conforme revelou o repórter
Marcelo Godoy, de O Estado de S. Paulo,
o empresário José Vicente Santini, hoje
assessor do governador, associou-se com
seu irmão Nelson Santini numa empresa,
a CampSeg, que presta serviços de segu-
rança à linha férrea da Baixada Santista,
região onde a matança aconteceu. Segun-
do mensagens de WhatsApp divulgadas
pelo Estadão, a CampSeg acionava pms
para zelar pela segurança dos seus clien-
tes. Vicente Santini, que deixou a Camp-
Seg em 2019, tornou-se conhecido ao ser
demitido (e depois recontratado) no gover-
no Bolsonaro pelo uso de um avião da fab
para voar da Suíça à Índia. Seu irmão
Nelson, ex-vereador em Campinas, conti-
nua na CampSeg. Ele fez a maior doação
financeira individual para a campanha de
reeleição de Derrite: 88 655 reais.

 
A fúria sangrenta da pm não trouxe
consolo para a mãe do soldado Reis. As-

 sim que soube da morte do filho, pediu

a um comandante da Rota, cujo nome
ela não quis identificar, que o enterro
fosse em Santa Maria, onde fica o jazigo
da família. O oficial negou o pedido,
em razão de uma regra segundo a qual
o corpo precisaria ficar pelo menos cin-
co anos enterrado no mausoléu da pm,
no Cemitério do Araçá, em São Paulo.
(A regra não existe, mas, abalada com a
perda do filho, Cláudia não teve energia
para pesquisar sobre o assunto.) Ouviu
que um helicóptero da pm buscaria a
família no interior para comparecer ao
velório na capital. “Mas daí ninguém
mais ligou. Eu peguei uma carona para
não perder o enterro do meu filho.”
 
O sepultamento tornou-se um grande
ato político, com a presença do governa-
dor Tarcísio de Freitas e do secretário
Guilherme Derrite. Encerrada a ceri-
mônia fúnebre, Cláudia diz que nunca
mais teve contato com a pm. “O Derrite
nunca se deu ao trabalho de me ligar”,
lamenta ela. Depois que soube que a re-
gra dos cinco anos era invenção, Cláudia
começou a procurar um advogado para
transferir os restos mortais do filho pa-
ra Santa Maria. Ela diz que não tem sido
informada sobre o andamento das inves-
tigações. “Fiquei sabendo pela imprensa
que a bala que atingiu o meu filho não
veio da arma apreendida pela polícia”,
disse. De fato, um laudo comprovou que
o disparo que matou o soldado Reis partiu
da pistola Taurus modelo pt 92 af,
apreendida pela polícia.
Quando a polícia informou que Erick-
son David da Silva, de 28 anos, apontado
como autor do disparo que matou o sol-
dado, havia se entregado à polícia, o
governador Tarcísio comemorou a prisão
do “sniper do tráfico”. Pode ter sido pre-
cipitação. Afinal, o exame residuográfico
posterior não detectou a presença de pól-
vora nas mãos de Erickson da Silva, o que
não é suficiente para descartá-lo como
autor do disparo, mas deixa a suspeita de
que depois de 84 mortes e 2 mil presos, é
possível que o “sniper do tráfico” conti-
nue à solta. Apesar de ter se entregado,
Silva nega ter atirado contra o soldado.
No dia 8 de março, num evento em
comemoração ao Dia da Mulher, Tarcí-
sio voltou a falar sobre a matança. Ques-
tionado sobre as denúncias de execução,
abusos e falhas na investigação, Tarcísio
começou defendendo as operações: “Sin-
ceramente, temos muita tranquilidade
com relação ao que está sendo feito.”
Mais adiante, irritado com as cobranças,
disse a frase que ficará colada à sua bio-
grafia: “Aí o pessoal pode ir na onu, na
Liga da Justiça, no raio que o parta que
eu não estou nem aí.” A tropa aplaudiu.
“O que estamos vivendo no
Guarujá é lamentável, mas é
o cenário que nós encontra-
mos”, disse o secretário Derrite
em entrevista à Jovem Pan, ao
comentar as ações no litoral paulista. A
matança, pela dinâmica e pela dimen-
são, tornou-se um divisor de águas na
violência policial. De lá para cá, as
ações da pm ficaram mais truculentas e
o uso das câmeras de segurança no uni-
forme passou a ser boicotado. Em 2019,
a pm matou 697 pessoas. Em 2020,
quando três batalhões ganharam as pri-
meiras câmeras corporais, o número
caiu para 662. Em 2021, o equipamento
chegou a quinze batalhões, incluindo a
Rota, e o número baixou para 442. Em
2022, com dezenas de batalhões usan-
do câmeras, o índice de letalidade poli-
cial desabou: 260 mortes. 
“A situação piorou neste ano com exe-
cuções sumárias, torturas e episódios de
violência contra idosos e crianças”, afir-
ma Bueno, a diretora do Fórum Brasilei-
ro de Segurança Pública. “Os boletins de
ocorrência deixaram de identificar se os
policiais portavam câmeras ou o bata-
lhão a que pertencem. A maior parte dos
casos não teve perícia. Eu recebi um lau-
do necroscópico que sequer identificava
quantos tiros a pessoa levou”, diz ela. Em
um caso examinado pelos promotores,
identificou-se que o policial havia ligado
e desligado a câmera do uniforme mais
de cinquenta vezes para consumir a bate-
ria o mais rápido possível. Bueno prosse-
gue: “No ano passado, a polícia dizia que
as câmeras estavam descarregadas. Neste

ano, nao hove nenhuma informação

sobre a ausência das imagens.”
A piauí teve acesso a um apanhado de
28 boletins de ocorrência, lavrados entre
julho do ano passado e março. Em apenas
um, há informação de que os policiais es-
tavam usando câmeras corporais. Os de-
mais boletins nem mencionam o assunto
ou, quando o fazem, é para dizer que nin-
guém estava equipado com o dispositivo.

 
O sinal de que a situação pode se
manter – ou piorar – aconteceu no dia
21 de fevereiro, quando Derrite promo-
veu uma mudança radical no comando
da pm: afastou 34 coronéis, sem aviso
prévio. Eles ficaram sabendo da notícia
pelo Diário Oficial. Entre os afastados,
estão os coronéis José Alexander Freixo,
número 2 da corporação, Alexandre César
Prates, coordenador operacional da pm, e
Edson Luís Simeira, corregedor da pm.
No começo da matança no Guarujá, os
três estavam de férias. Quando voltaram
ao trabalho, se reuniram com o coman-
dante-geral da corporação, Cássio Araú-
jo de Freitas, para pedir moderação e
apelar para que apenas policiais com
câmeras nos uniformes participassem da
operação. Os apelos foram ignorados.
Quando a primeira fase da matança se
encerrou, ainda no ano passado, as inves-
tigações da pm empacaram. As Comis-
sões de Mitigação de Riscos, que devem
ser abertas cada vez que um policial se
envolve em uma ação letal, foram proto-

 




colares. Todos os policiais seguiram suas
atividades nas ruas, sem suspensão tem-
porária. Os ipms também foram instaura-
dos apenas para cumprir tabela. O trabalho
foi tão malfeito que a Justiça Militar re-
cebeu 28 inquéritos e mandou devolver
18, pedindo que fossem refeitos.

 
A Corregedoria da pm, então ainda
sob a chefia do coronel Simeira, se en-
carregaria de refazer os ipms. Dias de-
pois, com a dança das cadeiras dos 34
coronéis, Simeira foi removido do cargo
e deslocado para a Coordenadoria de
Assuntos Jurídicos. Incomodado com a
transferência, pediu afastamento e foi
para a reserva. No lugar dele, Derrite
nomeou Fábio Sérgio do Amaral, res-
ponsável pelo Comando do Policiamen-
to de Choque, que atuou na matança do
Guarujá. O chefe do setor de inquéritos
da Corregedoria, tenente-coronel Fabia-
no Batista do Prado, também foi removi-
do. Até agora, os ipms não foram refeitos.
Em outra mudança relevante, mas me-
nos visível, Derrite colocou o cientista
político João Henrique Martins, um ex-
tenente especializado em segurança pú-
blica para a iniciativa privada, no comando
de um órgão estratégico de sua secretaria:
o Centro Integrado de Comando e Con-
trole (cicc), cuja função é analisar dados
para criar projetos de segurança. O cicc
tem acesso aos boletins de ocorrência,
mas, assim que assumiu, Martins pediu
para também acessar o Infocrim, o mais
valioso sistema de informações da polí-
cia, cujo banco de dados é sigiloso. Além
de mapear a criminalidade, o Infocrim
acompanha a produtividade do trabalho
policial. O chefe do Centro de Inteligên-
cia da pm, João Luís Minghetti Costa, não
autorizou o acesso. Havia o temor dentro
da corporação de que os dados pudessem
ser fornecidos a empresas privadas. Min-
ghetti Costa está entre os 34 coronéis que
foram removidos de sua função.

 
O cicc de Martins expandiu seus po-
deres no âmbito financeiro. Pela primeira
vez na história quase bicentenária da pm
paulista, a Diretoria de Logística deixou
de ser a única responsável pelas licitações
para insumos da corporação. Em dezem-
bro do ano passado, já coube ao cicc
promover três leilões para comprar viatu-
ras (23,6 milhões de reais), quadriciclos
(4,4 milhões) e coletes balísticos (2,6 mi-
lhões). “Causa preocupação que Martins,
um oficial afastado e de baixa patente,
sem a competência necessária para co-
mandar um órgão sensível como o cicc,
esteja agora com essas atividades, ainda
mais tendo trabalhado como consultor de
segurança no setor privado”, afirma José
Vicente da Silva Filho, coronel da reserva
da pm e ex-secretário nacional de Segu-
rança do Ministério da Justiça.

 
Desde que assumiu seu cargo no go-
verno paulista, em janeiro de 2023, Derri-
te deu sinais de que também pretendia
afrouxar os controles internos da polícia.
Antes de completar um mês no cargo, ele
defendeu a ação de uma patrulha da Rota
que disparou 28 vezes contra um Honda
Fit, sob a justificativa de que seus três ocu-
pantes iriam fazer um assalto na Rua da
Consolação, na região central de São Pau-
lo. Matou dois. As câmeras dos quatro
agentes da Rota não registraram a ação,
mas uma câmera da estação mais próxima
do metrô gravou a cena. Nela, o sargento
Vinícius de Sena Santos aparece tirando
um objeto de sua farda e colocando debai-
xo do corpo de uma das vítimas. Estava
plantando uma arma para simular que
houve reação a tiros. Com 28 disparos, dois
mortos e uma arma plantada, a ação não
rendeu nenhuma punição aos policiais.

 
No segundo mês no cargo, Derrite can-
celou a punição contra quinze agentes da
Rota, que estavam afastados do serviço de
patrulha em razão do alto índice de mor-
tes. A medida foi comemorada pela tropa.
Dois dias antes de transferir os 34 coronéis,
Derrite fez outro movimento: perdoou
cerca de cinquenta policiais militares que
também estavam afastados do serviço de
rua devido à alta letalidade. Os beneficia-
dos trabalham em diferentes cidades pau-
listas. Derrite colocou todos de volta às
ruas, atropelando o trabalho da Correge-
doria em casos que remontavam a 2018.

 
De acordo com um coronel bem posi-
cionado na corporação, a pm registrou o
número mais baixo de policiais expulsos e
demitidos no ano passado, o que pode ser
um sinal do enfraquecimento da Correge-
doria. “Uma cultura organizacional que
estava sendo construída ao longo dos anos,
em respeito à legalidade, foi dinamitada
logo de cara. O recado é claro: a polícia
tem autorização para matar. Está tudo do-
minado”, avalia um coronel que pediu
para ficar no anonimato porque ainda está
na ativa. No início de julho do ano passa-
do, duas semanas antes do assassinato do
soldado Reis, o comandante da pm, Cássio
de Freitas, divulgou um vídeo nas redes
sociais depois que um tenente aposentado
foi vítima de latrocínio. Mandou uma
mensagem aos policiais: “Não hesite em
utilizar a legítima defesa a seu favor.”
Na campanha de 2018, Guilherme
Derrite se aproximou de Eduardo
Bolsonaro. Na época, os dois eram
candidatos a deputado federal e percor-
riam o interior de São Paulo em campa-
nha. Pediam votos para eles e para Jair
Bolsonaro. Deu certo: Jair Bolsonaro foi
eleito, Eduardo foi o deputado mais vo-
tado do estado e Derrite ganhou seu
primeiro mandato, com 119 mil votos.

 
Três meses depois da posse, foi escolhi-
do vice-líder do governo na Câmara.
Cumpriu seu papel. Empenhou-se
em afrouxar as regras para o porte legal
de armas para fazendeiros e guardas mu-
nicipais, lutou contra o isolamento so-
cial durante a pandemia de Covid,
propôs o fim da visita íntima nos presí-
dios e levantou a bandeira do fim da
saidinha dos presos, projeto que
acabou de ser parcialmente
aprovado. Na campanha de
2022, candidatou-se à reelei-
ção – venceu com o dobro
de votos do pleito anterior
– e aproximou-se de Tarcí-
sio de Freitas, então candi-
dato ao governo paulista.
Tarcísio convidou Derrite
para fazer o “plano de se-
gurança pública” de sua
gestão e colocá-lo em prá-
tica, caso fosse eleito.

 
Derrite fez um plano genérico, pro-
pondo usar “tecnologia de ponta”, inte-
grar “bases de dados de interesse policial
disponíveis nos níveis federal, estadual e
municipal” e combater o crime organi-
zado “sem trégua”. Com a vitória de Tar-
císio, ele renunciou ao mandato de
deputado e virou secretário de Seguran-
ça. Sua posse não foi bem recebida. Era
jovem demais (38 anos), inexperiente
(nunca tivera cargo de gestão), militar
(rivalizava com a Polícia Civil) e tinha
baixa patente (tenente, só virou capitão
ao se aposentar). Seus antecessores eram
procuradores de Justiça, general de Exér-
cito, professor de direito, como o atual
ministro Alexandre de Moraes, do stf.
Tecnicamente mais qualificados, não
tinham ligação com qualquer uma das
polícias, cuidado que os governadores
paulistas tomavam para não estremecer
uma relação sempre tensa.

 
Assim que assumiu, Derrite tentou
neutralizar eventuais problemas com a
Polícia Civil e escolheu Osvaldo Nico
Gonçalves para secretário executivo da
pasta. Nico é policial civil, tem mais de
trinta anos de experiência, bom trânsito na
corporação e apoio dos delegados. Com
isso, Derrite afagou a Polícia Civil e pôde
se dedicar ao que realmente gosta – a área
militar. O assassinato do soldado Reis,
ocorrido cerca de sete meses depois de sua
posse, serviu como uma luva para colocar
na rua a sua estratégia. Em entrevista ao
podcast Inteligência Ltda, Derrite admitiu
isso: “O caso do Guarujá foi o momento
em que o estado mostrou como iria se or-
ganizar contra o crime organizado.”

 
A inquietação da Polícia Civil, no en-
tanto, veio à tona mesmo assim. Há pou-
co, Derrite obteve o aval do governador
para que a pm possa registrar e colher de-
poimentos de crimes de menor potencial,
com pena de até dois anos de reclusão.
São os chamados Termos Circunstancia-
dos de Ocorrência (tcos). Até o momento,
esse papel é exclusivo da Polícia Civil, que
não está gostando da possibilidade de
compartilhar seus poderes com a outra
força. Em mensagem encaminhada aos
“prezados comandantes” à qual a piauí
teve acesso, Cássio de Freitas, comandan-
te-geral da pm, comemorou a novidade
que favorece a sua corporação. Disse que
“há uma campanha de desinformação
em curso” e garantiu que “a relação entre
as polícias nunca esteve tão próxima”. Não
era bem assim. A Polícia Civil protestou
alto, e Derrite foi obrigado a recuar e ins-
talar uma comissão para discutir o
projeto controverso.

 
A Polícia Civil também
não gostou de ser excluída
daquela operação que des-
baratou as empresas de
ônibus que lavavam di-
nheiro do pcc. Depois
disso, no bojo da investi-
gação do caso em que o
condutor de um Porsche
provocou um acidente
que matou um motorista
de aplicativo, a Polícia Ci-
vil entrou na Justiça exigindo que a pm
entregasse as imagens captadas pelas
câmeras corporais dos policiais. Com
tudo isso, açulando uma disputa entre
duas corporações, Derrite e o governador
estão, nas palavras de um juiz da Justiça
Militar que pediu o anonimato, “virando
a pirâmide de cabeça para baixo”.

 
“Há mensagens sutis de que a polícia
tem autorização para matar”, avalia o
advogado Rafael Alcadipani, professor
de gestão e políticas públicas que acom-
panha a violência policial. “A começar
por um governador que manda recla-
mar na Liga da Justiça e um secretári

e Segurança com um histórico de leta-
lidades.” Alcadipani diz que a razão de
tudo está no populismo penal da necro-
política. “Esse é o principal da história:
ganhar votos. Funciona à semelhança
do Império Romano, quando as pessoas
iam assistir gente ser arremessada aos
leões. Agora, a população deseja que a
polícia mate mesmo.”

 
Na avaliação de Bruno Paes Manso,
jornalista e pesquisador do Núcleo de
Estudos da Violência da usp, “Derrite
está fazendo em São Paulo uma coisa
semelhante ao que Bolsonaro fez em
Brasília, quando politizou as Forças Ar-
madas. Depois que ele deixou o poder,
viu-se a dimensão do estrago, que levou
vários oficiais à investigação”. Segundo
ele, “Derrite está prestigiando oficiais
por afinidades ideológicas com sua his-
tória de violência e truculência. Está
fazendo uma leitura de segurança públi-
ca do passado, apostando na violência
como sinônimo de ordem”. Manso pros-
segue: “Com isso, ele está rachando a
polícia. Uma série de oficiais está indig-
nada. Havia um esforço com instalação
de câmeras nos uniformes e a criação de
uma comissão de letalidade, que vinha
dando resultados. Tudo isso está indo
por água abaixo.” Um dado grave que
não deve ser ignorado: no ano passado,
a pm paulista registrou o maior número
de suicídios de sua história. Foram 32,
dos quais 20 estavam no serviço ativo.

 
No e-mail que enviou ao secretário, a
piauí reuniu um total de 24 perguntas. En-
tre elas, além de mencionar a denúncia do
matador do grupo de extermínio, a revista
incluiu questões sobre o perfil das vítimas
nas operações realizadas na Baixada San-
tista, a ausência de câmera corporais, a
remoção dos coronéis, o perdão aos poli-
ciais que haviam sido retirados das ruas, os
ipms incompletos, a anunciada queda de
30% nos roubos de carga. 

Segue a íntegra a nota da assessoria de Derrite:
A linha de atuação adotada pelo secre-
tário à frente da pasta é baseada na asfi-
xia financeira do crime organizado com
ações que desarticulem a cadeia ilícita.

 
As forças de segurança do estado de
São Paulo são instituições legalistas que
operam estritamente dentro de seu dever
constitucional, seguindo protocolos ope-
racionais rigorosos, não sendo tolerados
excessos, indisciplina ou desvios de con-
duta. Todos os casos de morte decorrente
de intervenção policial são rigorosa-
mente investigados pelas polícias Civil
e Militar, com o acompanhamento do
Ministério Público e do Poder Judiciário,
que inclusive têm acesso às imagens das
câmeras corporais portáteis utilizadas
pelos PMs envolvidos nas ocorrências.

 
O confronto não é uma escolha dos
policiais, mas uma reação à ação violenta
de criminosos nas operações de combate
ao crime organizado. O compromisso das
forças de segurança é com a preservação
da vida, por isso medidas para reduzir as
mortes em confronto são permanente-
mente avaliadas e adotadas. Temos inves-
tido em treinamento do efetivo, aquisiç

e equipamentos não letais e demais ini-
ciativas voltadas ao aperfeiçoamento dos
agentes de segurança, inclusive com o uso
do método Giraldi. Somado a isso, o pro-
grama de câmeras corporais segue em
operação, inclusive está em andamento
uma licitação para a contratação de mais
três mil dispositivos para serem acoplados
às viaturas. Atualmente, 10 125 câmeras
corporais estão disponíveis, abrangendo
52% dos policiais do território paulista.

 
As operações de combate ao crime or-
ganizado realizadas na Baixada Santista,
entre 28 de julho e 5 de setembro de 2023
e a partir de 3 de fevereiro deste ano, resul-
taram na prisão de importantes lideranças
do tráfico de drogas na região. Entre elas,
Karen Tanaka Mori, conhecida como
“Japa”, responsável por lavar dinheiro de
uma facção criminosa; Caio Vinicius,
apelidado de “Nego Boy” e acusado de li-
derar o tráfico de drogas na comunidade
onde o soldado Cosmo foi morto; Patinho,
executor de uma série de assassinatos a
mando dos criminosos, entre outros. Além
destes, mais de mil criminosos foram pre-
sos pelas forças de segurança, dentre os
quais 438 procurados pela Justiça; tam-
bém foram retiradas das ruas 119 armas
de fogo ilegais e cerca de uma tonelada de
drogas, gerando prejuízos significativos às
atividades criminosas na região.

 
Em relação aos roubos de carga, as
políticas públicas adotadas têm se mos-
trado eficientes, possibilitando uma redu-
ção de 17,8% no número de ocorrências
em todo o território paulista nos dois me-
ses deste ano, em comparação com igual
período do ano passado. Quanto à Baixa-
da Santista, houve a queda de 8%, no
bimestre. Temos envidado esforços por
meio das nossas forças policiais para com-
bater este tipo de delito com uso de inteli-
gência, tecnologia e operações integradas.
(Aparentemente, por um equívoco, a
assessoria de Derrite contabilizou pri-
sões e apreensões de armas e drogas
ocorridas apenas de dezembro do ano
passado em diante. Somando-se os resul-
tados divulgados pela própria Secretaria
em relação às operações realizadas antes
de dezembro, os números são aqueles
que apareceram antes nesta reportagem:
2 mil prisões, 240 armas e 3,6 toneladas
de drogas. Quanto ao roubo de cargas, o
secretário anunciara queda de 30%, mas
a nota corrigiu para 17,8%.)

 
O governador Tarcísio de Freitas já
disse e desdisse o que pensa sobre as câ-
meras corporais. Afirmou que não ti-
nham nenhuma relevância para a
segurança da população, depois disse
“não estou nem aí” quanto às preocupa-
ções sobre a violência policial e, por fim,
falou que o uso das câmeras poderia até
ser ampliado na sua gestão. Agora, em
resposta a uma consulta feita pelo mi-
nistro Luís Roberto Barroso, presidente
do stf, prometeu implementar o equi-
pamento até setembro deste ano.

Filho do meio de um casal de classe
média de Sorocaba, no interior de
São Paulo, Guilherme Muraro
Derrite queria ser engenheiro ou dentis-
ta. Às vésperas de prestar o vestibular, viu
uma foto do seu pai dos tempos em que
cumpriu o serviço de Tiro de Guerra e se
interessou. Conversou com um amigo da
família, que cursava a Academia de Polí-
cia Militar do Barro Branco, a instituição
que forma militares em São Paulo e cujo
ingresso se dava por meio de vestibular.
Da conversa saiu convencido de que de-
veria tentar a carreira militar, mas foi re-
provado no teste psicotécnico. No ano
seguinte, tentou de novo e conseguiu.
Na academia, localizada na capital
paulista, conheceu sua futura mulher
Iara Maria de Oliveira, hoje capitão da pm
e lotada na Casa Militar do governador.

 
O casal, que teve dois filhos, planejava
retornar para o interior, mas Derrite aca-
bou indo para o 14º Batalhão de Osasco.
Apaixonou-se pelo ofício, desistiu de vol-
tar para o interior e começou a sonhar em
ser membro da Rota. Por volta de 2009,
foi rejeitado porque seu currículo de ho-
micídios era farto demais. No ano seguin-
te, conseguiu a ajuda de um amigo,
Rafael Telhada, filho do então coman-
dante da Rota, o coronel Paulo Adriano
Telhada. Na época, o coronel Telhada
estava atrás de policiais para endurecer o
combate ao crime. E abriu as portas para
Derrite. O sonho durou pouco. Derritw

tinha menos de três anos na Rota quando
deixou a tropa depois do Caso Barracuda.

 
O próprio coronel Telhada estimulou
Derrite a tentar a carreira política. A essa
altura, ele já era conhecido do público
pelas entrevistas à imprensa e pela presen-
ça nas redes sociais. Nos tempos da Rota,
tornou-se figura frequente nos programas
policialescos da Band e da Record. Che-
gou a ser estrela de um reality show poli-
cial, Operação de Risco, exibido pela
Redetv!, que mostrava incursões da Rota
pelas ruas de São Paulo. Nas redes sociais,
tinha milhares de seguidores. “Tenho cer-
teza absoluta de que eu fui eleito graças à
rede social”, disse, numa entrevista a um
podcast. Derrite é considerado o candi-
dato de Tarcísio para o Senado, mas já se
especula que, se o governador não dispu-
tar a reeleição, seu nome pode aparecer
para o governo do estado.

 
Fã do falecido Olavo de Carvalho, o
ex-astrólogo que funcionava como guru
ideológico da família Bolsonaro, Derri-
te afirma que o “marxismo cultural”
trata os bandidos como vítimas da so-
ciedade. Católico e temente a Deus, ele
se diz um “conservador” e tem opiniões
previsíveis para alguém que se alinha
com a direita radical – é a favor da pri-
são perpétua, do fim das câmeras nos
uniformes dos policiais e do porte de
arma de fogo para defesa pessoal.
Derrite diz que é contra a pena de
morte. J

PIAUI     





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