Por Ana Flávia Gussen...
“O nosso modus operandi é o mesmo. A última vez que esse bando do MST e da esquerda vieram nos visitar, querer conversar com a gente no meio do mato, foram parar no inferno. Então, Lula, mande a sua turma falar com a gente de novo, e vocês vão visitar os seus amigos que estão lá”, discursou, no plenário da Assembleia Legislativa do Paraná, Washington Lee Abe, conhecido como Coronel Lee, policial militar e deputado estadual. Dias antes da involuntária confissão de um crime (ou o parlamentar acha legítimo emboscar militantes no matagal?), o deputado federal Junio Amaral, do PL de Jair Bolsonaro, gravou em vídeo outro recado para o ex-presidente petista. “Vou esperar vocês lá, tanto a sua turma quanto você. Vai lá conversar com a minha esposa, com a minha filha, tá bom? Vocês serão muito bem-vindos”, ameaçou o parlamentar, enquanto municiava sua pistola dentro de um carro.
Ao todo, cinco deputados bolsonaristas, de diferentes regiões do País, publicaram nas redes sociais ameaças explícitas contra Lula, quase sempre ostentando armas de fogo. O líder petista foi intimidado por sugerir, em um evento com sindicalistas, que os movimentos sociais deixassem de fazer protestos na porta do Congresso Nacional, em geral inócuas, e passassem a organizar atos nas cidades onde os parlamentares moram. “Se a gente mapeasse o endereço de cada deputado e fossem 50 pessoas… Não é para xingar, não, é para conversar com ele, conversar com a mulher dele, conversar com o filho dele, incomodar a tranquilidade dele. Eu acho que surtiria mais efeito do que a gente vir fazer manifestação em Brasília”, sugeriu o ex-presidente, líder do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC no apogeu da ditadura. Foi o que bastou para as milícias digitais bolsonaristas, insufladas pelos jagunços do Legislativo, semearem o ódio na internet.
As ameaças contra a vida do ex-presi-
dente são parte de uma nova fase da vio-
lência política brasileira, que sofreu esca-
lada com o golpe em 2016 e atingiu níveis
alarmantes desde a eleição de Jair Bolso-
naro. Em março do ano passado, o verea-
dor de Fortaleza José Alberto Júnior, co-
nhecido como Inspetor Alberto, foi con-
denado a pagar uma irrisória indeniza-
ção de 5 mil reais após divulgar um ví-
deo, no qual aparecia efetuando dispa-
ros de arma de fogo contra uma fotogra-
fia de Lula. Há tempos, a presidente do PT,
Gleisi Hoffmann, tem denunciado uma
prática que virou moda em clubes de ti-
ro: usar imagens do líder petista como al-
vo para aperfeiçoar a mira. Na memória, a
sombria lembrança do atentado contra a
caravana de Lula em maio de 2018, quan-
do pistoleiros emboscaram um dos ôni-
bus do comboio entre Quedas do Iguaçu e
Laranjeiras do Sul, no interior do Paraná.
Apesar da presença de jornalistas no veí-
culo atingido pelos disparos, a mídia deu
mínima cobertura ao ataque. Pela região
havia numerosos outdoors em apoio ao en-
tão candidato Jair Bolsonaro.
Lula não é, porém, o único político a so-
frer os efeitos do aumento da violência po-
lítica no Brasil, que tem como pano de fun-
do a presença cada vez maior de policiais e
militares nos Legislativos, o incentivo do
governo federal ao armamento da popula-
ção civil e a proliferação dos discursos de
ódio nas redes sociais, impulsionadas por
contas falsas (leia mais à pág. 14). De acor-
do com um levantamento feito pelas ON-
Gs Terra de Direitos e Justiça Global, a ca-
da 13 dias ocorreu um ataque contra a vida
de um representante político entre 2016
e 2020. Ao todo, foram 125 atentados e 85
ameaças de morte (gráfico à pág. 12). O ápi-
ce da violência foi em 2020, ano de eleições
municipais, quando houve um ataque a ca-
da três dias. Mas temos tudo para bater um
novo recorde neste ano. Como se nota, não
faltam voluntários para riscar o fósforo e
acender o pavio dos explosivos.
Os assassinatos de Marielle
Franco, vereadora do
PSOL, e de seu moto-
rista, Anderson Gomes,
em março de 2018, são
considerados um trágico e gravíssimo
marco da violência política brasileira. A
cada queima de arquivo, troca de dele-
gados e procuradores responsáveis pelas
investigações, a pergunta “quem mandou
matar Marielle?” ainda ressoa, até mesmo
nas paredes do Palácio do Planalto. “O as-
sassinato da Marielle foi um marco inicial,
mas não único, num contexto de ofensiva
reacionária no País”, afirma o presidente
nacional do PSOL, Juliano Medeiros.
Nos últimos quatro meses, ao menos
12 casos de violência política ganharam
destaque na mídia, revela um levanta-
mento feito por CartaCapital. Recente-
mente, o vereador Neiriberto Martins
Erthal, do PSC, sacou uma arma para in-
timidar um colega da Câmara Municipal
de Querência, em Mato Grosso. Em no-
vembro, Sargento Novandir, do Republi-
canos, tirou o cinto de suas calças e ame-
açou “dar no couro” de outro vereador
de Goiânia. Três meses depois, o ex-PM
voltou a protagonizar uma cena insóli-
ta, desta vez pedindo para colegas açoitá-
-lo com um cinto por ter sido “enganado”
pela prefeitura na votação de um proje-
to que aumentou a cobrança do IPTU. O
estranho fetiche do policial pode parecer
caricato, mas a mensagem passada à po-
pulação é de que as controvérsias podem
ser resolvidas pela força. Mesmo na Câ-
mara Federal, tornaram-se comuns ce-
nas constrangedoras de deputados se ga-
bando do poder de fogo de suas armas.
Não por acaso, especialistas consul-
tados por CartaCapital acreditam que as
eleições deste ano podem ser as mais vio-
lentas desde o fim da ditadura, e apontam
as razões dessa preocupação. “Hoje, o Bra-
sil é um país muito diferente das eleições
de 2018, justamente pelo aumento do nú-
mero de civis armados. Ao mesmo tempo,
cresce a incitação à violência por parte de
lideranças bolsonaristas, uma postura
autoritária que afronta os instrumentos
democráticos”, afirma o advogado Ivan
Contente Marques, pesquisador do Fó-
rum Brasileiro de Segurança Pública.
Mestre em Relações Internacionais pe-
la Unicamp e em Direitos Humanos pela
London School of Economics and Political
Science, no Reino Unido, ele alerta ainda
para um aumento da pressão de milícias
contra eleitores nas comunidades.
Desde que assumiu o governo, Bolso-
naro publicou mais de 30 portarias, ins-
truções normativas e decretos para faci-
litar o acesso dos civis às armas de fogo,
algumas delas cassadas por determina-
ção do Supremo Tribunal Federal. Com
isso, o Brasil quadruplicou o número de
novas armas registradas a cada ano. Se-
gundo dados da Polícia Federal, o núme-
ro de registros passou de 51 mil, em 2018,
para 202,5 mil no ano passado. O verti-
ginoso crescimento vem no embalo dos
CACs, sigla usada para designar os cole-
cionadores, praticantes de tiro desportivo
ou caçadores que possuem autorização es-
pecial do Exército para a posse de armas.
Desde 2019, os praticantes de tiro des-
portivo podem, por exemplo, adquirir até
60 armas e os caçadores, 30. Eles também
foram autorizados a comprar até mil mu-
nições por ano para cada arma de uso
restrito. Fuzis e pistolas de calibre 9 mm
e .40., antes de uso exclusivo das Forças
Armadas e das polícias, agora estão libe-
radas. Além disso, é possível comprar até
5 mil munições por ano para cada arma de
fogo de uso permitido por civis, graças a
dezenas de decretos e instruções normati-
vas editadas pelo governo federal, que des-
mantelaram a legislação anterior.
Com a flexibilização, o Exército emitiu
mais de mil novos registros de CACs por
dia. Em 2019, foram emitidos 147 mil re-
gistros e, no ano passado, 388 mil, reve-
lam dados do Instituto Sou da Paz. As no-
vas regras dão um verniz legal à compra
de armas que pode abastecer organiza-
ções criminosas. Segundo especialistas,
99% das armas apreendidas foram legais
em algum momento. Os efeitos são nota-
dos até na balança comercial. Em 2021, o
volume de importações de armas cresceu
33%, alcançando 51,2 milhões
de dólares, segundo dados do
Sistema Integrado de Comércio
Exterior (Siscomex), do gover-
no federal. A compra de revól-
veres e pistolas do exterior te-
ve alta de 12%. Entre fuzis, ca-
rabinas, metralhadoras e sub-
metralhadoras, houve vertigi-
noso aumento de 574%.
O clima de tensão levou par-
tidos do chamado campo pro-
gressista a se prepararem ain-
da mais para o pleito. Na segun-
da-feira 11, o PT acionou a Pro-
curadoria-Geral da República,
a presidência do Tribunal Su-
perior Eleitoral e a Corregedo-
ria do TSE contra Bolsonaro por
incitação ao crime de “abolição
do. Reagirá a qualquer ditador de plantão
que queira roubar a liberdade do seu po-
vo.” Na avaliação do partido, o presiden-
te tenta criar milícias para agarrar-se ao
poder. Os advogados pedem que as decla-
rações do presidente sejam analisadas em
um contexto mais amplo, a envolver as re-
centes ameaças e os repetidos ataques in-
fundados à lisura das urnas eletrônicas.
O senador Girão recebeu ameaças por se opor à
flexibilização ainda maior do acesso às armas
violenta do Estado Democrático de Direi-
to”. As petições foram assinadas em con-
junto pelos escritórios de Eugênio Aragão,
ex-ministro da Justiça de Dilma Rousseff,
e Cristiano Zanin, defensor de Lula.
Recentemente, em viagem ao municí-
pio gaúcho de Passo Fundo, o ex-capitão
vangloriou-se por ter facilitado o acesso a
armas de fogo no País. “Eu sempre digo a
vocês: povo armado jamais será escraviza-
TSE tem a missão de or-
ganizar o processo elei-
toral, mas também de
garantir a segurança
dos candidatos, inclusi-
ve com a requisição de escolta armada à
Polícia Federal. O PT montou uma estru-
tura para receber denúncias de ameaças
e fake news nas redes sociais, que são fil-
tradas e enviadas ao departamento jurí-
dico. Com as ameaças explícitas de parla-
mentares bolsonaristas, há a expectativa
de um reforço na segurança de Lula, mas
o assunto é tratado apenas por um seleto
grupo de aliados. A cautela é necessária.
Conforme revelou o site Intercept Brasil,
os detalhes de uma das viagens de Lula à
Região Sul no início deste ano foram va-
zados para grupos bolsonaristas, que se
organizaram para hostilizar o ex-presi-
dente na agenda.
Preocupado com o cenário, o
grupo de advogados Prerrogati-
vas pretende criar um observa-
tório para monitorar os ataques
e ameaças a candidatos. Para
Marco Aurélio Carvalho, co-
ordenador do grupo, a melhor
forma de enfrentar a narrativa
violenta de Bolsonaro e da ex-
trema-direita é Lula pregar a
paz e defender o Estado Demo-
crático de Direito. “Claro que o
PT e os advogados não vão ficar
sem reação. Tenho conversado
com dirigentes do partido que
garantem que haverá reação
forte e contundente.”
Um dos partidos mais visa-
dos por radicais da extrema
-direita é o PSOL, que há tempos possui
uma secretaria para monitorar os ata-
ques contra seus quadros. Casos como
de Benny Briolli, primeira vereadora ne-
gra e transgênero de Niterói, obrigada a
deixar o Brasil após ser alvo de intimida-
ções, do gaúcho Matheus Gomes, que re-
cebeu oito ameaças de morte, e da minei-
ra Andreia de Jesus, perseguida por de-
nunciar uma ação policial que terminou
com 26 mortos, pululam nos noticiários.
“Temos como protocolo sempre dar
ampla visibilidade aos casos de violên-
cia política. Evidentemente, cada caso
é um caso, mas a melhor forma de ini-
bir quaisquer ameaças é jogando luz so-
bre a situação”, avalia Medeiros. “Nossa
orientação é sempre essa. Além disso, é
preciso acionar as autoridades competen-
tes. Não podemos naturalizar a violência
política como um problema do PSOL. Não
estamos na Colômbia de Pablo Escobar.”
Uma pesquisa realizada pelo
InternetLab e o grupo Azmina mostra
que a violência política tem gênero, idade
e cor. Das 175 candidaturas monitoradas
em 2020, mulheres, LGBTs e negros fo-
ram mais atacados nas redes sociais du-
rante o período eleitoral. “Negra”, “por-
ca”, “gorda” e “burra” são os termos mais
utilizados para insultar as mulheres, en-
quanto os homens são bem menos ataca-
dos e sofrem ofensas de outra natureza.
De acordo com o estudo, cada candidata
chegou a receber até 40 xingamentos por
dia durante a campanha de 2020, sendo as
mais atacadas Joice Hasselmann (rompi-
da com o bolsonarismo), Manuela d’Ávila
e Benedita da Silva. “Quando a violência
política é destinada às mulheres e LGBTs,
há uma grande carga de ofensa moral, di-
recionada a aspectos físicos ou colocan-
do em dúvida a sua capacidade intelectual.
Com os homens, é diferente. Os ataques
concentram-se em supostos casos de cor-
rupção”, explica a antropóloga Fernanda
Martins, diretora do InternetLab.
Grande parte da violên-
cia política é semea-
da nas redes sociais.
Segundo dados da plata-
forma Fortinet Threat
Intelligence Insider Latin America, o
Brasil figura no terceiro lugar do ranking
de nações que mais cometem crimes na in-
ternet. O dado não surpreende os especia-
listas. Poucas nações possuem um chefe
de Estado como Bolsonaro, um desabri-
do defensor de torturadores do regime mi-
litar, sempre instigando os seus radicais
apoiadores a atacar adversários políticos
e até mesmo juízes da Suprema Corte.
Normalmente, os ataques orquestrados
na internet começam a partir de mensa-
gens publicadas pelo presidente, por seus
filhos e aliados mais próximos, que fun-
cionam como uma espécie de dog wistle –
apito de cachorro, que nem todos podem
ouvir, mas é capaz de atiçar a matilha.
Durante a pandemia, Bolsonaro che-
gou a propor que o Ministério da Justiça
liberasse armas de fogo para a população
se insurgir contra as medidas sanitárias
determinadas por governadores e prefei-
tos para deter o avanço da Covid-19. “O de-
bate sobre armas sempre se deu no cam-
po da segurança pública ou das liberdades
individuais. Agora, vemos o deslocamen-
to desse discurso. A arma de fogo passou
a ser vista como um instrumento de ação
política”, alerta Felippe Angeli, do Insti-
tuto Sou da Paz. À narrativa armamentis-
ta soma-se a emergência de políticos liga-
dos às polícias ou às Forças Armadas, co-
mo é o caso do ex-capitão a ocupar o Palá-
cio do Planalto. De 2010 a 2018, o número
de deputados com esse perfil saltou de 4
para 42, uma espantosa alta de 950%, re-
velam dados da entidade.
Nas eleições de 2020, fo-
ram registrados 8,2 mil
candidatos ligados às for-
ças de segurança, 21% a
mais que nas eleições
municipais de 2016. Desse total, 6 mil de-
les eram eleitoralmente identificados por
sua ocupação, assim como o Cabo Junio
Amaral, um dos parlamentares que ame-
açaram receber Lula à bala. “Não somos
contra qualquer pessoa se candidatar.
Mas, no caso de pessoas que ocupam fun-
ções de Estado, o ideal é haver algum tipo
de quarentena, até para evitar o uso polí-
tico das corporações”, sugere Felippe. Não
se trata de mera especulação. Em março
de 2020, durante a greve dos policiais mi-
litares no Ceará, o senador Cid Gomes foi
atingido por um disparo de arma de fogo.
O movimento ilegal contou com a partici-
pação ativa de “policiais-políticos”, ates-
ta um relatório do Sou da Paz.
Há também outro exemplo mais re-
cente do uso das armas como instrumen-
to de pressão política. Empoderados por
Bolsonaro, os CACs estão mobilizados
pela aprovação do Projeto de Lei 3.723,
de 2019, relatado pelo senador Marcos
do Val, do Podemos, a flexibilizar ainda
mais o acesso a munições e armas, além
de reduzir o seu rastreamento – o que
só parece interessar a quem atua fora da
lei. Até então, é do jogo. Qualquer cida-
dão pode pressionar os parlamentares
a votar em projetos de seu interesse. O
enrosco é que os senadores Eduardo Gi-
rão (Podemos), Eliziane Gama (Cidada-
nia) e Simone Tebet (MDB) passaram a
receber ameaças por se oporem à propos-
ta, e a Polícia Legislativa já teria identifi-
cado alguns autores, ligados a clubes de
tiro frequentados por CACs. Girão asse-
gura, porém, não ter se intimidado com
os e-mails assustadores. “Sou completa-
mente contra a flexibilização do porte de
armas. Concordo apenas com a posse pa-
ra defesa, mas nas residências e no co-
mércio. Quanto mais pessoas andando
armadas, maior é o risco de grandes tra-
gédias sociais.” •
CARTA CAPITAL
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