April 9, 2022

A cultura de celebridades

 



 

GAMBA JUNIOR

A cultura da celebridades tem efeitos muito mais nocivos do que apenas o seu lado fútil é risível. A cultura das celebridades é uma nova forma de organizar o sistema social afetando não apenas como vivem esses personagens, mas determinando uma série de modelos simbólicos e pragmáticos para toda a sociedade.

- não existe o conceito de celebridade sem o seu complementar, o de quem é seu espectador ou consumidor e que não faz parte do grupo seleto. Não dá para muita gente ser celebridade. Tem que ser poucos;

- assim, a base da cultura da celebridade é a alta concentração de poder de exibição em mídia e repercussão pública de poucas pessoas. A esse poder se sucedem outras formas de desigualdade: como a concentração de renda, de patrimônio, de oportunidades, de expressão e de influenciar outros grupos;

- apesar dessa concentração de visibilidade ser fundamental no alto contraste entre a celebridade e o resto, ela gera um outro produto, as “subcelebridades”. Uma categoria de indivíduos que parece matizar as fronteiras entre a celebridade e o cidadão comum, mas que, na verdade, é só uma reafirmação do lugar central de privilégios. Pois a subcelebridade é o movimento inútil de um grupo que tenta alcançar a condição privilegiada, mas que só ganha visibilidade pelo patético de sua impossibilidade - confirmando assim, a condição realmente sagrada de ser uma celebridades;

- a ideia de que há pessoas célebres porque fizeram coisas relevantes e outras que o são por nada, apenas por esquemas de agenciamento, parece apontar uma salvação para a cultura das celebridades: selecione melhor quem será uma! Essa perspectiva não tem nada de positiva, é apenas ainda mais sectária. A condição indefensável é a de celebridade por tudo que ela gera de deformação social, e não a maneira como alguém conseguirá ser alçado a esse estrato de privilegiados.

- Na sua essência, o celebrismo ou a cultura das celebridades é uma forma de naturalizar os grandes abismos sociais e justificar as diferenças de classe. Uma nova forma de oligarquia surge com mecânicas próprias de dar à injustiça social um imaginário de conquista liberal, distribuição orgânica de recursos e possibilidades de sonhar com cenários de privilégios;

- apesar de ser uma nova classe paralela à aristocracia quatrocentona e à burguesia empresarial bilionária - ambas muitas vezes anônimas -, pode haver sobreposições. Assim, é possível vermos grandes sobrenomes ou donos de grande empresas se aventurando como celebridades também, mas geralmente são decadentes no primeiro caso ou apenas estão comprando sua condição de célebres com o muito capital que dispõem, no segundo caso;

- apesar de serem três classes de privilegiados que concentram renda de forma distinta e deles poderem se sobrepor, eles se interpenetram. É fundamental o grande capital privado empresarial ou de patrimônio familiar para financiar às celebridades e o seu modelo de acúmulo de renda;

- a diferença básica do enriquecimento das celebridades para os outros dois grupos é que o seu principal capital é a visibilidade. Esse é o seu patrimônio. Essa visibilidade pode ter motivações externas às da mídia de massa (um percurso profissional de sucesso em alguns área), mas logo precisa assumir uma autonomia e ser regida pelas próprias regras internas da sociedade do espetáculo. Assim, aquele médico que se tornou célebre por um livro ou um projeto de grande repercussão, só se torna celebridade quando não são mais esses os fatores determinantes para ser um ídolo pop, mas sim, sua capacidade de fazer as engrenagens do circuito da mídia funcionar;

- a outra grande distorção em relação à celebridade são mitos essencialmente ligados ao neoliberalismo. A visão de que ela ocupa esse lugar por mérito, que prova algum nível de mobilidade social, que deve existir como liberdade do mercado de produzir fortunas financeiras ou simbólicas e de que gera empregos e faz bem ao país ou a um setor por produzir uma imagem positiva dele. Podemos e devemos desconstruir cada um desses itens e, com eles, o combustível ao neoliberalismo que sustenta a cultura das celebridades;

- primeiro, a perspectiva meritocrática é a mais complexa de se desconstruir, porque ao não ter uma condição familiar prévia tão clara como a aristocracia, a celebridade parece reforçar que o sistema de mérito finalmente rege algo. No entanto, nada mais contraditório com a noção de “meritocracia” do que um sistema de concentração de bens ou patrimônio, ainda que seja o da visibilidade;

- na verdade o segundo aspecto é outro ponto que ajuda a desmontar a falácia anterior. Ao problematizar a ideia de que essa condição é boa porque é uma geradora de empregos satélites ao personagem famoso, entendemos que não há sistemas de méritos nesse arranjo. Ao termos alguém que ganha milhões de reais por mês, não é que ela seja de fato um gerador de empregos, ela faz parte de uma cadeia produtiva que explora as demais funções. Se todos os profissionais envolvidos nessa cadeia tivessem carteira assinada, vínculo formal, renda satisfatória e um padrão de vida digno, a celebridade não iria ganhar tanto. Poderia até ser o maior salário da linha de produção, mas não com os valores que encontramos. A conta não fecha. Por isso, ao invés de gerar trabalhos, ela reafirma a injustiça com não de obra explorado;
- logo, como pressupomos que esses profissionais também têm méritos, porém, não são respeitados nessa conta meritós/retorno financeiro, não há meritocracia, mas sim uma aristocracia midiática. Técnicos de som, cabos-man, produtores, montadoras, camareiros, faxineiros ou seguranças são parte dessa horda de gente explorada e subremunerada que na verdade sustenta a concentração de renda e fama de poucos sujeitos. Assim, não adianta que você tenha mérito como produtor, assistente de estúdio ou roadies, pois será majoritariamente explorado;

- não há também mobilidade social alguma. Ainda que poucas celebridades possam ter vindo de uma outra classe social, com toda esses outros profissionais mantidos em condições de subploretariado, fica claro que não há mobilidade. A proporção entre a funkeira que enriqueceu ou o jogador de futebol que ficou bilionário em relação a quantidade de jovens da mesma origem que morrerão miseráveis nessa cadeia produtiva medieval, mostra que não há nada além do que uma profunda concentração de renda que do reafirma a injustiça social. Mobilidade social é um fenômeno expressivo quantitativamente para um grupo. A ascensão individualizada e pouco expressiva numericamenteé justo o oposto: imobilidade social;

- A naturalização da ideia de que é positivo que alguém ganhe 1,5 milhões de reais como a apresentadora na matéria abaixo, ou 5 milhões, como caso de Faustão também citado no texto ou 11 milhões, como Neymar e que isso deve alimentar seu sonho de sucesso é um dos aspectos mais nocivos do capitalismo;

- essa filosofia sai do registro das celebridades e impregna todas as mecânicas de trabalho. É como se todas as relações de produção precisassem ser geridas pela lógica que supõe uma competição na busca de destaque que simule a sociedade do espetáculo. Um sucesso individualizado e suficientemente destacado para te dar segurança trabalhista. Assim, seja um frentista ou um pesquisador da USP, um catador de lixo ou o CEO de uma grande empresa, todos precisam tentar se “celebrizar”;

- Se “celebrizar” é quando o lixeiro do sambódromo além de fazer seu ofício, samba sorridente e, com isso, consegue espaço na mídia e, assim mais direitos do que com seu labor. Ou o pesquisador que sabe que divulgar seu laboratório em um programa da Rede Globo é tão importante como em um periódico científico, um grande economista que precisa fazer uns TEDs de sucesso além de ser um economista. Todas essas inserções não o tornarão a verdadeira celebridade do topo da pirâmide, pois lá é realmente para poucos, mas vivem a lógica perversa de concentração de poder e competitividade para as suas relações de trabalho;

- uma criança pode salvar toda a renda de uma família se “celebrizar” su vida Celebridades de qualquer idade geralmente têm como narrativa típica ter dado moradia ou plano de saúde para seus familiares. Aspectos que precisam ser identificados não como uma possibilidade, mas como a total falta de oportunidade. Não é o Paulo Gustavo que deveria ter pago a saúde de tantos familiares nem a Alice, a menina genial da internet, que deveria melhorar a renda da família com um anúncio no Itaú. A renda dos pais de Alice, os planos de saúde dos familiares do comediante ou a primeira moradia dos pais de um jogador de futebol não poderiam ser furos da celebrização de um membro da família. São recursos muito básicos de vida - renda, moradia e saúde - para não serem garantias sociais que independem dessa lógica perversão se concentração de fama;

- quantos país, parentes e amigos seguirão sem essa ajuda em números?

- uma das consequências consistente de concentração de renda da aristocracia, da burguesia ou das celebridades, é que os sujeitos passam a não lutar mais por justiça social e pela superação desses modelos de exploração. Eles passam a desejar o lugar dos exploradores - mesmo que na maioria esmagadora dos casos isso jamais vá se concretizar. Mas como a condição de celebridade é vendida como uma situação positiva, divina, possível, generosa e sagrada, não há como não deseja-la como única opção de salvação.
por Gamba Junior

A cultura da celebridades tem efeitos muito mais nocivos do que apenas o seu lado fútil é risível. A cultura das celebridades é uma nova forma de organizar o sistema social afetando não apenas como vivem esses personagens, mas determinando uma série de modelos simbólicos e pragmáticos para toda a sociedade.

- não existe o conceito de celebridade sem o seu complementar, o de quem é seu espectador ou consumidor e que não faz parte do grupo seleto. Não dá para muita gente ser celebridade. Tem que ser poucos;

- assim, a base da cultura da celebridade é a alta concentração de poder de exibição em mídia e repercussão pública de poucas pessoas. A esse poder se sucedem outras formas de desigualdade: como a concentração de renda, de patrimônio, de oportunidades, de expressão e de influenciar outros grupos;

- apesar dessa concentração de visibilidade ser fundamental no alto contraste entre a celebridade e o resto, ela gera um outro produto, as “subcelebridades”. Uma categoria de indivíduos que parece matizar as fronteiras entre a celebridade e o cidadão comum, mas que, na verdade, é só uma reafirmação do lugar central de privilégios. Pois a subcelebridade é o movimento inútil de um grupo que tenta alcançar a condição privilegiada, mas que só ganha visibilidade pelo patético de sua impossibilidade - confirmando assim, a condição realmente sagrada de ser uma celebridades;

- a ideia de que há pessoas célebres porque fizeram coisas relevantes e outras que o são por nada, apenas por esquemas de agenciamento, parece apontar uma salvação para a cultura das celebridades: selecione melhor quem será uma! Essa perspectiva não tem nada de positiva, é apenas ainda mais sectária. A condição indefensável é a de celebridade por tudo que ela gera de deformação social, e não a maneira como alguém conseguirá ser alçado a esse estrato de privilegiados.

- Na sua essência, o celebrismo ou a cultura das celebridades é uma forma de naturalizar os grandes abismos sociais e justificar as diferenças de classe. Uma nova forma de oligarquia surge com mecânicas próprias de dar à injustiça social um imaginário de conquista liberal, distribuição orgânica de recursos e possibilidades de sonhar com cenários de privilégios;

- apesar de ser uma nova classe paralela à aristocracia quatrocentona e à burguesia empresarial bilionária - ambas muitas vezes anônimas -, pode haver sobreposições. Assim, é possível vermos grandes sobrenomes ou donos de grande empresas se aventurando como celebridades também, mas geralmente são decadentes no primeiro caso ou apenas estão comprando sua condição de célebres com o muito capital que dispõem, no segundo caso;

- apesar de serem três classes de privilegiados que concentram renda de forma distinta e deles poderem se sobrepor, eles se interpenetram. É fundamental o grande capital privado empresarial ou de patrimônio familiar para financiar às celebridades e o seu modelo de acúmulo de renda;

- a diferença básica do enriquecimento das celebridades para os outros dois grupos é que o seu principal capital é a visibilidade. Esse é o seu patrimônio. Essa visibilidade pode ter motivações externas às da mídia de massa (um percurso profissional de sucesso em alguns área), mas logo precisa assumir uma autonomia e ser regida pelas próprias regras internas da sociedade do espetáculo. Assim, aquele médico que se tornou célebre por um livro ou um projeto de grande repercussão, só se torna celebridade quando não são mais esses os fatores determinantes para ser um ídolo pop, mas sim, sua capacidade de fazer as engrenagens do circuito da mídia funcionar;

- a outra grande distorção em relação à celebridade são mitos essencialmente ligados ao neoliberalismo. A visão de que ela ocupa esse lugar por mérito, que prova algum nível de mobilidade social, que deve existir como liberdade do mercado de produzir fortunas financeiras ou simbólicas e de que gera empregos e faz bem ao país ou a um setor por produzir uma imagem positiva dele. Podemos e devemos desconstruir cada um desses itens e, com eles, o combustível ao neoliberalismo que sustenta a cultura das celebridades;

- primeiro, a perspectiva meritocrática é a mais complexa de se desconstruir, porque ao não ter uma condição familiar prévia tão clara como a aristocracia, a celebridade parece reforçar que o sistema de mérito finalmente rege algo. No entanto, nada mais contraditório com a noção de “meritocracia” do que um sistema de concentração de bens ou patrimônio, ainda que seja o da visibilidade;

- na verdade o segundo aspecto é outro ponto que ajuda a desmontar a falácia anterior. Ao problematizar a ideia de que essa condição é boa porque é uma geradora de empregos satélites ao personagem famoso, entendemos que não há sistemas de méritos nesse arranjo. Ao termos alguém que ganha milhões de reais por mês, não é que ela seja de fato um gerador de empregos, ela faz parte de uma cadeia produtiva que explora as demais funções. Se todos os profissionais envolvidos nessa cadeia tivessem carteira assinada, vínculo formal, renda satisfatória e um padrão de vida digno, a celebridade não iria ganhar tanto. Poderia até ser o maior salário da linha de produção, mas não com os valores que encontramos. A conta não fecha. Por isso, ao invés de gerar trabalhos, ela reafirma a injustiça com não de obra explorado;
- logo, como pressupomos que esses profissionais também têm méritos, porém, não são respeitados nessa conta meritós/retorno financeiro, não há meritocracia, mas sim uma aristocracia midiática. Técnicos de som, cabos-man, produtores, montadoras, camareiros, faxineiros ou seguranças são parte dessa horda de gente explorada e subremunerada que na verdade sustenta a concentração de renda e fama de poucos sujeitos. Assim, não adianta que você tenha mérito como produtor, assistente de estúdio ou roadies, pois será majoritariamente explorado;

- não há também mobilidade social alguma. Ainda que poucas celebridades possam ter vindo de uma outra classe social, com toda esses outros profissionais mantidos em condições de subploretariado, fica claro que não há mobilidade. A proporção entre a funkeira que enriqueceu ou o jogador de futebol que ficou bilionário em relação a quantidade de jovens da mesma origem que morrerão miseráveis nessa cadeia produtiva medieval, mostra que não há nada além do que uma profunda concentração de renda que do reafirma a injustiça social. Mobilidade social é um fenômeno expressivo quantitativamente para um grupo. A ascensão individualizada e pouco expressiva numericamenteé justo o oposto: imobilidade social;

- A naturalização da ideia de que é positivo que alguém ganhe 1,5 milhões de reais como a apresentadora na matéria abaixo, ou 5 milhões, como caso de Faustão também citado no texto ou 11 milhões, como Neymar e que isso deve alimentar seu sonho de sucesso é um dos aspectos mais nocivos do capitalismo;

- essa filosofia sai do registro das celebridades e impregna todas as mecânicas de trabalho. É como se todas as relações de produção precisassem ser geridas pela lógica que supõe uma competição na busca de destaque que simule a sociedade do espetáculo. Um sucesso individualizado e suficientemente destacado para te dar segurança trabalhista. Assim, seja um frentista ou um pesquisador da USP, um catador de lixo ou o CEO de uma grande empresa, todos precisam tentar se “celebrizar”;

- Se “celebrizar” é quando o lixeiro do sambódromo além de fazer seu ofício, samba sorridente e, com isso, consegue espaço na mídia e, assim mais direitos do que com seu labor. Ou o pesquisador que sabe que divulgar seu laboratório em um programa da Rede Globo é tão importante como em um periódico científico, um grande economista que precisa fazer uns TEDs de sucesso além de ser um economista. Todas essas inserções não o tornarão a verdadeira celebridade do topo da pirâmide, pois lá é realmente para poucos, mas vivem a lógica perversa de concentração de poder e competitividade para as suas relações de trabalho;

- uma criança pode salvar toda a renda de uma família se “celebrizar” su vida Celebridades de qualquer idade geralmente têm como narrativa típica ter dado moradia ou plano de saúde para seus familiares. Aspectos que precisam ser identificados não como uma possibilidade, mas como a total falta de oportunidade. Não é o Paulo Gustavo que deveria ter pago a saúde de tantos familiares nem a Alice, a menina genial da internet, que deveria melhorar a renda da família com um anúncio no Itaú. A renda dos pais de Alice, os planos de saúde dos familiares do comediante ou a primeira moradia dos pais de um jogador de futebol não poderiam ser furos da celebrização de um membro da família. São recursos muito básicos de vida - renda, moradia e saúde - para não serem garantias sociais que independem dessa lógica perversão se concentração de fama;

- quantos país, parentes e amigos seguirão sem essa ajuda em números?

- uma das consequências consistente de concentração de renda da aristocracia, da burguesia ou das celebridades, é que os sujeitos passam a não lutar mais por justiça social e pela superação desses modelos de exploração. Eles passam a desejar o lugar dos exploradores - mesmo que na maioria esmagadora dos casos isso jamais vá se concretizar. Mas como a condição de celebridade é vendida como uma situação positiva, divina, possível, generosa e sagrada, não há como não deseja-la como única opção de salvação.

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/globo-banca-fatima-bernardes

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