June 4, 2024

Ficção é o último bastião da liberdade, mas está em crise, diz Muriel Barbery

 Mulher branca fala ao microfone que segura com a mão direita

 

 Daniel Salgado

O Diabo está por todas as partes: nas guerras, na crise climática e no retorno do autoritarismo político. Principalmente, está na mentira, na erosão do diálogo, do conhecimento e da compreensão mútua. E a única arma para combatê-lo é a reflexão compartilhada —ou seja, a literatura de ficção.

Foi isso que defendeu a escritora Muriel Barbery na noite desta segunda-feira (3) em sua palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento. Para a francesa, o Diabo é sinônimo do que descreveu como a tendência atual à polarização, aos antagonismos paranoicos, ao imediatismo e às ilusões identitárias.

"Ele impõe as imagens, quer propor um discurso sem alternativas, um relato pronto e simplista do mundo. A verdade não importa mais", argumentou a autora de livros como o best-seller "A Elegância do Ouriço" e, mais recentemente, "Uma Hora de Fervor".

Assim, em um mundo bombardeado por imagens violentas, polêmicas e desinformação, o Diabo é quem limita "a capacidade de entender o que vivemos".

Mesmo na França, terra "das luzes, da enciclopédia e da revolução", o debate deixou de existir. "Quase ninguém consegue ouvir o outro", desabafou a romancista. Para Barbery, que se inclui neste quadro, o que prevalece é a vontade de se ter razão, a raiz de uma "doença do pensamento".

Os efeitos são nocivos: o aumento dos conflitos armados após "décadas de promessas de paz perpétua" e das rupturas políticas, ecológicas e sociais. Uma sociedade hiperconectada e hipertecnológica incapaz da "compreensão e alteridade".

É nesse cenário que o romance literário surge como "o pior inimigo do Diabo", explicou Barbery. "A ficção de literatura é o que talvez possa salvar o real das más ficções. Ela requer que cada um crie suas próprias imagens, gerando uma ruptura. É o espírito da complexidade."

Para a autora, que tem formação na filosofia, a literatura oferece aos leitores um antídoto contra as "ditaduras do mesmo, do idêntico e da vaidade", se tornando "porta-voz da resistência dos nossos tempos".

Segundo Barbery, isso acontece porque os romances permitem ao leitor se colocar no lugar dos personagens através de sua própria imaginação. "Ele diz que as coisas são mais complicadas do que o leitor pensa", argumentou a autora, parafraseando o escritor tcheco Milan Kundera.

Por meio de outra citação, desta vez ao argentino Ernesto Sabato, a francesa buscou definir o que torna a ficção especial: "no mundo moderno, abandonado pela filosofia e fracionado por centenas de especializações científicas, o romance é o último observatório de onde se pode abarcar a vida humana como um todo".

Mas esse "último bastião da liberdade" está em crise, indicou Barbery. Primeiro, pela queda de faturamento do mercado editorial de ficção literária pelo mundo. É um fruto do que a romancista chamou de mercantilização da cultura, "que mata a diversidade" em favor de obras que exigem menos concentração e esforço.

"Os romancistas fazem votos para desaparecer atrás do seu ficcional e permitem habitar completamente o personagem e esquecermos quem somos. Isso não é possível com personagens de filmes, que têm uma realidade física que nos distingue deles. Não os habitamos da mesma forma", argumentou.

De outro lado, o foco da crítica contemporânea em privilegiar os aspectos "políticos e sociais" da literatura seria mais um retrato da crise. Para Barbery, o romance é feito para "perfurar a muralha do tempo e evitar a ditadura do julgamento". Ou seja, não deveria ser apenas avaliado por sua relação com o presente, mas com as grandes questões da experiência humana em geral.

té o contato com os leitores tem sido diferente, destacou a autora. Eles se mostram cada vez mais preocupados em simpatizar e concordar com os personagens ficcionais, chegando ao ponto de borrar as fronteiras entre as suas falas e as opiniões pessoais dos autores.

No fim, apontou Barbery, a questão é se a queda do romance literário é causa ou sintoma da sociedade tomada por narrativas únicas e cada vez mais totalitárias. E, ressaltou, não será ele o responsável por virar o jogo sozinho.

"Não tenho remédio mágico para propor, nenhuma esperança de derrotar o Diabo. Jamais um romance vai parar uma guerra", disse Barbery. Ainda assim, "o mundo que não tem mais leitura de ficção é um mundo perdido".

FOLHA

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