As duas recentes operações da Polícia Militar de São Paulo na Baixada Santista — a “Operação Escudo”, concluída em setembro de 2023, e a “Operação Verão”, desencadeada em dezembro e oficialmente encerrada no início de abril deste ano — já são vistas como as mais sangrentas desde o massacre de Carandiru (1992). A primeira deixou um saldo de 28 civis mortos em quarenta dias; a segunda, 56 mortos — 77, pelas contas do Ministério Público. As operações podem explicar o total de 179 casos de pessoas mortas por policiais no primeiro trimestre deste ano, um crescimento de 138% em relação aos 75 casos do mesmo período em 2023.
Enquanto se realizavam, choviam denúncias de excessos de todo tipo, desde a prática de tiroteio indiscriminado, o que resultou em várias mortes “por atacado”, até o apagamento de provas de ações ilegais, com endosso das instâncias governamentais superiores. Dado que essas operações selvagens começaram ou se intensificaram logo após a morte de soldados que atuavam na região — um deles pertencente à Rota, a famosa tropa de elite (e assassina) da PM —, é difícil não ver nelas o ímpeto da pura e simples vingança.
Além disso, são evidências muito claras da nova política impressa pela Secretaria de Segurança Pública do estado, sob a batuta do deputado federal (licenciado) bolsonarista Guilherme Derrite, conhecido como “Capitão Derrite”: não só dar carta branca aos efetivos da PM para a prática de “atirar primeiro e só perguntar depois”, mas garantir que ela não seja atrapalhada por questionamentos incômodos e pedidos de investigação, para que assim permaneça impune. Ainda em fevereiro deste ano, após rumores de desconforto a respeito da orientação adotada por seu secretário de Segurança Pública, o governador decidiu substituir o número 2 da PM e vários outros membros da cúpula da corporação por novos comandantes, supostamente mais afinados com a “modernização” pretendida por Derrite. E como prova de seu pleno e entusiasmado apoio, quando perguntado sobre uma denúncia pública elaborada por entidades da sociedade civil, em vias de ser encaminha a fóruns internacionais, Tarcisio de Freitas respondeu com desdém: “pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”. (E.T.: segundo matéria publicada pelo jornal O Globo em 28/4/2024, ele teria admitido em privado que havia errado a mão na resposta, mas até agora nenhuma declaração pública nesse sentido saiu de sua boca.)
As falas do governador, chocantes que sejam, estão longe de serem casuais. Durante seu primeiro ano de mandato, a imprensa mainstream tem destacado as tensões no seu relacionamento com a base bolsonarista e seu padrinho-mor. Elas de fato existem, no que tange as alianças com a direita, dita “civilizada”, que integra seu governo — em especial o grupo liderado pelo ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, cujo partido (o PSD) compõe em Brasília a base de apoio ao governo Lula — e as manobras táticas que qualquer governador é obrigado fazer para garantir recursos federais e facilitar sua vida no dia a dia administrativo. Ambas, contudo, em nada atenuam o núcleo substantivo que tem guiado as políticas do novo governo estadual.
Inspirado na onda autoritária de extrema direita que assola o país, esse núcleo costura diversas áreas da ação administrativa, em particular no campo social. Vejam, por exemplo, o projeto de lei que o governador encaminhou à Assembleia Legislativa, em março passado, criando o “Programa Escola Cívico-Militar”. Ele propõe que um certo grupo de escolas da rede estadual, após consulta pública, passe a ser administrado em conjunto pela Secretaria de Educação e pela Secretaria de Segurança Pública. A ideia, lançada alguns anos atrás, já é bem conhecida. Trata-se de promover as noções de disciplina e zelo patriótico cultivadas pelas Forças Armadas, desta feita sob os auspícios de oficiais aposentados da PM paulista.
Medidas como essa, cujo teor ideológico mal se disfarça, misturam-se com outras, de aparência mais neutra e pragmática, as quais, no entanto, revelam o mesmo ímpeto para desqualificar o que há de melhor no trabalho acumulado pelos profissionais da educação e da cultura. A lembrar que, no ano passado, o secretário de Educação, Renato Feder, tentou substituir os livros didáticos adotados na rede pública por material digital — numa palavra, resumos dos conteúdos escolares apresentados por slides em PowerPoint. A indignação da opinião pública foi tamanha que o secretário se viu em seguida obrigado a recuar. Tais iniciativas soam até ridículas, mas, inscritas num pacote mais amplo, dizem muito do projeto político dessa gestão: submeter a padrões rebaixados e hiperautoritários todos os aspectos da vida cotidiana ao alcance do governo estadual, em particular os mais sensíveis à grande parcela desamparada da população.
Sem dúvida, de todo esse pacote, o mais alarmante é o que vem sendo feito no campo da segurança pública, forte candidata a “joia da coroa” da gestão, por dois motivos. Primeiro porque, mesmo se adicionam, como já se estão adicionando, doses maciças de barbárie à barbárie pré-existente, é uma política altamente popular. Basta observar as recentes pesquisas de opinião que avaliam o governo estadual — como a Pesquisa Quaest, publicada em meados de abril, que registrou 62% de aprovação a seu desempenho —, a despeito (ou talvez por isso mesmo) do macabro rasto de sangue deixado pelas operações policiais na Baixada Santista. Segundo, porque esse apelo à repressão desenfreada da parte dos aparelhos de segurança estatais ocupa um vácuo deixado pelos partidos e movimentos progressistas nesse terreno, até aqui incapazes de, no governo, pôr em prática políticas alternativas com impacto efetivo. Não que as abraçadas pelo extremismo de direita venham a resolver de fato a situação. Mas isso pouco lhe importa: uma vez que essas políticas visam desacreditar as instituições democráticas e uma constituição política fundada em direitos, o espetáculo midiático das incursões punitivas nas periferias das grandes cidades, acompanhadas de violência indiscriminada e aos borbotões, é mais do que suficiente.
Os espetáculos, no entanto, não foram inaugurados em São Paulo. Desde que Tarcísio de Freitas era candidato a governador, uma blague se espalhou contra ele: se eleito, faria em São Paulo o que tem sido feito há décadas na PM fluminense. A atuação nas áreas de favela é semelhante: violência indiscriminada contra população preta e pobre, sempre em nome da "guerra às drogas", fazendo da figura do traficante o inimigo de estado a ser combatido a qualquer preço, inclusive de baixas civis, sempre apresentadas como um mal necessário. Aos poucos, a naturalização do assassinato por parte dos policiais fez incorporar na gramática até mesmo de setores progressistas frases como "fulano foi morto e nem era bandido", numa autorização implícita e oculta para que as mortes continuem acontecendo. A estrutura de vingança é exatamente a mesma, com um recurso permanente à criminalização de comunidades inteiras. Rocinha, Complexo da Maré, Jacarezinho e Cidade de Deus são só alguns dos lugares nos quais a PM entra atirando para matar e, em seguida, exibir no noticiário armas, munições e drogas apreendidas.
A lógica de uma guerra funciona perfeitamente para manter ativa a militância de extrema direita cuja máxima “bandido bom é bandido morto” promoveu, no verão, as operações de comitês de justiceiros na praia de Copacabana, em que moradores do bairro saíram às ruas com o ímpeto de fazer justiça com as próprias mãos. Coibir a circulação de pessoas negras, torná-las alvo de violência policial, é parte do jogo de naturalização dos assassinatos destas pessoas.
Se São Paulo é hoje o que o Rio de Janeiro tem sido há tanto tempo, em parte é também pela sustentação da ideia de que existe um “estado paralelo” — não por acaso, tanto na Baixada Santista quanto nas favelas cariocas, os traficantes — que precisa ser combatido com a mão ainda mais firme do Estado. No Rio de Janeiro, o resultado das investigações da execução da vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes comprovam que não há nada de "paralelo" — cuja definição é de impossibilidade de encontro. A participação no crime de um delegado de Polícia Civil, um deputado federal e um conselheiro do TCE indicam que a tal mão do Estado só é firme contra os vulneráveis porque subserviente aos poderosos.
Se a violência policial em São Paulo e no Rio de Janeiro estão no noticiário nacional em sua forma espetacular e repetitiva, pouco se fala sobre os assassinatos cometidos pela PM na Bahia, em que dois governos consecutivos do PT bateram recordes de letalidade policial em 2022 e 2023 (em 2022, último ano da gestão de Rui Costa, foram 1.468 pessoas mortas, número que subiu para 1.689 em 2023, já início do mandato de Jerônimo Rodrigues).
Segue-se, afinal, uma tradição de brutalidade que, ao longo do tempo, não foi exclusividade de um só estado da federação. Nem de um só país. Se a persistente popularidade de Paulo Maluf, governador de São Paulo no início dos anos 1980, tinha como um de seus fundamentos a violência policial, hoje o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, alcança aprovações astronômicas graças à sua política de assassínio sistemático e de aberta afronta às garantias individuais.
Foram, são e serão populares; simetricamente, a esquerda democrática parece arcar com um alto custo eleitoral quando procura simplesmente seguir uma orientação humana e sensata ao tratar das questões de segurança. Para lembrar o clichê, um programa responsável nesse campo pode não apresentar nenhuma solução mágica. Mas não é apenas o problema real que precisa ser combatido. É também de uma resposta simbólica, de uma bandeira, de uma pedra-de-toque, de uma investida no campo ideológico, que se necessita. O fascismo explora as baixas emoções da vingança, do ódio, do preconceito e do ressentimento. Não deveria ser tão difícil, do lado oposto, falar em luta pela paz e pela justiça…
REVISTA ROSA
ilustração Pedro França
No comments:
Post a Comment